As políticas de Trump, a disputa EUA-China e a crise da ordem mundial – Parte 1

Por: Felipe Alegria e Ricardo Ayala
Parte 1
1. A “política tarifária” de Trump
2. As políticas agressivas e chantageadoras de Trump não refletem a força do imperialismo americano, mas a necessidade de reconstruir sua hegemonia em tempos de crise
3. Uma estratégia global para reafirmar a supremacia americana
4. A batalha pela superioridade tecnológica
5. Manter a supremacia militar
6. Preservar o domínio do sistema financeiro internacional
7. Transformar a democracia liberal americana em um regime presidencial Bonapartista
Parte 2
8. China, o grande inimigo
9. A UE em uma encruzilhada difícil
10. O futuro e a luta de classes
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PARTE 1
Introdução
Há um verdadeiro terremoto na divisão mundial do trabalho (DMT), originada pelo choque aberto entre a natureza global das cadeias de produção e o fechamento das fronteiras nacionais dentro das quais operam. Trump, jogando com as desigualdades entre os países, usa tarifas de acesso ao mercado norte-americano de forma briguenta e reacionária, visando favorecer até as últimas consequências um setor industrial que, no entanto, não conhece fronteiras e não está sujeito a tarifas. Estamos nos referindo às Big Techs, em sua incessante acumulação de capital.
São um pequeno núcleo de empresas que podem ser contadas nos dedos das mãos, americanas e chinesas, no topo da cadeia de valor, ignorando completamente as fronteiras nacionais e no centro da atual acumulação capitalista. Enquanto isso, o restante das empresas, no âmbito das atuais cadeias de produção, estão sujeitas a tarifas, que vinculam os países à sua hierarquia dentro da DMT. As Big Techs dependem e se alimentam dessa DMT, sem estar sujeitas às fronteiras nacionais.
A situação atual, com a presidência de Trump, trouxe essa contradição ao ápice. O capitalismo imperialista, sujeito à medíocre base da propriedade privada e do lucro, incapaz de permitir que novos dispositivos e avanços floresçam globalmente e irrestritamente, submete-os às limitações dos Estados-nação.
Trump não pretende reindustrializar os Estados Unidos, mas sim trazer para o país as indústrias de ponta da tecnologia (semicondutores) e, ao mesmo tempo, impor uma dominação colonial ao resto do mundo, não apenas aos países semicoloniais, mas também subjugando países imperialistas de segundo e terceiro escalões a níveis sem precedentes. Basta observar os embargos à China na guerra pela supremacia tecnológica.
Trump impõe aos países semicoloniais relações semelhantes às do século XIX, baseadas no parasitismo que Lênin já denunciava. O exemplo da tarifa sobre o Brasil é esclarecedor. Ele impõe uma tarifa de 50% e a justifica dizendo que a Justiça brasileira não pode condenar Bolsonaro, seu aluno, pela tentativa de golpe. No entanto, toda a imprensa burguesa séria brasileira alerta que o caso Bolsonaro não passa de uma cortina de fumaça. O que realmente está por trás da medida de Trump são os interesses de Zuckerberg (Meta), Visa e MasterCard, a oposição ao acordo firmado com a China para a construção de uma ferrovia para transportar soja do Brasil até o porto de Chancay, no Pacífico (construído e administrado pela empresa chinesa Cosco), reduzindo 10 dias nas exportações brasileiras… além das críticas aos discursos de Lula sobre o multilateralismo e o lugar do dólar no mundo.
O jornal O Globo, que não é exatamente uma imprensa nacionalista, explica que antes do lançamento do sistema de pagamento eletrônico instantâneo “PIX”, controlado pelo Banco Central e totalmente gratuito, “Meta havia anunciado que lançaria um serviço de pagamento pelo WhatsApp. O Brasil seria uma espécie de modelo para Mark Zuckerberg, dono do Meta, expandir a operação para outros mercados. Havia grande expectativa porque o serviço de mensagens [WhatsApp] era quase onipresente no país“, e acrescenta: “mas o PIX rapidamente pegou no gosto dos brasileiros… Hoje, é usado por 93% da população adulta do país (…) e se tornou o método de pagamento mais popular no Brasil. O PIX substituiu o dinheiro físico, os recibos e os cartões de débito [Visa e Mastercard…], principalmente. Com o desenvolvimento de ferramentas como o PIX Parcelado e o PIX Automático, ele também começa a competir com os cartões de crédito, um segmento que continua crescendo no país.”
No artigo, também veremos como as Big Techs, intimamente associadas ao Pentágono e aos negócios militares, estão desempenhando um papel fundamental no genocídio israelense em Gaza e na Cisjordânia. Por outro lado, como veremos ao longo do texto, a ordem mundial defendida por Trump, a serviço das Big Techs, leva à aplastar toda dissidência, primeiramente a do movimento de massas americano, e também a do resto do mundo, e finalmente a dos setores burgueses que não se enquadram em uma ordem mundial onde não existe “café para todos”.
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O déficit comercial dos EUA está interligado ao funcionamento de um sistema monetário cujo padrão é o dólar e, para sua manutenção, os EUA devem permanecer no topo do sistema financeiro global, e seus oligopólios tecnológicos devem continuar a ditar o ritmo da revolução tecnológica.
Para tanto, Trump se esforça para reformar o DMT, trazendo setores tecnológicos estratégicos (microprocessadores, baterias, etc.) para os EUA, acabando com a dependência da cadeia de suprimentos da China e de países cujo futuro ainda está por ser determinado, especialmente Taiwan.
Os EUA, como analisamos no artigo, têm um superávit significativo na balança de serviços. Mas essa terminologia esconde mais do que revela sobre o conteúdo desses serviços. Gustavo Machado, pesquisador do ILAESE e estudioso de O Capital, ao ler o rascunho deste artigo, faz uma observação valiosa sobre a acumulação de capital pelas Big Techs, mascarada na contabilização da balança de serviços. Essa observação, sem dúvida, extrapola o escopo deste artigo:
“…Elas vendem serviços porque meramente vendem o direito de uso de bens cuja propriedade permanece nas mãos de empresas americanas. Quando pagamos ao Google, Windows, ChatGPT etc., não estamos comprando o produto, mas sim pagando pelo direito de usá-lo. A nova revolução tecnológica em curso criou uma infinidade desses produtos básicos. Esse processo é chamado de “servitização”, que não é a substituição de bens por serviços, mas a substituição da venda de bens pelo pagamento do direito de usá-los.”
Essa forma de acumulação de capital coloca as Big Techs para além das fronteiras dos estados. Essas empresas ultrapassam as fronteiras nacionais, tornando-as obsoletas, sonegando impostos, tarifas e regulamentações concorrenciais.
“Tudo isso está ligado”, acrescenta Gustavo, “à nova revolução digital, que centralizou o uso de todos os equipamentos eletrônicos em nuvens e data centers, de modo que computadores, televisores e smartphones nada mais são do que pontos de contato com essas redes. Essa revolução tem sido a salvação tecnológica dos Estados Unidos nas últimas duas décadas, pois eles lideram o setor de software com ampla margem, superando gigantescos monopólios globais (Google, Microsoft, Meta, Apple, Amazon etc.).
Este setor não está sujeito à desindustrialização, visto que a maior parte de seu núcleo de inovação e código-fonte primário são produzidos nos Estados Unidos. Uma pesquisa rápida e aproximada que realizei mostra que: 1. No Google (Alphabet), 60-70% do código principal é desenvolvido nos EUA. 2. Na Microsoft, 70% do desenvolvimento de produtos-chave (Windows, Azure) é feito nos EUA. 3. No Meta (Facebook), 80% da inovação em algoritmos e produtos é feita nos Estados Unidos. Essas empresas produzem bens, mercadorias: é a indústria digital. Mas seus produtos, que valem bilhões ou mesmo centenas de bilhões de dólares, não são vendidos como mercadorias; em vez disso, bilhões de pessoas, direta ou indiretamente (por meio de publicidade), pagam por seu uso. É o que hoje se chama de “servitização”, que, do ponto de vista da contabilidade econômica oficial, não é contabilizada na balança comercial, mas sim na balança de serviços”.
Se usássemos o critério apontado por Gustavo e incluíssemos as Big Techs na balança comercial dos Estados Unidos, ela teria um superávit enorme. Na verdade, estamos diante de um supergolpe que usa um suposto déficit comercial como desculpa para impor uma nova ordem na qual as Big Techs reinam supremas. O problema é que isso exige a semicolonização das cadeias de suprimentos chinesas e significa que a China é o principal inimigo a ser derrotado, com seus data centers, sua moeda digital e suas empresas que integram mensagens instantâneas e vendas online (um passo à frente de Zuckerberg).
A China, como uma nova potência imperialista, tende a reproduzir o mesmo tipo de hierarquia na divisão global do trabalho que os EUA promovem, concentrando alta tecnologia e valor na China e estendendo os escalões inferiores de sua cadeia produtiva para suas áreas de influência. Hoje, como explicamos no artigo, a China luta para sobreviver ao bloqueio trumpista, em meio a uma considerável e crescente superprodução de capital. Ao mesmo tempo, quanto mais a China sobe na hierarquia produtiva e aumenta sua produtividade, mais incapaz se torna de gerar trabalho suficiente para sua população.
Há uma luta entre os EUA e a China que só o futuro resolverá, e está determinada pelos tempos: quanto tempo levará para a China sair desse impasse? Os Estados Unidos entrarão em recessão antes? E se um, o outro ou ambos forem alvo de uma revolta das massas trabalhadoras? E, junto com isso, qual será o curso da guerra na Ucrânia diante da agressão russa, o desenvolvimento da batalha contra o genocídio sionista, a crise e a resposta de massas na Europa e nos países semicoloniais da América Latina e dos vários continentes? Aqui estão os pontos-chave da situação.
1. A “política tarifária” de Trump
Uma das grandes narrativas da campanha eleitoral de Donald Trump foi que, por meio da imposição generalizada de tarifas, ele acabaria com o déficit comercial dos EUA, traria a indústria de volta ao país e levaria a um forte aumento do emprego. Ele também financiaria os gastos federais e reduziria os impostos. Os EUA, em suma, retornariam a uma nova era de ouro.
Certamente, o conflito tarifário está desempenhando um papel de destaque nestes primeiros meses do governo Trump. Mas o problema, na verdade, não são as tarifas. A política tarifária de Trump é um dos vários mecanismos que ele utiliza para enfrentar o declínio do imperialismo americano e os desafios à sua hegemonia.
Quando os Estados Unidos, a grande potência ocidental vencedora da Segunda Guerra Mundial, mantinham a supremacia produtiva e tecnológica indiscutível — isto é, durante a chamada Guerra Fria e depois, quando promoveram a globalização neoliberal — sua bandeira era o livre comércio. Por um período inteiro, os Estados Unidos mantiveram uma generosidade comercial egoísta em relação a vários países, inicialmente Europa e Japão, necessária para a expansão dos negócios de suas multinacionais. O mesmo pode ser dito de sua expansão para a China. A globalização significou que a cadeia de valor industrial, com seus projetos, matérias-primas, componentes e montagens, tornou-se global, espalhando-se pelo mundo, com ênfase particular na China, para onde um grande número de empresas industriais, com forte presença norte-americana, foram realocadas. A globalização deu origem ao que conhecemos como Quimérica, onde a China, com uma classe operária barata e marginalizada, tornou-se a grande oficina das multinacionais norte-americanas (e de outros países europeus e Japão).
Durante esse período, particularmente durante a era Quimérica, o enorme déficit comercial norte-americano com a China, longe de ser um problema, foi o reverso de uma gigantesca transferência de valor da China (do valor criado por sua classe operária) para os Estados Unidos, consequência da troca desigual entre os dois países, fruto da enorme vantagem tecnológica norte-americana e da produtividade resultante.
Por outro lado, reduzir a troca econômica à balança comercial oficial é um engano grosseiro, pois ignora a balança de serviços, que representa as enormes receitas cobradas pelas grandes empresas americanas de alta tecnologia pelo uso de seus produtos. A balança comercial também não inclui os serviços financeiros cobrados por seus bancos e instituições financeiras, que dominam os mercados globais. E esquecem, é óbvio, de incluir nos cálculos a transferência de lucros de multinacionais, bancos e fundos de investimento americanos para o exterior.
Em relação à criação de empregos, os mesmos trumpistas, como Stephen Miran, chefe do Conselho de Assessores Econômicos de Trump, revelam sua demagogia ao limitar o retorno da indústria à manufatura de alta tecnologia, vinculada ao controle da tecnologia e suas aplicações militares. Esses processos de manufatura, no entanto, são irrelevantes para a criação de empregos.
O problema para o imperialismo americano não é o déficit comercial com a China, mas o fim da Quimérica e o fato de a China ter se tornado um sério concorrente tecnológico e representar uma ameaça para a continuidade de sua hegemonia. Este, e nada mais, é o seu maior problema.
As tarifas que Trump está negociando buscam desacelerar o desenvolvimento chinês, exacerbar sua superprodução de capital e torpedear a expansão de suas cadeias de suprimentos e montagem em países vizinhos, sobre os quais ele anunciou a imposição de tarifas comerciais exorbitantes entre 25% e 40%. Ao mesmo tempo, Trump busca estabelecer um embargo comercial às exportações de alta tecnologia dos EUA para a China (particularmente aquelas relacionadas a semicondutores de ponta) e também impedir que outros países se juntem às redes tecnológicas chinesas. No entanto, os EUA também sofrem com uma forte dependência da China em grande parte de sua cadeia de suprimentos, especialmente no que diz respeito às terras raras, onde esta última atualmente mantém um quase monopólio.
As tarifas anunciadas por Trump sobre países semicoloniais são exorbitantes, com praticamente todos tendo que pagar um pedágio de mais de 25% para vender nos EUA, obrigando-os a vender suas exportações a preços de banana.
Representam a imposição de um nível de pilhagem nitidamente maior do que o que sofreram por décadas e buscam a subserviência aos EUA. As consequências negativas para os trabalhadores desses países serão enormes. O caso da tarifa de 50% sobre o Brasil (com quem os EUA têm superávit comercial) é uma expressão extrema da política de Trump. O argumento do impeachment de Bolsonaro para justificá-lo, além de sua indecência, esconde a defesa dos interesses de grandes empresas de tecnologia e financeiras americanas.
No caso da União Europeia (UE), maior parceira comercial dos EUA, Trump acaba de ameaçar em carta com tarifas gerais de 30%, o que, segundo o Comissário Europeu de Comércio, Maros Sefcovic, “praticamente proibiria o comércio“. É uma política extremamente agressiva que Trump ousa implementar, aproveitando-se das diferenças de interesses entre os vários Estados-membros da UE, que Trump procura exacerbar. Da mesma forma, o que Trump causou no Japão e na Coreia do Sul, que estão ameaçados ou já punidos com uma tarifa geral de 25%, também é um verdadeiro choque.
2. A política agressiva e chantagista de Trump não reflete a força do imperialismo americano, mas sim a necessidade de reconstruir sua hegemonia em tempos de crise.
Por muitas décadas, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, da qual emergiu como o grande vencedor, os EUA têm sido a potência dominante indiscutível. Sua hegemonia avassaladora baseou-se em sua supremacia econômica, baseada em produtividade superior, seu tamanho e seu indiscutível domínio financeiro global. Durante todo esse período, os EUA se apoiaram nas chamadas instituições multilaterais, onde, sob sua direção, as regras eram acordadas, dando um ar de democracia e permitindo, em uma situação econômica favorável, que as diversas potências e burguesias semicoloniais também compartilhassem dos despojos. É evidente que, quando necessário, os EUA impuseram diretamente sua vontade, como quando Nixon pôs fim ao padrão-ouro ou Reagan impôs o Acordo do Plaza. O ápice (e estágio final) desse processo foi a globalização neoliberal, com o famoso “Consenso de Washington” e a total liberdade de circulação de capitais e mercadorias.No pano de fundo desse processo, é nítido, sempre estiveram as Forças Armadas dos EUA, com seu gigantesco arsenal, suas mais de 700 bases ao redor do mundo e suas intervenções militares seletivas, que se prolongaram ao longo do tempo, além de suas operações secretas (golpes militares na Indonésia, Chile, etc.).
No entanto, a supremacia americana começou a entrar em crise com o surgimento do imperialismo chinês a partir de 2008. Como aponta o artigo “China, a Potência Imperialista Emergente em Conflito com os Estados Unidos”[1]: “Os Estados Unidos continuam a manter a hegemonia econômica global, apoiada por uma produtividade geral que supera a da China, à qual se deve somar seu domínio financeiro global (e, evidentemente, geopolítico e militar). Os Estados Unidos continuam sendo a principal potência em relação à produção de bens de consumo finais (indústria digital, equipamentos elétricos e eletrônicos de ponta, produtos farmacêuticos e aeroespacial). A China, no entanto, já detém uma participação de 12,24% no total mundial nesse setor e é, ao mesmo tempo, a maior produtora global de meios de produção (30,83% em 2023). É, de longe, a ‘superpotência manufatureira global’ e, no final de 2024, parecia ser a principal economia mundial em termos de “paridade de poder de compra” de seu PIB; perdendo apenas para Estados Unidos, medido em dólares correntes”. A tudo isso se soma o fator determinante de sua ascensão como grande potência tecnológica. A abordagem agressiva de Trump, expressa em sua guerra tarifária e política de embargos, demonstra a deterioração da primazia econômica dos EUA em setores de ponta e, de modo geral, reflete a perda de influência global.
Sob Trump, os EUA começaram a operar fora das instituições multilaterais[2]. A hegemonia financeira americana, antes tão decisiva, também começou a apresentar fissuras diante da magnitude da dívida federal e do peso emergente de outras moedas no comércio global.
3. Uma estratégia global para reafirmar a supremacia americana
A ofensiva tarifária de Trump, atualmente ocupando lugar de destaque na mídia mundial, é apenas parte de uma estratégia global para tentar renovar a supremacia americana. Ela integra vários elementos:
a) Garantir a manutenção da superioridade tecnológica dos EUA sobre a China.
b) Preservar o domínio dos EUA no sistema financeiro global.
c) Reformular a divisão global do trabalho: 1/ Concentrando a produção tecnológica estratégica 2/ sufocando o desenvolvimento e a expansão chinesas e exacerbando sua superprodução e excedente de capital; 3/ espremendo os demais países; e 4/ submetendo os países semicoloniais a um nível qualitativamente maior de pilhagem.
d) Anular a UE como um potencial polo alternativo, marginalizando-a internacionalmente e fomentando divisões dentro dela.
e) Assegurar a continuidade da supremacia militar dos EUA em uma corrida armamentista desenfreada. Essa supremacia está associada à hegemonia tecnológica e ao papel econômico central da indústria de armamentos dos EUA, na qual as grandes empresas de tecnologia desempenham um papel significativo.
f) 1/ obrigar seus aliados europeus e asiáticos a pagar pelo envio de suas tropas e redistribuí-las e concentrá-las na região do Indo-Pacífico, enfrentando a China; 2/ delegar a Israel o papel de gendarme do Oriente Médio, apoiando o genocídio palestino e reconfigurando o Oriente Médio em torno dos Acordos de Abraão com os regimes reacionários do Golfo; e 3/ Entregar parte da Ucrânia a Putin, às custas do povo ucraniano, e distanciar a Rússia da China.
g) Modificar o padrão de exploração nos EUA, reduzindo salários, aposentadorias/pensões e direitos trabalhistas, cortando serviços básicos (Medicare, Medicaid, educação, benefícios sociais) e reduzindo impostos para os ricos. As deportações de trabalhadores imigrantes visam impor o terror, reduzir seus salários e degradar suas condições de trabalho a um estado de semiescravidão. Elon Musk e, posteriormente, Sergey Brin (cofundador do Google) estiveram entre as primeiras figuras públicas a exigir uma semana de trabalho de 60 horas ou mais, imitando o magnata chinês Jack Ma (Alibaba), um ferrenho defensor do sistema 996 (das 9h às 21h, seis dias por semana) em vigor em amplos setores econômicos na China.
h) Avançar, para tudo isso, em direção ao presidencialismo autoritário: um regime político definido por severos cortes nos direitos democráticos e pelo desaparecimento do equilíbrio de poder característico de uma democracia liberal, em favor de um regime presidencialista bonapartista praticamente sem controles. Uma política que, longe de se limitar aos Estados Unidos, promovem ativamente em todo o mundo.
4. A Batalha pela Superioridade Tecnológica
Acabamos de assinalar que uma prioridade vital para os Estados Unidos é manter sua hegemonia tecnológica. Essa hegemonia está particularmente ligada às suas grandes empresas de tecnologia (big tech), seus desenvolvimentos em Inteligência Artificial (IA) e os semicondutores de ponta associados (chips). Sem dúvida, o inimigo a ser derrotado aqui é a China.
No artigo já mencionado da revista Marxismo Vivo nº 41, afirmamos: “Logo após a posse de Trump, grandes empresas de tecnologia americanas anunciaram na Casa Branca, um investimento multimilionário de US$ 500 bilhões. O objetivo: garantir o monopólio americano em IA, necessário para a apropriação global dos superlucros tecnológicos e para a hegemonia global americana.” [No entanto] “o surgimento, alguns dias depois, da sala de bate-papo chinesa sobre IA, DeepSeek, questionou esses planos e lançou dúvidas sobre a primazia americana em IA e o papel que a China desempenhará neste campo vital.”
Da mesma forma, o novo chip da Huawei (Ascend 920C) para IA deve ser destacado. Ele representa um avanço significativo, concede à China um grau significativo de autonomia em relação à Nvidia e permite que ela comercialize seus produtos no chamado Sul Global, começando pelo Sudeste Asiático, criando uma área vinculada ao seu modelo tecnológico.
Os EUA atualmente mantêm a hegemonia tecnológica, embora o final da história ainda não seja conhecido. Não é de surpreender que Jake Sullivan, ex-Conselheiro de Segurança Nacional de Biden, tenha declarado em uma conferência intitulada Projeto Especial de Estudos Competitivos (16 de setembro de 2022) que “a China não teria permissão para liderar a IA porque o domínio geopolítico do país estava subordinado à hegemonia neste campo”.
As Big Techs, ou seja, as Sete Magníficas (Alphabet/Google, Amazon, Apple, Meta/Zuckerberg, Microsoft, Nvidia, Tesla), além dos demais oligopólios tecnológicos do Vale do Silício, como OpenAI, Palantir (Peter Thiel) e Anduril, integraram seus negócios ao complexo militar-industrial, juntamente com as já clássicas Boeing, Lockheed Martin, Northrop Grumman e General Dynamics. Uma fusão entre a elite tecnológica americana e a elite militar está ocorrendo diante de nossos olhos, manifestada na recente nomeação pelo Pentágono de quatro tenentes-generais entre os executivos seniores da Meta, OpenAI e Palantir. Portanto, não é de surpreender que essas empresas de alta tecnologia estejam desempenhando um papel fundamental, como colaboradoras necessárias do exército israelense, no genocídio palestino, como a Relatora Especial da ONU, Francesca Albanese, acaba de denunciar.
Os oligopólios tecnológicos e o complexo militar-industrial, intimamente ligados, juntamente com os principais bancos e fundos de investimento de Wall Street, formam o núcleo central do capitalismo americano. O gabinete Trump é sua expressão política.
5. Manutenção da Supremacia Militar
A supremacia militar é a área onde o domínio dos EUA permanece mais firmemente estabelecido e onde Trump se apoia com particular intensidade, como vimos na política de modernização do arsenal, em sua estreita colaboração com Israel no genocídio palestino e no bombardeio das instalações nucleares do Irã.
Estamos vivenciando uma poderosa onda de rearmamento, na qual testemunhamos novos desenvolvimentos militares a cada semana, incluindo a modernização e o reforço de arsenais nucleares, bem como o surgimento massivo de armas de nova geração, equipadas com novas tecnologias, particularmente IA, e adaptadas a novos modos de guerra, em muitos casos testados na Ucrânia e em Gaza.
Os EUA lideram os gastos militares globais (US$ 997 bilhões/ano), seguidos de longe pela China (US$ 314 bilhões), em terceiro lugar pela Rússia (US$ 149 bilhões) e, de longe, pela Alemanha (US$ 88,5 bilhões), Reino Unido (US$ 81,8 bilhões), França (US$ 64,7 bilhões)[3] e outros.
Em meio a um rearmamento descontrolado, Trump está trabalhando em duas direções: de um lado, fazendo com que seus aliados na Europa e na Ásia paguem pelo envio global de suas tropas e, de outro, tentando redistribuir e concentrar suas forças na região do Indo-Pacífico, frente a China[4], enquanto delega as funções de gendarme do Oriente Médio ao estado genocida de Israel e, ao mesmo tempo, busca um acordo com a Rússia de Putin. Em uma demonstração repulsiva de servilismo dos países europeus da OTAN (cujos sistemas militares não são europeus, mas, acima de tudo, nacionais), Trump obteve recentemente um aumento em seus orçamentos militares para 5% do PIB. Esse aumento brutal, que acarreta severos ataques ao Estado de bem-estar social, faz parte da manutenção da dependência tecnológica dos sistemas de armas americanos e é acompanhado por enormes encomendas de grandes empresas de armas americanas. O mais recente carregamento de armas americanas para a Ucrânia será pago pelos países europeus da OTAN.
Tudo isso fortalece consideravelmente a indústria de armas dos EUA, reforça o peso econômico global de suas exportações e mantém a primazia política e militar dos EUA. Por exemplo, os caças F-35, fabricados pela Lokheed Martin, que são as aeronaves militares mais avançadas usadas pela maioria dos países da UE, não podem decolar sem a permissão do Pentágono.
6. Preservar o Domínio do Sistema Financeiro Internacional
Um dos objetivos centrais de Trump é manter o domínio do sistema financeiro mundial, em vigor desde a Segunda Guerra Mundial, baseado no papel do dólar como moeda universal e de reserva, dominante no comércio e nas finanças globais. Como resultado, uma verdadeira montanha de dívida federal – 25% dos títulos do Tesouro – é detida por outros países. Esse papel do dólar é o “privilégio exorbitante” de que falava o ex-presidente francês Giscard d’Estaign: aquele que permite aos EUA financiar seus déficits orçamentários e comerciais com dinheiro de terceiros países.
O dólar não corre o risco de ser destronado no curto prazo. No entanto, o tamanho da dívida federal (que não goza mais do mais alto status de solvência concedido pelas agências de classificação de risco) abre importantes brechas em seu papel como moeda universal. De acordo com o Federal Reserve de St. Louis (membro do Federal Reserve), a dívida federal em 2024 era de 120,7% do PIB dos EUA (US$ 40 trilhões). A agência de classificação de risco Moody’s prevê que a dívida atingirá 135% até 2035, com um déficit federal de 9% do PIB (contra 6,4% em 2024). O Escritório de Orçamento do Congresso indicou que a lei tributária recentemente aprovada aumentará a dívida federal em US$ 3,3 trilhões em 10 anos.
Tudo isso representa um enorme aumento nos gastos públicos, dedicados ao pagamento de juros crescentes e, como um círculo vicioso, ameaçando o papel internacional do dólar. Somam-se a isso os efeitos das tarifas de Trump, que também fortalecerão o papel de outras moedas (como o yuan e o euro) no comércio global.
7. Transformar a democracia liberal americana em um regime presidencial bonapartista
A estratégia de Trump tem como componente fundamental a transformação da democracia liberal americana em um regime presidencial bonapartista. Isso significa dissolver a tradicional separação de poderes em favor de um poder presidencial ilimitado, impor severas restrições às liberdades e direitos democráticos, reprimir a dissidência, estabelecer um controle rígido da população, subjugar a mídia e militarizar o país. Em um artigo recente, Robert Reich[5] denuncia “o perigo inerente do superbanco de dados da Palantir[6] [obtido da operação DOGE de Elon Musk] para todos os americanos [que inclui dados pessoais, de emprego, médicos, bancários e de mídia social], alimentado por inteligência artificial”.
Essa política, longe de se limitar aos EUA, abrange o resto do mundo e se expressa na colaboração aberta de Trump com a AfD alemã, Bolsonaro, Meloni, Orbán, Milei, Bukele e outras forças de extrema direita.
[1] Publicado na revista Marxismo Vivo núm. 21
[2] Trump encurralou a Organização Mundial do Comércio (OMC), retirou-se da OMS, do Tribunal Penal Internacional (TPI), do Conselho de Direitos Humanos da ONU e do Acordo de Paris das Mudanças Climáticas. A UNESCO já o fez em 2017. E não teve escrúpulos em pedir a anexação do Panamá, Canadá e Groenlândia (ambos membros da OTAN), contra os preceitos da ONU.
[3] Segundo o Instituto SIPRI de Estocolmo
[4] O ponto de maior tensão militar contra a China é, sem dúvida, o Estreito de Taiwan e o Mar da China Meridional. Em setembro de 2024, a Almirante Lisa Franchetti, então chefe das Forças Navais dos EUA, declarou que os combates navais no Mar Vermelho e o mar Negro servia para “preparar um ataque chinês a Taiwan”: “Estou muito focado em 2027”. O novo Secretário de Defesa de Trump, Pete Hegseth, observou em um memorando interno que a defesa de Taiwan é o único cenário para o qual uma grande guerra está planejada, o que significa fortalecer a presença militar dos EUA na região, particularmente submarinos, bombardeiros, drones, unidades especiais e fuzileiros navais.
[5] https://open.substack.com/pub/robertreich/p/palantir-the-worst-of-the-corporate?utm_campaign=post&utm_medium=web
[6] A Palantir é uma empresa de tecnologia do Vale do Silício de propriedade de Peter Thiel, um extremista de direita radical. De origem sul-africana, ele é um dos maiores apoiadores de Trump e padrinho do vice-presidente Vance. Intimamente ligado ao Pentágono, ele é um participante da linha de frente do genocídio palestino em Gaza e na Cisjordânia.