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Mulheres

Armadilha moralista: antifeminismo e feminismo no debate sobre a emancipação da mulher

Érika Andreassy

novembro 21, 2025

O debate entre feminismo e antifeminismo hoje se dá quase inteiramente no terreno da moral. A extrema direita e o liberal-conservadorismo mobilizam uma guerra cultural baseada em caricaturas: “o feminismo odeia homens”, “destrói a família”, “quer privilégios”. Em resposta, parte do próprio feminismo — inclusive setores que se reivindicam socialistas — entra no mesmo terreno, defendendo uma “lista de serviços” (“o feminismo trouxe o voto, os direitos, a pílula”) ou reduzindo a opressão a comportamentos, linguagem e boas intenções individuais.

Nessa disputa, a história desaparece. A opressão surge como produto de seres malvados; a resistência, como benevolência de pessoas iluminadas. Mas o marxismo ensina que nenhuma relação social se explica por moral, e nenhuma transformação nasce de vontades individuais. A história se move por forças profundas, não por intenções piedosas.

A crítica coerente ao antifeminismo deve começar recolocando esse debate no seu devido terreno: o terreno material, histórico e estrutural da opressão das mulheres sob o capitalismo.

A moralização antifeminista: a história transformada em caricatura

O antifeminismo dominante opera em duas chaves morais:  a personalização do feminismo e o vitimismo conservador. Na primeira, por meio de perguntas como: “O que o feminismo fez por você?” Ou afirmações do tipo: “Quem deu o voto às mulheres foram os homens”. “Feministas querem privilégios”.

Nessa lógica, o feminismo é tratado como um sujeito, um ente. A história vira uma grande novela, com o movimento social de personagem. Mas, quando se personaliza, se apaga o que há de mais importante: as condições que tornam necessária a luta das mulheres. Não há feminismo sem a realidade material que o produz.

A segunda chave usa uma tática que inverte o agente da opressão: “Os homens estão sendo perseguidos”. “Querem destruir a família”. “As feministas causam divisão”.

O opressor se apresenta como vítima. E o conflito social, em vez de ser visto como produto das relações de classe, aparece como guerra moral entre indivíduos. Nada disso é estrutural. E é por isso que o antifeminismo só se sustenta na des-historicização.

O limite das respostas feministas dominantes

O problema é que a maior parte das respostas aceitas publicamente também fica no plano moral. Seja através de uma “lista de serviços do feminismo”, cuja defesatransforma-o em “agente do bem”: “O feminismo trouxe o voto”. “O feminismo trouxe a pílula”. “O feminismo acabou com isso ou aquilo”. E nesse caso, ao responder no mesmo plano, reforça-se a lógica que reduz lutas estruturais a escolhas morais.

Seja pela personalização da opressão. Isto é, a opressão vista como questão de atitudes, machismo cotidiano, empatia, autoestima, respeito. Claro que essas expressões existem. Mas, como diria Kollontai, a opressão da mulher não é um erro de sentimentos masculinos, mas uma função social necessária ao capital.
Quando se moraliza, esconde-se a base material da opressão.

Feminismo não causa a luta: é produto dela

O feminismo não explica a luta. É a luta que explica o feminismo. O feminismo é resultado de necessidades objetivas produzidas pelo desenvolvimento histórico. Surge porque o capitalismo industrializou a reprodução social e empurrou mulheres para o trabalho assalariado. O processo de proletarização feminina tensionou a moral patriarcal tradicional, mas enquanto defendia os ideais de igualdade e liberdade, a burguesia liberal excluía as mulheres da cidadania.

A história da luta das mulheres mostra que nenhum avanço veio como concessão voluntária. O voto feminino, por exemplo, não foi “dado pelos homens” (nem pelo feminismo enquanto abstração). Foi conquistado pelas mulheres organizadas, num contexto específico.

As sufragistas inglesas foram presas, espancadas, fizeram greves de fome. Nos EUA, na França, na América Latina, mulheres organizaram marchas, jornais, sindicatos, clubes políticos e enfrentaram a repressão. Direitos sociais são sempre resultado da luta. O Estado os formaliza apenas quando a correlação de forças obriga.

O voto feminino só foi aprovado porque antes houve um processo de pressão social impossível de ignorar. Quando antifeministas dizem que “homens deram direitos”, estão apenas descrevendo quem ocupava o Estado, não quem determinou a mudança. A causa real está na luta das mulheres, não no gênero de quem assinou o documento.

O feminismo burguês clássico surgiu limitado pela defesa da igualdade formal, mas isso não reduz sua importância histórica: ele expressa um estágio real da luta das mulheres. Parafraseando Marx: a humanidade faz sua própria história, mas não faz como quer. Ao mesmo tempo a produção capitalista faz crescer o antagonismo entre igualdade jurídica e desigualdade real. A divisão sexual do trabalho tornou-se mecanismo central de organização da força de trabalho.

Por que o antifeminismo é reacionário?

Se entendemos que o feminismo expressa necessidades históricas objetivas, o antifeminismo aparece em sua verdadeira forma: um movimento burguês reacionário que busca restaurar e reforçar pilares fundamentais da ordem capitalista.

O antifeminismo é reacionário porque defende as bases materiais da opressão das mulheres no capitalismo: família nuclear, dependência econômica, trabalho doméstico não remunerado, controle dos corpos. Portanto é um movimento anti-emancipação das mulheres enquanto setor oprimido da classe trabalhadora. Atua como braço ideológico do capital disciplinando a força de trabalho feminina, legitimando a superexploração e naturalizando desigualdades. Além de desviar a atenção da exploração, culpabilizando as mulheres e ocultando o papel do Estado e do capital.

O antifeminismo cumpre três funções fundamentais no capitalismo contemporâneo:

a) Econômica: ao reduzir os custos com a reprodução da força de trabalho; pagar salários menores e manter as mulheres como exército de reserva utilizado para pressionar o valor da força de trabalho.

b) Política: ao apoiar projetos reacionários, reproduzindo a lógica de ataque aos direitos democráticos e perseguição aos movimentos sociais. Ou seja, é um instrumento de regimes autoritários, não opinião individual.

c) Subjetiva/ideológica: ao oferecer ao homem precarizado uma falsa catarse. Num contexto de perda de direitos, redução de salários e desemprego estrutural, o antifeminismo oferece um inimigo (“o feminismo”); uma explicação falsa para a queda do status masculino, a crise de autoridade e a fragilização do papel tradicional do homem. E um lugar simbólico de poder quando o poder real se dissolve. Em outras palavras, o antifeminismo canaliza a frustração para o alvo errado.

Não basta defender o feminismo — é preciso defender a emancipação

A resposta eficaz ao antifeminismo não é “provar que o feminismo é bom”. É recolocar o problema onde ele pertence: na história real. É mostrar que o feminismo nada mais é do que expressão programática de necessidades materiais concretas.

“O feminismo” não dá nada e não tira nada. Todos os direito conquistados pelas mulheres no capitalismo foi arrancado na luta. Já o antifeminismo reage a essas lutas e suas conquistas.

No fundo, o debate real não é entre feminismo e antifeminismo. É entre emancipação e reação.

O capitalismo produz a opressão das mulheres e dela se alimenta. A perspectiva marxista afirma que a libertação das mulheres é incompatível com a manutenção desse sistema, que utiliza a opressão para superexplorar as mulheres, dividir a classe e manter a dominação burguesa. Por isso a emancipação das mulheres é inseparável da emancipação da classe trabalhadora.

Nessa perspectiva, nenhum feminismo que fique limitado à igualdade formal ou à moralidade dos comportamentos é suficiente. O antifeminismo não teme o feminismo enquanto nome. Ele teme as mulheres organizadas enquanto força histórica.

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