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Ucrânia

Entrevista com um ucraniano de Donbass

fevereiro 21, 2025

Por: Taras Shevchuk |

Mariupol: um campo de concentração em forma de cidade

Esta entrevista tem como objetivo mostrar o caráter genocida da agressão de Putin na Ucrânia, através do testemunho vivo de um adolescente da cidade de Mariupol, que desde a infância cresceu e sofreu a repressão perversa do chamado “mundo russo”. E também, para alertar que o inferno que ele descreve ainda não ficou para trás para muitas centenas de milhares de ucranianos e é uma ameaça real para outros milhões. Aqui estão nossas perguntas e suas respostas:

A invasão da Ucrânia pela Rússia começou em 2014 e, na época, o porto de Mariupol estava ocupado. Conte-nos sobre essa primeira ocupação, quanto tempo durou e como terminou?

A primeira ocupação em 2014 durou três meses. Eu tinha sete anos na época e me lembro do estrondo dos tiros de canhão. Também me lembro de como em janeiro de 2015 os russos bombardearam o distrito onde meus parentes moravam e me contaram como tiveram que fugir do bombardeio, viram muitos corpos jogados nas estradas. Mas então eu não entendia muito ou sabia o que estava acontecendo. Meus pais não falavam, não queriam falar sobre a guerra.

No início de 2015, as Forças Armadas da Ucrânia realizaram a Operação Shyrokyne, afastando a linha de frente da cidade para que a artilharia russa não pudesse alcançá-la. Depois disso, a vida ficou mais tranquila; não havia muitos soldados na cidade. Mas havia postos de controle nos arredores. E quando íamos para o mar, por exemplo, verificavam nossos documentos. Mas os militares tratavam os civis normalmente e lhes falavam em ucraniano e russo. Esse problema de idioma não existia em absoluto na cidade.

Mariupol

O regime de Putin disse ao mundo inteiro que “estava vindo para libertar os habitantes de língua russa do leste da Ucrânia dos neonazistas”. Por favor, explique-nos, como residente de Mariupol – o porto de Donbass no Mar de Azov – por que isso é mentira? Quem os apoiadores de Putin chamam de neonazistas? Por que a língua russa passou a dominar o ucraniano no Donbass ucraniano por décadas? Por que o retorno dos ucranianos à sua língua provoca tanta ira na Rússia de Putin?

Na realidade, são as consequências do “Holodomor” perpetrado por Stalin – a fome genocida em 1932-33 com a qual milhões de camponeses ucranianos foram exterminados – e depois habitantes da Rússia e de outras repúblicas foram trazidos para essas terras para trabalhar nas minas do Donbass em seu lugar. Além disso, a partir desses anos, a russificação de escolas e livros foi política de Estado em toda a URSS. É por isso que a língua ucraniana nativa foi deixada para trás no Donbass. A Ucrânia era como uma colônia. Após o colapso da URSS, a Rússia gastou e gasta muito dinheiro em propaganda de “tudo o que é russo”. Especialmente no leste da Ucrânia, que é próximo da Rússia e conectado a ela econômica e politicamente. E agora a Rússia diz que no leste da Ucrânia “todo mundo é russo”. Isso é falso. Evidente, havia algumas pessoas que estavam “esperando pela Rússia”. Mas não a grande maioria.

Não havia nazistas na Ucrânia. A Rússia simplesmente chama todos os habitantes de língua ucraniana da Ucrânia e todos aqueles que não querem viver sob ocupação russa de “nazistas“. É absurdo chamar de nazistas aqueles que querem falar sua própria língua em seu próprio país!

Mariupol estava preparada para a invasão de 2022? Conte-nos sobre os defensores de Azovstal, que atrasaram o avanço dos ocupantes russos por semanas, quem são eles?

A cidade não estava preparada para a invasão. Por exemplo, ao redor da cidade havia enormes campos que pertenciam ao oligarca Rynat Akhmetov, que também é dono da  siderúrgica Azovstal. Foi pedido a ele usar este terreno para a construção de estruturas defensivas, mas ele não o permitiu.

E os defensores da fábrica Azovstal – muitos morreram e muitos outros ainda estão presos na Rússia – eram ucranianos comuns que defendiam seu país. Eles não apenas lutaram contra os ocupantes, mas também protegeram os civis escondidos na usina, para se protegerem dos bombardeios russos.

Conte-nos como você e sua família sobreviveram aos primeiros dias da invasão em 2022. Como você sobreviveu à ocupação até poder sair?

Em 24 de fevereiro, às 4 da manhã, minha mãe me acordou e me disse que a guerra havia começado. Eu pensei que era uma piada, mas acabou sendo verdade. Houve combates muito pesados em nossa área, então no primeiro dia nos mudamos para a casa da minha avó. Estávamos transportando coisas e assistindo ao noticiário, tentando digerir o que estava acontecendo. Em 4 de março, os russos destruíram usinas de energia e cortaram o fornecimento de gás, eletricidade e água. Tivemos que cozinhar do lado de fora, cortar árvores no quintal e acender fogueiras. Bancos, mesas… tudo era usado para aquecer.

Várias bombas   Grad atingiram um prédio vizinho de 9 andares. E o prédio queimou por vários dias; havia um cheiro de queimado e cinzas que cobriam completamente a neve. Naquele momento, todas as lojas e empresas estavam fechadas e esvaziadas. Um armazém foi atingido pelo impacto de um míssil e os moradores estavam retirando e entregando comida em seus carros. Um dia, eles trouxeram pedaços de peixe congelados para o nosso quintal: os moradores do quintal se uniram e distribuíram os pedaços de peixe para todos os moradores. Demos nossos peixes para ajudar nossos vizinhos que já estavam ficando sem comida em casa.

Durante aqueles dias, era possível ouvir o zumbido constante de bombas e mísseis Grad. Você nunca sabe se um projétil está voando em sua direção ou não, então, se puder, deve se esconder rapidamente. E se estávamos nas ruas, escondíamo-nos nas entradas, no hall ou nos abrigos improvisados nos porões. Se alguém morasse nos pisos superiores, se escondia perto da parede de frente para o elevador, porque essas paredes são mais grossas. Quando os mísseis atingiram a casa vizinha, foi tão forte que tudo tremeu e o forro do nosso telhado caiu.

Depois disso, nos mudamos com tudo para o porão, devido aos frequentes bombardeios. Havia muitos compartimentos lá, mas é evidente que esses porões não estavam preparados para viver. As pessoas dormiam entre os canos. Mas todos nos ajudávamos mutuamente: aquecendo a comida e ajudando com o combustível. Os telefones foram carregados com baterias de carro. Alguns homens foram aos poços para pegar água. E então começou um bombardeio! Ficamos esperando por eles por horas… Não sabíamos se eles voltariam ou não… Mas depois, nos acostumamos tanto com os bombardeios que não desci do nosso quarto andar para o porão. Sensação de imensa tristeza. Você acorda de manhã e vê como sua cidade natal está sendo bombardeada….

No início de março, saímos de Mariupol. Queríamos chegar a uma cidade pequena, não muito longe da cidade. Éramos cinco famílias em um comboio. Em tecidos brancos, escrevemos “Crianças” para que não atirassem em nós. Mas dispararam morteiros contra nós, três granadas caíram. Mas eles não atingiram os carros, que foram danificados apenas por estilhaços. Foi justo naquele momento que os russos bombardearam a Universidade de Medicina. Naquele caos, nossos veículos circulavam desordenadamente… Mas conseguimos sair porque os postos de controle estavam sem controle. E naqueles dias, os habitantes abandonavam a cidade inclusive a pé. O mais chocante foi ver carrinhos de bebê abandonados por toda a cidade. Tudo isso junto com cadáveres de animais e de humanos.

Sentimos como se tivéssemos escapado do inferno. Mas… outro inferno veio em seguida

Quando chegamos àquela pequena cidade, sentimos como se tivéssemos escapado do inferno. Mamãe imediatamente ligou para minha irmã. Ela estava em outra região quando a invasão começou e pudemos falar com ela… pela primeira vez! Morávamos em uma pensão antiga e lá podíamos nos inscrever para receber pão. As lojas estavam fechadas, havia apenas feiras ou pequenos mercados camponeses espontâneos. Mas as pessoas não tinham dinheiro. Os ocupantes russos patrulhavam a aldeia em busca de soldados ucranianos. Eles impuseram o registro frequente de todos os novos residentes. Por exemplo, quando trouxeram um pouco de comida, que os ocupantes chamaram  de “ajuda humanitária“, filmaram todas as pessoas na fila.

Como é viver no “mundo russo”? Existem exemplos de russificação da cidade, de repressão, de terror?

Quando ainda estávamos na cidade de Mariupol, a rádio russa anunciou os pontos de onde os civis seriam evacuados. Um desses pontos foi o Teatro Dramático. Em seguida, os russos lançaram uma bomba naquele local, onde estavam localizados refugiados civis e crianças. E a propaganda russa difundia: “foram os próprios ucranianos que bombardearam”!

Os russos saquearam a cidade e levaram tudo. Por exemplo, a maternidade que foi bombardeada nos primeiros dias, todos os equipamentos foram destruídos nos combates e os que não foram, foram levados. Agora o prédio foi “restaurado”. Mas que tipo de equipamento existe? Só menos e pior.

Na pequena cidade, retomei a escola. Já controlada pelos ocupantes russos. Eles nos forçaram a aprender russo e a cantar o hino russo. Havia uma bandeira russa pendurada na entrada e na própria escola havia um retrato de Putin. Muitos alunos não queriam estudar sob a presença os ocupantes, passavam por este retrato e cuspiam nele. E no final do ano letivo, peguei um livro didático de literatura ucraniana da classe para salvá-lo da destruição e o dei a um amigo meu.

Os ocupantes realizavam vários festivais. Eles diziam que eram celebrações da “liberação” que haviam alcançado. E eles conduziam as pessoas obrigadas a comparecer lá sob ameaça. E alguns como eu, ao contrário, desenhavam listras amarelas e azuis com um marcador para mostrar aos alunos que devemos resistir à ocupação da Rússia e valorizar nossa terra, nosso país. Um professor que eles trouxeram escreveu denúncias contra aqueles que resistiam como eu. Havia “comitês de reeducação” que vigiavam as crianças. E esses comitês realizavam com eles propaganda contra o “nazismo na Ucrânia!!

Os ocupantes forçam todos os habitantes a adotar o passaporte interno russo. Mas com isso eles não podem sair do país. Para isso, devem ter um passaporte externo russo “zagranpassport”. O ucraniano não pode ser falado em Mariupol. Se escutarem a língua ucraniana, podem pará-lo e perguntar por que você fala ucraniano “em terra russa original”. As pessoas são reprimidas por falar ucraniano. A rádio, os canais de TV, a música… Tudo está em russo. Por isso, especialmente  me mudei totalmente para o ucraniano no início de 2023. Mas para sobreviver sob ocupação, é melhor fingir ser “apolítico” e não falar sobre suas próprias opiniões. Agentes russos à paisana escutavam o que os moradores diziam em locais públicos, monitoravam suas opiniões e escreviam denúncias, assim como na época stalinista!

A propaganda russa intimida os ucranianos sob ocupação. Dizem-nos que os refugiados do leste da Ucrânia serão imediatamente mobilizados para o exército russo, porque já não são queridos na Ucrânia…. Não posso contar detalhes de como e por onde consegui escapar. Mas, na realidade, quando deixei a ocupação para o território livre de russos, não encontrei nada parecido!

A propaganda russa espalha para o mundo inteiro como está reconstruindo a cidade. Como é realmente?

A suposta restauração da cidade é um show encenado para enganar quem assiste seus canais ou para desviar recursos de colaboradores corruptos e empresas contratadas. As casas lá estão em péssimas condições, tudo vaza, é impossível viver. É um campo de concentração na forma de cidade.

Você pode nos contar sobre alguma evidência de resistência?

Desde o início da guerra, me posicionei em defesa da Ucrânia e tentei ajudar meu país de todas as maneiras possíveis. Resisti à imposição da língua russa. Faltei às aulas de literatura russa na escola e resgatei da destruição livros didáticos de língua ucraniana. Fotografei navios russos no Mar de Azov e enviei as fotos. Nunca aceitei fazer discursos a favor da Rússia ou cantar sua música. Tentei por todos os meios evitar conversações com os russos. Assim que saí de casa, lia livros e tentei trabalhar no meu desenvolvimento pessoal.

Durante a ocupação, tive que ir obrigado para uma escola russa. Caso contrário, meus pais teriam perdido seus direitos parentais e poderiam ter sido deportados para a Rússia. Mas faltei a aulas inteiras. Ia, me registrava presente e me retirava. Na escola, além de literatura e geografia, havia o que eles chamam de “conversas sobre coisas importantes”: histórias sobre feriados russos e sua ideologia. Na verdade, é uma verdadeira lavagem cerebral de crianças e adolescentes. Na aula de geografia, nos obrigaram a desenhar mapas da Rússia, incluindo a Crimeia e o Donbass.

Soldados russos vieram à escola e nos mostraram suas armas: minas, rifles, etc. As armas com as quais eles atiraram em nós! E também nos chamaram, os estudantes ucranianos, a nos unirmos às forças armadas russas. Nos fizeram escutar o hino deles, e mesmo uma vez tive que me levantar porque estava na primeira fila e era perigoso ignorá-lo. Mas evitei me curvar de todas as maneiras possíveis. As pessoas que destruíram nossas vidas, que arruinaram todo o nosso futuro, querem nos convencer de sua bondade e nos repreender por nossa “ingratidão” por nos ter trazido seu “mundo russo”!

Resistimos como podemos

Fizemos grafites pró-ucranianos. Um dia, os ocupantes quiseram nos subornar e nos deram 10 mil rublos (equivalente a quase 100 dólares) para cada aluno. E com esse dinheiro compramos latas de tinta spray. E os grafites “Glória à FDU”, Glória às Forças de Defesa Ucranianas apareceram. Essa inscrição estava na parede da escola e durou 24 dias. Até que os ocupantes russos mudaram para “Glória às Forças Armadas de RF”, mas depois pintamos em cima novamente Glória à FDU.

Perto do pátio de outra casa havia uma escola ucraniana, que foi destruída durante a ofensiva e os russos só a restauraram dois anos depois. E lá entrei e encontrei uma biblioteca inteira de livros ucranianos e trouxe para casa 32 livros, coleções inteiras. Carreguei esses livros por dois dias e foi perigoso porque eles podiam me parar e me perguntar o que eu estava carregando ali. E meu quarto parecia um quarto ucraniano patriótico, com um pôster de Shevchenko! A maioria dos livros era da era soviética, mas também havia exames sobre a história ucraniana, por exemplo. E encontrei vários livros da época da independência da Ucrânia.

Resgatei livros ucranianos da destruição porque os ocupantes destroem tudo relacionado à Ucrânia. Porque todos aqueles livros estavam em uma sala? Porque os russos prepararam os livros para serem queimados. Os russos consideram os livros ucranianos “literatura extremista”.

O que você gostaria de dizer aos estudantes da Europa e do mundo, aos operários e aos trabalhadores comuns? Por que é tão importante apoiar a luta do povo ucraniano contra os ocupantes de Putin? Quão importante é essa luta para o mundo inteiro e as nações? E o mais importante, o que aqueles que lêem esta entrevista podem fazer? Como a Resistência Ucraniana pode ser especificamente ajudada?

A Ucrânia precisa ser apoiada porque os russos estão destruindo a cultura de outras nações e de seu próprio povo. Eles cometem genocídio contra outros povos. E isso não apenas desde a era stalinista, mas desde a época do império czarista. A cultura russa, a língua russa, a mentalidade imperialista estão simplesmente sendo impostas violentamente. Putinistas são pessoas com ideias fascistas. Eles causam muitos danos, até mesmo à natureza: hoje dois de seus petroleiros Krasnodar afundaram e poluíram seriamente o Mar Negro. O regime de Putin é perigoso para o mundo inteiro com suas agressões e ameaças. É um regime totalitário no qual muitas liberdades estão proibidas.

Se a Ucrânia cair, Putin intensificará sua ofensiva contra outros países. A Rússia apoiou regimes genocidas como o de Bashar Assad na Síria ou a Coréia do Norte militar e politicamente. Se não determos Putin aqui na Ucrânia, teremos mais guerras na Europa. Já vemos em Mariupol como eles tentam forçar os ucranianos a lutar pela Rússia!

Por isso é importante apoiar todos aqueles que lutam contra o autoritarismo. E aqueles que resistem ao imperialismo, como o povo palestino. Temos de estar atentos à resistência palestina contra Israel, para lutar contra o genocídio de Israel e a crise humanitária que provoca. Apoiar também aqueles estadunidenses que são contra os Estados Unidos ajudarem Israel a destruir os palestinos. Aprendi que é importante não ser indiferente, ser político, aprender com tudo o que está acontecendo. Ver, entender e ajudar na luta.

E a ajuda mais concreta é exigir que os governos forneçam mais armas aos ucranianos para que possam defender o mundo dos ocupantes russos. E, em geral, ampliar o apoio aos ucranianos. Se a Rússia assumir o controle da Ucrânia, as consequências serão muito mais nefastas.

Tradução: Lílian Enck

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