Brasil 61 anos do golpe: Lembrar para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

Por: Jeferson Choma
Não há dúvidas de que o premiado filme brasileiro “Ainda estou aqui”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, cumpre um papel notável: relembrar os odiosos crimes da ditadura militar instaurada pelo golpe empresarial-militar de 31 de março de 1964.
O excelente filme que retrata a dor e a tragédia da família Paiva, focando na mãe Eunice, após a prisão e o desaparecimento do marido, o ex-deputado Rubens Paiva, serve como porta de entrada para que muitos conheçam toda a covardia, brutalidade e violência de um regime de sangue que durou mais de duas décadas. Mas muita coisa dessa história ainda precisa ser passada a limpo.
A ditadura foi responsável por milhares de torturas e mortes. De pessoas que não ofereciam nenhum risco ao regime, tal como Rubens Paiva e sua família, passando por lideranças sindicais, camponesas, estudantis, indígenas e, inclusive, de militares que se posicionaram contra o golpe. São histórias que precisam ser retiradas das brumas do esquecimento. Lembrar para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.
Por que ocorreu o golpe militar?
O golpe foi uma resposta dos capitalistas brasileiros, grandes proprietários de terra, juntamente com o imperialismo estadunidense e políticos de oposição ao então presidente João Goulart, o Jango, a uma crescente efervescência de lutas operárias e populares nas quais o país estava mergulhado.
Naquele momento, greves aglutinavam setores amplos da classe trabalhadora e exigiam reajustes dos salários, 13° salário e uma lei para impedir a remessa de lucro das multinacionais às suas matrizes. Nos quartéis militares de baixa patente exigiam direitos políticos e melhores condições de trabalho. No campo, trabalhadores rurais e camponeses organizavam sindicatos, ocupavam terras e exigiam reforma agrária e direitos trabalhistas para os assalariados do campo.
Diante dessa efervescência de lutas, a burguesia e o imperialismo não hesitaram em derrubar Jango e iniciar uma implacável perseguição contra operários, camponeses e soldados revoltosos. O objetivo era erigir um regime autoritário contra o direito de lutar.
Não houve resistência ao golpe. Primeiro porque o governo burguês de Jango não queria fazê-la e segundo porque o então Partido Comunista Brasileiro (PCB), o maior partido da esquerda na época, com uma importante base operária e camponesa, esteve a reboque de Jango e não organizou a resistência que o momento exigia. Ao contrário, defendia o papel “legalista” das Forças Armadas, afirmando que elas defenderiam o governo. A falta de independência do PCB ao governo se revelou trágica, inclusive para os militantes do próprio “partidão”. A ditadura acabou com as liberdades democráticas, como o direito de greve, fechou sindicatos, impôs a censura, prendeu e torturou opositores (leia quadro ao lado) e proibiu os partidos políticos.
Repressão e superexploração dos trabalhadores
Sustentada por uma brutal repressão, a ditadura conseguiu impor uma superexploração dos trabalhadores com baixos salários e destruição dos direitos que haviam sido arrancados no passado. Essa foi a base do chamado “milagre econômico”, como ficou conhecido o período de 1969 a 1974, que, não por acaso, também entrou para a História como os “anos de chumbo”. Os militares prometiam crescimento e “divisão do bolo”. Mas o bolo cresceu e nunca foi dividido, e a desigualdade social aumentou. Os 10% mais ricos, que detinham 38% da renda em 1960, chegaram a ter 51% em 1980. Já os mais pobres, que tinham 17% da renda nacional em 1960, caíram para 12%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ditadura e os empresários
Mas a ditadura foi uma mãe para as multinacionais, que receberam muitos benefícios e colaboraram ativamente com a repressão, tal como a Volkswagen, a Fiat, a Cia. Docas de Santos, a Paranapanema, a Cobrasma, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Aracruz e muitas outras.
A ditadura entregou a Amazônia para a exploração das mineradoras estrangeiras, como fez no Projeto Carajás. Entregou terras às empresas na região, tal como os 3 milhões de hectares entregues ao capitalista estadunidense Daniel Ludwig para a construção do Projeto Jari; ou as terras entregues à Volkswagen, que abrigava em sua fazenda trabalhadores em condição de escravidão.
A corrupção correu solta na ditadura. Bilhões foram desviados das obras faraônicas, como da Rodovia Transamazônica, da Usina Nuclear de Angra, da Hidroelétrica de Itaipu. Não havia nenhuma fiscalização, a ditadura não prestava contas dos gastos públicos e quase nada era publicado na imprensa, que estava sob censura.
O final da ditadura foi marcado por um enorme endividamento externo com os grandes bancos estrangeiros. Foi de US$ 3 bilhões, em 1964, para US$ 100 bilhões, em 1984. A crise econômica que se seguiu impulsionou as lutas operárias contra o desemprego e a inflação galopante. A mobilização dos estudantes por liberdades democráticas, as ocupações de terras no campo e as greves operárias do ABC paulista emparedaram o regime. Os militares já não conseguiam mais governar e a ditadura acabou.
Mas o fim da ditadura não resultou na punição dos crimes cometidos por seus agentes. Por exemplo, o governo gasta R$ 140 mil por mês com as pensões dos assassinos de Rubens Paiva. Além da impunidade, os militares continuaram gozando de inúmeros privilégios e da preservação de sua ideologia autoritária.

O preço da impunidade
1964 é um cadáver insepulto na nossa história
Temendo o aumento da pressão popular, decisiva para o fim da ditadura, a grande burguesia do país e os militares pactuaram um “transição negociada” e varreram toda a sujeira dos crimes da ditadura para debaixo do tapete. Por aqui, nenhum militar ou torturador foi preso ou punido pelos governo da chamada “Nova República”. E todos os governos que se seguiram (de FHC, passando por Lula, Dilma e Temer) nunca investigaram seus crimes a fundo e puniram seus responsáveis. Um processo bem diferente do que ocorreu em outros países da América Latina, tal como no Chile, Uruguai e Argentina, onde muitos militares foram investigados, julgados e presos. Isso ajudou na desmoralização e desprestígio dos militares nesses países.
Entulho autoritário permanece
No Brasil, além de gozarem da impunidade, mantiveram-se inúmeros privilégios à alta cúpula das Forças Armadas, que existe como casta privilegiada, com tribunais próprios (a Justiça Militar, que em geral facilita a impunidade para seus crimes); salários milionários e as famosas pensões militares desfrutadas por filhas “solteiras”.
As escolas militares também tiveram preservado o conteúdo curricular e doutrinário, onde a “Revolução de1964” é ensinada como uma data a ser comemorada, e os alunos aprendem a doutrina da existência de um “inimigo interno”, o que justificaria o uso da força e de meios criminosos como torturas, prisões, execuções ou “sumiços” de opositores.
Um exemplo do chamado “entulho autoritário” é o artigo 142 da Constituição de 1988, que serve para que os generais mantenham a tutela sob o regime, sob a crença de que as Forças Armadas são um “poder moderador” diante de crises sociais e políticas. Apesar de não dizer isso, o que os militares interpretam é que a lei lhes faculta o papel de assegurar a ordem interna; quer dizer, o “direito” de intervir, internamente, contra a população e os demais poderes.
Outro exemplo é a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), medida criada pelos governos do PT, em 2013, cujo objetivo é “restaurar a ordem”. Foi por essa via que Bolsonaro teria planejado o golpe. Planejou-se assassinar o Presidente e o Vice-presidente, além do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, e depois aplicar a GLO, seguida da decretação de um Estado de Defesa e o Estado de Sítio, para assumir o controle do país.
O “entulho autoritário” também está presente na repressão assassina das Polícias Militares nas periferias e favelas, que vitima sobretudo os jovens negros. Nesses lugares as “liberdades democráticas” ainda são uma ficção, diante de chacinas e massacres rotineiros.
Por tudo isso, o “entulho autoritário” ainda serve como uma incubadora das ameaças golpistas por partes das Forças Armadas ou de políticos de extrema direita, como Bolsonaro, o qual defende torturadores covardes e generais assassinos.
Sem anistia para Bolsonaro
Lugar de golpistas é na cadeia

Bolsonaro e seus aliados pretendem realizar manifestações no próximo dia 16 de março para pressionar pela aprovação do projeto de lei que anistia os golpistas. É preciso repudiá-los com todo vigor e exigir a prisão e nenhuma anistia a golpistas e seus financiadores. O que aconteceu foi muito sério. Foi a tentativa de se impor novamente um regime de sangue e tortura no país. Isso não pode ficar barato.
Mas não dá para confiar que o Congresso, o STF e o governo Lula vão efetivamente punir os golpistas. Não podemos ter nenhuma ilusão em um governo que mantém José Múcio à frente da Defesa, um nome ligado ao bolsonarismo e que defende abertamente a anistia aos golpistas. Como acreditar em um governo que concilia com a cúpula militar que tentou destituí-lo e ainda aposta na aproximação com a direita, e setores da ultradireita, para escapar da atual crise que enfrenta? Ou em um Congresso, cujo recém-eleito presidente da Câmara, Hugo Motta, apoiado por Lula, chegou a defender anistia a golpistas?
A classe trabalhadora não pode ter nenhuma confiança nessa gente. É preciso mobilizar e reforçar a exigência de nenhuma anistia aos golpistas, investigação e prisão de todos eles, e nenhuma confiança nas instituições desse regime. A impunidade só vai alimentar novos golpes no futuro.