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Juventude

A geração Z e a vontade de liberdade: Do Nepal ao Paraguai, a juventude rebelde desafia governos e expõe a falência do capitalismo

Madagascar
outubro 19, 2025
Por: Renata França |

A chamada geração Z, nascida entre 1997 a 2012, em plenos tempos de guerras, catástrofes climáticas, desemprego estrutural, frustração com a democracia neoliberal e suas falsas promessas, tem protagonizado levantes em diferentes partes do mundo. No Nepal, Quênia, Indonésia, Filipinas, Madagascar, Marrocos, Bangladesh, Peru e Paraguai centenas de milhares de jovens têm tomado as ruas, estremecendo governos e expondo o mal-estar profundo com o capitalismo em crise.

Os estopins das mobilizações variam. Em alguns países são as políticas de austeridade, como a reforma da Previdência no Peru ou os gastos bilionários com a Copa do Mundo em Marrocos, enquanto hospitais e escolas estão à mingua. Em outros, o gatilho é a repressão e medidas bonapartistas, como o bloqueio de 26 redes sociais no Nepal, a Lei da Anistia no Peru ou a morte do blogueiro Albert Ojwang no Quênia.

Mas por trás dos motivos imediatos, há um traço comum na sua dinâmica: essas revoltas nascem e se articulam nas redes sociais, especialmente no TikTok, X e Discord. É ali que uma juventude hiperconectada toma consciência das injustiças globais, constrói uma linguagem própria e converte a frustração em ação direta, que explode em protestos com muita radicalidade.

O passo das redes para as ruas é rápido — e quando o fazem, questionam não só medidas pontuais, mas todo um sistema: governos corruptos, elites políticas privilegiadas e uma estrutura social que condena milhões à miséria.

Mas o que esses jovens realmente querem? E o que essa rebeldia difusa, fragmentada e global revela sobre o nosso tempo?

Geração do fim do mundo?

A revolta da geração Z nasce da frustação com o futuro prometido pelo capitalismo. Guiada pelo desejo de contestar uma sociedade corroída pela corrupção, destruição ambiental e guerras, a revolta que os leva às ruas expressa o despertar de uma juventude que vivencia a sensação de fim do planeta e do seu próprio futuro.

Mas que futuro é esse? O que resta a uma geração que já não acredita na promessa de progresso e estabilidade, pilares do capitalismo do pós-guerra?

Diferente das gerações anteriores, que lutavam por direitos sociais e pelo Estado de bem-estar social, os jovens de hoje não aspiram um futuro melhor dentro deste sistema que consideram podre, e até duvidam de que haverá algum futuro.

Esse sentimento de desesperança já vinha se gestando entre os millenials — a geração mais escolarizada e, paradoxalmente, mais precarizada. Mas se para eles a ascensão social já parecia um mito distante, para os mais jovens essa perspectiva simplesmente ruiu.

Nos países onde explodiram as mobilizações, a desigualdade é brutal. Madagascar, por exemplo, tem 80% da população vive abaixo da linha da pobreza e 42% dos jovens estão desempregados. O Peru, segundo a OCDE, é o quinto país do mundo com a maior proporção de jovens que não estudam nem trabalham. A maioria dos países onde explodem os protestos estão abaixo da 110ª posição no IDH mundial.

Não surpreende, portanto, que a desigualdade social e a corrupção sejam o combustível das revoltas. Nas Filipinas, a exibição de carros de luxo por empreiteiros bilionários viralizou e causou um levante contra o roubo sistemático do dinheiro público. Na Indonésia, o governo foi obrigado a cortar privilégios de políticos. Em Marrocos, o grito que ecoa nas ruas é: “Fim da corrupção!” No Paraguai, os jovens resumiram o espírito de sua luta na palavra de ordem: “Somos 99,9%. Não queremos corrupção.”

Mas essa raiva coletiva contra os privilégios dessa elite corrupta é apenas uma rebeldia difusa ou carrega também a semente de algo novo?

A bandeira de One Piece e a vontade de liberdade

Entre os símbolos das manifestações, um se destaca: a bandeira de One Piece. A caveira com chapéu de palha, do anime japonês, tornou-se ícone inesperado das ruas.

Luffy, o protagonista do anime, não busca poder, fama, nem riqueza. Seu “super-poder” – um corpo emborrachado – é fulgaz. O traço que o faz forte é a característica chamada de “vontade herdada” de liberdade. Ele quer ser o Rei dos Piratas porque acredita que isso o tornará o homem mais livre do mundo.

Em suas viagens, ele e seu bando de piratas enfrenta governos tirânicos e ajuda comunidades a se libertar da opressão, e depois segue seu caminho sem sede de dominação ou poder.

A referência não é aleatória. Diante de uma sociedade que vende “liberdade” via consumo e empreendedorismo, a geração Z se identifica com quem rompe as regras e desafia os tiranos como forma de conquistar a verdadeira liberdade.

Assim, Luffy parece mais autêntico que os líderes políticos tradicionais: ele representa a vontade de liberdade, amizade e lealdade, valores que inexistentes à lógica fria do lucro e ao pragmatismo político, ao qual a esquerda da ordem também se rendeu.

Pode parecer curioso que o símbolo de uma juventude em rebeldia contra o capitalismo venha de um anime, produto da própria indústria cultural. Mas essa contradição mostra como a luta ideológica também se dá num terreno simbólico, onde os jovens reapropriam o que o mercado tenta lhes impor.

A rebeldia e a falta de um projeto político alternativo

A indignação que leva milhões às ruas por justiça social e contra as elites enfrenta a resposta brutal dos governos. No Nepal, 74 mortos e mais de mil presos. No Quênia, 30 assassinados e centenas de feridos. Na Indonésia, oito mortos, 1.200 detidos. Em Madagascar, 22 mortos; em Marrocos, três.

A violência policial mostra o medo da burguesia de que a energia difusa e espontânea dessa juventude transborde os limites da ordem institucional e se transforme em algo mais perigoso: uma rebelião consciente.

O capitalismo em crise não deixa margem de manobra que permita aos governos, através de simples medidas paliativas, garantir melhoras reais para a vida do povo. A crise exige um patamar superior de exploração e mecanismos de saque dos países periféricos, na Ásia, Africa e América do Sul, vitais para os blocos imperialistas em disputa. Por isso, governos de direita e de “esquerda” recorrem a métodos bonapartistas para tentar conter as rebeliões, mas elas seguem e até derrubam esses governos que são agentes dessa pilhagem, ainda que essa dominação imperialista apareça sob a forma de corrupção e autoritarismo dos governos.

Em Madagascar, o presidente Andry Rajoelina não teve outra alternativa que não demitir todos os seus ministros e tentar montar um novo governo, e mesmo assim a população não saiu das ruas e exigiram Fora Rajoelina. No Nepal, o primeiro-ministro Khadga Prasad Oli caiu, após a casa de vários políticos e o parlamento serem incendiados. Novas eleições foram convocadas para março de 2026. No Peru, derrubaram a já impopular Dina Boluarte, e exigem a renúncia do novo presidente interino, José Jerí.

Os levantes tem abalado os regimes e até derrubado os governos, mas ainda não constroem uma alternativa de poder. O dilema é até que ponto essa rebeldia espontânea pode chegar a luta anticapitalista.

As redes sociais, que impulsionam e organizam os protestos, são ao mesmo tempo um importante instrumento e também um limite: permitem ação rápida, coordenam protestos da noite pro dia com centenas de milhares de pessoas, mas não criam estruturas duradouras e com independência de classe. Grupos como Gen Z 212, Morocco Youth Voices ou Geração Z Madagascar coordenam mobilizações com enorme agilidade, mas não têm a organicidade necessária para transformar revolta em programa político.

A estrutura horizontal e sem a identificação de líderes não é uma novidade, e mais uma vez são vistas nas ruas as máscara de Guy Fawkes, usada pelo personagem do V de Vingança, expressando a negação do sistema e dos métodos políticos tradicionais, mas sem a clareza sobre o que construir em seu lugar.

Transformar indignação em consciência de classe

É preciso romper com o horizonte imediato da moral anticorrupção e entender que o verdadeiro inimigo não são apenas os políticos corruptos, mas o próprio sistema capitalista e a dominação imperialista que sustenta sua miséria.

A superação desse horizonte e um programa classista e de ruptura capitalista será forjado na aliança dessa juventude com os trabalhadores que amargam o mesmo destino decadente imposto pelos planos de austeridade imperialistas e suas burguesias locais.

Como fazer a ponte entre a juventude rebelde e os trabalhadores que enfrentam a mesma exploração?

O cenário de pobreza crescente, desemprego, fome e corrupção que indigna a geração Z é também o que pode empurrá-la para uma ruptura mais profunda. Em Marrocos, a medida que as manifestações se alastram para os bairros periféricos, passam a incorporar a luta por emprego e moradia. No Peru, as manifestações da geração Z destravaram um processo de luta que se propagou para setores da classe trabalhadora, culminando na 12ª greve do transporte em Lima, em 2 de outubro, e a paralisação no porto de Callao. A reação repressiva de Boluarte, que tratou a greve como “terrorismo urbano” foi um empurrão para sua queda.

Nos demais países, é preciso construir essa ponte. A geração Z é filha da barbárie neoliberal e herdeira das derrotas impostas pela esquerda da ordem, mas também carrega em si a força das vitórias das lutas passadas e a centelha da revolução que desponta das novas gerações. Suas formas de mobilização, surgidas das redes sociais e marcadas pela espontaneidade, precisam se ligar às organizações da classe trabalhadora. Mesmo travadas por burocracias sindicais e projetos reformistas, essas organizações, quando impulsionadas por um ascenso da luta, podem mudar de rumo rapidamente e se tornar o motor capaz de paralisar a economia e atingir os setores que concentram a riqueza. É dessa aliança, entre a rebeldia juvenil e o poder produtivo dos trabalhadores, que pode nascer uma força capaz de colocar nas cordas o poder institucional e abrir caminho para organismos que expressem o poder real dos de baixo.

A tarefa dos revolucionários é ligar essa rebeldia a um projeto socialista em cada país e uma perspectiva internacionalista, capaz de transformar a raiva às elites em ódio de classe e a revolta em estratégia de poder da classe oprimida. Essa tarefa só pode ser cumprida até o fim por uma organização revolucionária em cada país, que faça parte da construção uma Internacional revolucionária e socialista, capaz de unir a experiência da classe trabalhadora e a ousadia das novas gerações.

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