Bem cavado, velha toupeira! Notas (e polêmicas) sobre a revolução síria

Por: Fabiana Stefanoni e Francesco Ricci |
Nas últimas semanas, a Palestina e a Síria estiveram no centro da política mundial. Em ambos os casos, foi demonstrado que não há aparato militar ou regime sanguinário que possa impedir a determinação dos povos oprimidos que lutam pela liberdade. Quanto maior for o emprego de forças militares, recursos econômicos, inteligência e aparatos de propaganda pelos tiranos, mais gloriosa será a vitória dos povos que resistem. Foi o que aconteceu na Síria: nem a ajuda militar da Rússia nem os tesouros do palácio foram suficientes para reprimir as forças rebeldes e, acima de tudo, a vontade de liberdade das massas sírias. A revolução, aparentemente derrotada, continuou a cavar como a “velha toupeira” de Marx (1). Bashar al-Assad finalmente fugiu, a Síria finalmente se libertou de sua ditadura sangrenta. E em breve, esperamos poder comemorar, além da queda de Assad, também a expulsão definitiva dos sionistas da Palestina.
Quanto às notícias sobre a guerra na Palestina, referimo-nos a outros artigos publicados neste site (2). Vamos nos concentrar aqui na Síria. Na primeira parte do artigo, reconstruiremos a história da Síria, premissa necessária para entender o que está acontecendo hoje. Na segunda parte, discutiremos as leituras mais difundidas da esquerda, que em nossa opinião são profundamente errôneas.
Se interpretarmos corretamente a concepção materialista de Marx e Engels, devemos primeiro especificar que não há fórmulas para entender os eventos históricos. Parafraseando Engels, não se aborda a história como se fosse uma “equação de primeiro grau”. Não existem leis universais e necessárias ou esquematizações simplistas que possam nos ajudar a enquadrar eventos globais como os das últimas semanas. Como Lenin nos ensinou – além das instrumentalizações que reformistas e oportunistas quiseram fazer dessa frase – devemos nos aprofundar na “análise concreta da situação concreta”.
A situação na Síria é muito complexa e simplificá-la nos desviaria. Tentaremos analisar os últimos acontecimentos, apontando o que acreditamos serem os erros de interpretação mais frequentes.
Uma caracterização da Síria
Em 27 de novembro, começou uma ofensiva que levou à queda de Damasco e, portanto, do regime, e à fuga de Bashar al-Assad para a Rússia em 8 de dezembro.
A Síria é um país dependente, como a maioria dos países da região, incluindo a Palestina. É uma região onde todos os povos foram historicamente oprimidos, desde os tempos do Império Otomano (para nos limitarmos aos últimos séculos). Após a Primeira Guerra Mundial, após a queda dos otomanos, a região tornou-se objeto do olhar do imperialismo – e, a partir de certo ponto, da URSS stalinizada – que considerava esses territórios como espólios a serem divididos ou combatidos militarmente. É o que os imperialismos de hoje (e alguns países não imperialistas que, no entanto, exercem um papel hegemônico na região, como a Turquia e o Irã) continuam fazendo hoje.
Durante anos, a Síria foi ocupada por quatro exércitos estrangeiros: Estados Unidos, Rússia, Turquia e Irã. Está fortemente dividida em seu interior do ponto de vista étnico, existem diferentes nacionalidades e grupos étnicos: do árabe, que é a maioria, ao curdo; inclusive estes estão divididos internamente, basta pensar nas diferenças entre sunitas, xiitas, drusos, alauitas… bem como a presença do Daesh. Muitas dessas divisões e o fato de os curdos reivindicarem o controle de alguns territórios são uma consequência da forma como a Síria foi dividida após a Primeira Guerra Mundial: as fronteiras foram traçadas pelas potências imperialistas.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a Síria conquistou sua independência do Império Otomano, mas ficou sob mandato francês. Em 1946, foi reconhecido como um estado independente, mas sob o controle da Grã-Bretanha e da Liga Árabe. Na década de 1950, as relações com a URSS stalinizada se intensificaram: em 1963, a Síria entrou na esfera soviética e viu a consolidação no poder do partido Baath (“Partido do Ressurgimento Árabe e Socialista”), do qual a família Assad assumiu a liderança, que depois construiu um poder familiar opressor, que durou até dezembro de 2024.
Na década de 1970, a Síria de Assad teve alguns confrontos com Israel, determinados pelo contexto internacional (o da Guerra Fria): Israel representava (e representa) os interesses econômicos e geopolíticos dos EUA na região, enquanto a Síria caía na esfera de influência soviética. Deve-se notar que a Síria dos Assad também entrou em conflito várias vezes com organizações palestinas. Hafez al-Assad (pai de Bashar) invadiu o Líbano em 1976 para impedir que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e o Movimento Nacional Libanês mudassem o regime do país. Na década de 1980, a Síria bombardeou campos de refugiados palestinos no Líbano (e, como veremos em breve, este não será o último bombardeio de campos palestinos).
Ao contrário do que muitos stalinistas pensam, a história avançou desde a década de 1970. Na década de 1990, após a queda da URSS, os Assads iniciaram várias negociações com Israel, embora sem grandes resultados, e ficaram do lado dos Estados Unidos na guerra contra o Iraque. Depois do 11 de setembro de 2001 (ataque às Torres Gêmeas), Bashar al-Assad, que herdou o poder em 2000, mais uma vez confrontou os Estados Unidos.
Um passo fundamental foi a chamada “Primavera Árabe” de 2011, que preferimos chamar de “revoluções árabes”, revoluções que em poucos meses perturbaram as estruturas da região.
O ponto de virada das revoluções árabes
Essa onda revolucionária começou, precisamente, em dezembro de 2010, após um gesto extremo de um pequeno vendedor ambulante na Tunísia que se incendiou após ser maltratado pela polícia. Foi a faísca que iniciou o incêndio.
Começou uma onda de revoluções que dominou a Tunísia (em janeiro o chefe de governo Ben Ali foi derrubado), o Egito (em fevereiro o regime de Mubarak foi derrubado), a Líbia (em outubro Gaddafi foi derrubado e assassinado) e o Iêmen. Houve também protestos revolucionários na Argélia, Jordânia, Bahrein, Marrocos e Síria. Tudo isso depois de grandes mobilizações na Europa, desde Madri (Indignados) à Grécia, traídas pelas direções reformistas: os partidos reformistas do Podemos e do Syriza usaram os protestos como trampolim para políticas governamentais que não questionavam o capitalismo… e os resultados são visíveis hoje.
Como Lenin e Trotsky nos ensinaram, há anos em que parece que nada acontece, então, em momentos revolucionários, há dias que valem anos: foi o que testemunhamos então. Não hesitamos por um momento em definir esses eventos como revoluções, independentemente das direções hegemônicas, com base no que aprendemos com os revolucionários do século passado. Como Trotsky escreveu: “A história da revolução é para nós, acima de tudo, a história da irrupção violenta das massas no terreno onde seu destino é decidido” (3).
Faltava uma direção revolucionária marxista, e é por isso que, mesmo quando as revoluções conseguiram derrubar regimes que pareciam eternos, elas não levaram a resultados positivos: não levaram à expropriação da burguesia (ou seja, não colocaram a transição para o socialismo na ordem do dia) e a chegada ao poder de outras direções burguesas não consolidou nenhuma mudança substancial para as massas oprimidas.
O caso do Egito é emblemático. A Praça Tahrir, ocupada dia e noite, tornou-se o símbolo dessas revoluções, mas o resultado político foi catastrófico: após a queda de Mubarak, primeiro a Irmandade Muçulmana tomou o poder e depois, após outra insurreição, Al-Sisi assumiu o poder, cuja política não é substancialmente diferente da de seus antecessores (basta pensar no caso Regeni ou na política covarde durante a guerra de Gaza).
A Síria foi um dos países onde a revolução foi mais dura e mais longa: não conseguiu derrubar imediatamente a ditadura sangrenta de al-Assad, e há também uma razão, que veremos em breve.
A LIT-IV Internacional apoiou essas revoluções (4), lutando pela construção de uma direção revolucionária, com base em dois pressupostos: sem uma direção revolucionária marxista, as revoluções não têm chance de triunfar verdadeiramente, nem mesmo no terreno dos direitos democráticos (ver outros artigos nossos sobre o tema da revolução permanente sobre esse assunto) (5). Para ter credibilidade na construção de uma direção política alternativa, é necessário apoiar ativamente as revoluções, participar delas se possível, evitando ser grilos falantes que se limitam a dar aulas enquanto assistem aos acontecimentos da janela.
Síria: um processo revolucionário mais longo
Na Síria, o processo revolucionário foi, como dissemos, mais longo e mais difícil, com uma guerra civil que durou anos, também devido à constante intervenção de forças estrangeiras. Essa intervenção não é surpreendente: é uma região estratégica para o imperialismo do ponto de vista energético, com petróleo, hidrelétricas, gás natural.
A revolução síria começou em março de 2011, depois de outras revoluções. Um grupo de crianças escreveu “Liberdade” e “O Povo Quer a Queda do Regime” na parede da escola: eles foram presos e torturados. Foi a faísca que iniciou o incêndio. Houve enormes protestos em massa contra a ditadura de Assad. Vários exércitos foram formados (com deserções do exército do regime).
As revoluções não seguem os esquemas simplistas de alguns dos chamados revolucionários que nunca tomam uma posição porque esperam a revolução perfeita (que nunca virá). As revoluções estão cheias de contradições, assim como a síria, tanto pela heterogeneidade da frente revolucionária quanto pela complexidade das relações políticas na região, quanto pela intervenção de sujeitos externos interessados em controlar esses territórios.
Na linha de frente contra Assad havia (e ainda há) uma pluralidade de forças. Alguns rebeldes estavam ligados à Turquia, que sempre procurou aproveitar a guerra civil para estender seu domínio sobre a região (e oprimir os curdos). Outros rebeldes pertenciam a grupos islâmicos. Muitos combatentes eram de orientação democrática ou mesmo marxista (alguns batalhões eram até liderados por militantes que se autodenominavam trotskistas). Os curdos sírios (PYD) também se posicionaram contra Assad: exigiram, com razão, o direito de ter seu próprio Estado. Ao mesmo tempo, seus líderes políticos muitas vezes adotaram posições ambíguas, aliando-se aos Estados Unidos e chegando a compromissos com o próprio Assad.
Como em qualquer processo revolucionário que começa em um país dependente, o imperialismo não ficou de braços cruzados: Estados Unidos, França e Grã-Bretanha tentaram assumir o controle de alguns setores rebeldes, intervindo também diretamente com bombardeios. Inclusive forças islâmicas profundamente reacionárias, como o Daesh (EI), aproveitaram a situação e ocuparam alguns territórios.
Do lado de Assad, no entanto, encontramos imediatamente, além dos setores do exército leais ao ditador, a Rússia de Putin – que realizou bombardeios contra os rebeldes e abriu várias bases militares na Síria – e o regime iraniano, que enviou tropas. O Hezbollah também apoiou a ditadura, enviando milícias para apoiar Assad. Algumas milícias iraquianas, afegãs e iemenitas fizeram o mesmo.
É necessário apontar o papel nefasto desempenhado pelo stalinismo e seus epígonos (Cuba e Venezuela em primeiro lugar) neste contexto: assim como hoje na Ucrânia Cuba e Venezuela estão do lado de Putin, em 2011 eles imediatamente deram seu apoio incondicional a Assad. Foram cúmplices da falta de solidariedade internacional do movimento operário com a revolução síria, contribuindo para a dificuldade de construir uma direção marxista na Síria. Analisaremos brevemente as teorias delirantes das organizações stalinistas amigas de Putin, Maduro e do regime burguês cubano.
Por muito tempo a revolução parecia derrotada. Mas os eventos das últimas semanas mostraram que o fogo não foi extinto sob as cinzas.
A cumplicidade de Assad com o sionismo e a queda do regime
Também celebramos a queda de Assad, junto com muitos sírios. É o colapso de um regime que durou 54 anos, baseado na repressão sistemática, na tortura e no assassinato de dissidentes. A ferocidade inescrupulosa da ditadura causou mais de meio milhão de mortos e milhões de refugiados (muitos deles mortos no Mediterrâneo).
O regime de Assad também foi cúmplice no massacre do povo palestino. Em 2012, bombardeou repetidamente o campo de refugiados palestinos de Yarmouk, até que foi desmantelado. Como outros países árabes, não interveio na guerra iniciada em 2023, preferindo manter acordos de não beligerância com Israel. Não é por acaso que Israel decidiu destruir armas e bases sírias somente após a queda de Assad: o fez porque não tinha mais as garantias que Assad havia oferecido anteriormente. Na realidade, todo o imperialismo agora considerava Assad um mal menor, um baluarte contra o risco de uma revolução popular com resultados imprevisíveis. E todo o imperialismo agora está preocupado com o que pode acontecer na Síria.
Ao mesmo tempo, embora celebremos a queda do regime e a consideremos um resultado da revolução síria, não defendemos a atual liderança política da revolução (HTS), sendo um componente sectário da frente anti-Assad ligado à Turquia, que não tem intenção de romper com o imperialismo ou desmantelar totalmente as instituições do antigo regime nem de confiar o poder às massas populares. O HTS não está pedindo a retirada imediata das tropas americanas, russas ou turcas, nem está repelindo o ataque israelense. Não expropria os milionários que enriqueceram sob o regime de Assad e iniciou negociações com os países imperialistas.
Deve-se notar que os rebeldes pró-turcos do HTS não são os únicos que participaram da ofensiva. Alguns territórios foram libertados por outros grupos rebeldes, setores do Exército Livre da Síria ou grupos insurgentes. As ruas se encheram rapidamente: hoje o povo quer participar ativamente da construção de um novo regime político.
Certamente não foi um complô da CIA, como alguns querem nos fazer acreditar: o HTS está entre as organizações classificadas como terroristas pelos Estados Unidos. Mas está nítido que os Estados Unidos agora estão dispostos a lidar com eles (e por isso estão reduzindo seu apoio aos curdos, seus aliados históricos). Putin, atolado na Ucrânia, de fato, para além da hospitalidade na corte, deixou Assad para trás, preferindo negociar a manutenção de bases no Ocidente (Mediterrâneo). A Turquia depende do Exército Nacional Sírio para atacar os curdos. O Hezbollah está se retirando da Síria, assim como o Irã.
O que as revoluções árabes e, em particular, a revolução síria nos ensinaram é que as revoluções podem estourar a qualquer momento e têm um enorme poder contagioso. Não há revoluções “perfeitas”: mesmo a melhor revolução da história, a de outubro de 1917, estava cheia de contradições; basta ler a História da Revolução Russa de Trotsky para entendê-la. Devemos apoiar e intervir nas revoluções, promovendo a construção de comitês-conselhos operários e proletários e lutando pela construção de uma direção marxista.
Como trotskistas, acreditamos que o programa necessário em países dependentes, como a Síria e a Palestina, é o programa da revolução permanente: nenhuma conquista democrática (incluindo a independência nacional) pode ser alcançada se a luta por demandas democráticas não estiver entrelaçada com a das demandas socialistas, se o Estado burguês não for derrubado e substituído por um governo operário (a ditadura do proletariado).
Polêmica na esquerda
Quase toda a esquerda expressou uma opinião oposta à nossa. Antes de analisar quais posições foram expressas nas últimas semanas, é bom lembrar algumas coisas que explicam de onde vem a divergência de interesses e não de ideias.
Os partidos reformistas sempre têm dificuldade em reconhecer as revoluções. As revoluções, isto é, a fase aguda da luta de classes, são para eles um horizonte abstrato que nunca é alcançado na realidade. Em sua visão de mundo, há espaço, no máximo, para uma luta de classes que permanece interna ao mundo capitalista: um mundo que, além de uma retórica atraente que serve para convencer seus militantes de boa fé, eles não têm intenção de mudar. Isso é especialmente verdadeiro para as direções reformistas que têm uma base burocrática, ou seja, que têm interesses materiais dentro desta sociedade, aspirações de entrar (ou reentrar) em algum parlamento ou governo ou que precisam proteger pequenos nichos sindicais.
Soma-se a isso o fato de que a maioria das organizações da esquerda internacional e italiana se situam, com convicção ou “criticamente”, no que definem como um “campo anti-imperialista”, liderado (em sua imaginação) pela Rússia e pela China. Ignorando o fato de que o capitalismo foi restaurado em todos os antigos Estados operários, e que a Rússia e a China são hoje dois imperialismos emergentes lutando contra o imperialismo dominante, mas em declínio, dos Estados Unidos, eles se referem a esses dois países (ou a um dos dois) como se fossem “socialistas”: em particular, pode-se ler em suas longas publicações tratados sobre o “socialismo chinês”.
Nesse “campo” quimérico liderado por Putin e/ou Xi Jinping, estão incluídos os países amigos desse povo: Cuba (capitalista) que reprime as explosões populares contra o regime de Castro; a Venezuela de Maduro, uma das piores ditaduras da América Latina e, precisamente, a Síria de Assad. Não é por acaso que o regime anticomunista de Assad foi apoiado pelos dois partidos “comunistas” stalinistas da Síria.
Só com tudo isso em mente se pode entender como Paolo Ferrero da Rifondazione Comunista [Itália], ex-ministro da Solidariedade Social (sic) de um governo imperialista (Prodi 2), descreveu a derrubada de Assad como sendo liderada por “terroristas islâmicos” (sic) e “assassinos” relacionados aos “nazistas ucranianos” (um termo usado por Ferrero para indicar a resistência ucraniana à invasão russa) [6].
Enquanto a Rede Comunista, a organização [stalinista] que dirige (não declaradamente) o sindicato USB, e que faz parte do Potere al Popolo [PAP, uma coalizão eleitoral italiana], considera “retórica” falar sobre a revolução síria e “crimes indescritíveis do regime” e conclui que “o imperialismo estadunidense e outros atores regionais reacionários conseguem em poucos dias o que não conseguiram em anos e anos de guerras e negociações com o regime anterior” (7). Um regime anterior que a Rede Comunista incluía entre os que celebrou, como o venezuelano, e para o qual, há poucos dias, enviou uma delegação a Caracas para participar da manifestação “Juro por Maduro” e do lançamento da “Internacional Antifascista” promovida pela “República Bolivariana da Venezuela” (8).
Potere al Popolo, por sua vez, descreve o avanço das massas e a queda de Assad como algo que “deixou as populações da região à mercê dos jihadistas” e como uma espécie de avanço dos bárbaros, a tal ponto que, segundo o PAP, “já há relatos de mulheres capturadas para serem vendidas como escravas” [9].
Para apoiar sua tese e torná-la aceitável no movimento pró-Palestina, essas forças afirmam que a queda de Assad teria beneficiado Israel, que teria apoiado o HTS. Uma afirmação que é contrariada pelo fato de que Israel começou a bombardear instalações militares sírias apenas quando Assad já havia fugido para a Rússia, destruindo a frota síria e a principal infraestrutura militar em quase 500 ataques, precisamente porque não confiava nos insurgentes. Deve-se acrescentar também que o próprio HTS (antes de sua atual evolução pró-ocidental) expressou seu apoio às ações palestinas de 7 de outubro.
A realidade é exatamente o oposto: em meio século, o regime sírio da família Assad não disparou um único tiro contra o reduto sionista do imperialismo e tem sido uma garantia de estabilidade para Israel muito mais do que a atual situação de caos. Lembremos também que o HTS não é o único grupo lutando e que as massas sírias armadas não têm simpatia por Israel. Acrescentemos também que Assad, além de não ser um inimigo perigoso de Israel, em 2015, como dissemos acima, bombardeou o campo de refugiados palestinos de Yarmouk e sempre foi um oponente de fato da causa palestina. Isso explica por que sua queda, apresentada pelas forças citadas até agora como uma “conspiração sionista” ou CIA, foi celebrada pelos palestinos.
No entanto, reformistas e stalinistas não são os únicos que apoiam certas posições. Mesmo os partidos que corretamente definem o regime sírio em colapso como “reacionário” chegam às mesmas conclusões.
A TIR [grupo de orientação bordiguista que inclui vários dirigentes do sindicato italiano Si Cobas] assinou uma declaração conjunta com o Partido dos Trabalhadores da Argentina na qual afirma que com a queda de Assad “Não estamos diante de uma vitória popular ou democrática, mas de uma nova divisão da Síria, que a coloca (…) no ‘campo’ internacional da OTAN”. Ainda de acordo com esta afirmação, estaríamos “diante de uma tentativa de estabelecer um regime pró-imperialista” e a insurreição síria seria apenas “um episódio de guerra imperialista” (a mesma posição que leva a TIR a se posicionar equidistante entre o imperialismo russo e a Resistência Ucraniana) [10]. Na mesma onda encontramos também a Fração Trotskista (FT) dirigida pelo PTS argentino (11).
O argumento, articulado de várias maneiras por essas três organizações, parte da identificação do processo revolucionário sírio com sua atual liderança (o HTS), para apontar que o HTS certamente não é comunista e, portanto, concluir que é uma luta reacionária. Como mais uma confirmação desta tese, cabe destacar que o imperialismo também intervém neste cenário.
A falsidade desse silogismo, que prevê o reconhecimento de uma revolução apenas quando ela é dirigida desde o início pelos comunistas e não há interferência do imperialismo, pode ser demonstrada pelo absurdo. Se o raciocínio estivesse correto, também não haveria necessidade de apoiar a luta palestina, considerando que no momento a maioria de sua liderança está nas mãos do Hamas, que certamente não é uma força socialista. Mas podemos ir mais longe: se aplicássemos a fórmula segundo a qual todo processo revolucionário é julgado por sua direção inicial, não haveria de fato nenhuma revolução na história dos últimos dois séculos que pudesse ser definida como tal: nem mesmo a Comuna de Paris. (na qual havia menos de cinco marxistas puros), nem a Russa de 1905 (que começou como uma marcha de súplica ao czar, liderada por um padre que mais tarde se revelou estar a serviço do czar), nem a Resistência Italiana (dirigida pelos stalinistas), nem a Revolução Espanhola, nem a Portuguesa… e nem mesmo a de 1917, já que, antes de outubro e para chegar a outubro, os comunistas tiveram que passar pela revolução de fevereiro, liderados por partidos reformistas que inicialmente substituíram o czar por um governo presidido por um príncipe, e depois, para defender a propriedade burguesa, chegaram a ilegalizar Lenin e os comunistas.
A mesma linha descrita acima é apoiada, embora de forma mais refinada, pela recém-formada ICR (“Internacional Comunista Revolucionária”), anteriormente IMT- Corrente Marxista Internacional, de Alan Woods, representada na Itália pelo PCR (anteriormente SCR). Em sua interpretação, a derrubada de Assad não foi obra de um movimento de massas, o desenvolvimento de uma revolução que começou anos atrás, mas de grupos reacionários “tacitamente apoiados pela CIA e pelo Mossad” [12].
Na verdade, a concepção defendida (com argumentos diferentes) pelas três organizações citadas é ao mesmo tempo fatalista e oportunista. Fatalista porque não concebe a luta pela construção de uma direção revolucionária alternativa como uma necessidade que implica participação nos processos tal como estes acontecem: aqueles que esperam revoluções puras, disse Lênin, nunca as verão. Oportunista porque, por trás da aparente “pureza” da posição, permite nadar no sentido da corrente alimentada nos movimentos dos partidos reformistas e stalinistas.
Como argumentamos em outros artigos, certamente não queremos afirmar que em uma revolução a direção política seja irrelevante. Pelo contrário: somente uma direção coerente, armada com um programa revolucionário (o programa da revolução permanente), pode tornar possível uma vitória estratégica e a transição para o socialismo. Mas se alguém acredita que essa direção nascerá limitando-se a criticar a realidade porque ela não corresponde ao seu próprio esquema, pode esperar muito tempo. Somente participando ativamente da luta das massas e enfrentando as atuais direções reformistas ou burguesas podemos tentar construir a direção revolucionária internacional que falta.
A conexão com a luta na Palestina
Não é o tema central deste artigo, mas é útil acrescentar algumas linhas à guisa de conclusão sobre a trégua na Palestina, porque está entrelaçada com a questão síria e, sobretudo, porque está no centro do debate no movimento de apoio à Resistência Palestina (13).
Acreditamos que a trégua em Gaza, independentemente do tempo que durar (nesse momento as tropas israelenses intensificaram sua agressão na Cisjordânia), e estabelecida que não é uma vitória estratégica para a luta de libertação palestina, deve ser celebrada como uma importante batalha vencida, para a qual o levante que derrubou Assad também contribuiu indiretamente. É precisamente porque teme o efeito de contágio da Síria (além das necessidades contingentes ligadas à sua posse) que Trump forçou o recalcitrante Netanyahu a aceitar a trégua. O imperialismo estadunidense, em particular, precisa de uma diminuição do conflito na área para prosseguir com os “Acordos de Abraão” entre Israel e Arábia Saudita, que são funcionais para tentar manter a hegemonia dos EUA na região, limitando a inserção de imperialismos concorrentes da Rússia e da China.
Acima de tudo, é importante lembrar que, se existe hoje uma trégua frágil em Gaza e se Israel teve de libertar centenas de prisioneiros dos seus campos de concentração, isso se deve principalmente à heroica Resistência Palestiniana, que soube manter-se durante mais de um ano e colocou em fortes dificuldades um dos exércitos mais bem armados do mundo. E a insurreição síria, ao aumentar a instabilidade nesses territórios, favorece a causa palestina, além de incentivar outros povos a se juntarem à luta contra a entidade sionista e os regimes reacionários pró-imperialistas.
Uma confirmação de que as lutas de resistência e as revoluções podem avançar e triunfar. Digam o que disser os reformistas céticos, incapazes de levantar o nariz do mundo capitalista podre.
(1) A metáfora revolucionária da “velha toupeira” que cava incansavelmente e depois ressurge na superfície é aquela que Marx usa em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, adaptando um verso do amado Shakespeare em Hamlet (Ato I, cena 5). Hegel também retomou essa imagem (em suas Palestras sobre a História da Filosofia).
[2] Ver, em particular, o artigo de Fábio Bosco, “Cessar-fogo em Gaza: uma vitória parcial para os palestinos”
(3) TROTSKY, León. História da Revolução Russa, Volume 1 – Prefácio.
(4) Numerosos artigos sobre a «Primavera Árabe» podem ser encontrados no site www.litci.org.
(5) Sobre a revolução permanente, gostaríamos de nos referir ao nosso ensaio publicado no número 1 da revista teórica do PdAC, Trotskismo oggi, que pode ser baixado gratuitamente neste link https://libreria.alternativacomunista.it/trotskismo-oggi/?product-page=3
(6) Ver o artigo de Paolo Ferrero: “Agora na Síria os ‘terroristas’ são nossos aliados: uma típica limpeza da mídia ocidental” https://www.ilfattoquotidiano.it/2024/12/11/siria-terroristi-alleati-media-occidentali/7800546/
(7) Citamos da revista da Rede Comunista, Contropiano, o artigo de Giovanni Di Fronzo: “Síria: forze in campo e possibili scenari” [Síria: forças no campo e cenários possíveis»https://contropiano.org/documenti/2025/01/13/siria-forze-in-campo-e-possibili-scenari-0179263
(8) Ver https://contropiano.org/documenti/2025/01/13/internazionale-antifascista-il-programma-0179279
(9) A posição do PAP é expressa no artigo https://poterealpopolo.org/cosa-sta-succedendo-in-siria/
(10) A declaração conjunta da TIR (Corrente Revolucionária Internacionalista) com o PO (Partido dos Trabalhadores da Argentina) pode ser lida neste link https://pungolorosso.com/2025/01/04/per-il-raggruppamento-degli-internazionalisti-contro-la-guerra-imperialista-partido-obrero-tir-nar-sep-italiano-english/
(11) A Fração Trotskista (FT), a projeção internacional do PTS argentino, é representada na Itália pelo blog “La Voce delle Lotte”. Sobre a Síria, ele polemizou com nossa posição no artigo www.laizquierdadiario.com/La-LIT-CI-ante-la-caida-de-Al-Assad-otro-episodio-de-su-capitulacion-en-Medio-Oriente
A resposta da LIT pode ser lida neste link https://litci.org/es/fue-una-derrota-o-un-triunfo-de-las-masas/
(12) A posição do ICR (anteriormente TMI), na Itália PCR (ex-SCR), sobre a Síria é resumida no artigo significativamente intitulado “A queda de Assad. Islamistas assumem o controle da Síria” https://rivoluzione.red/la-caduta-di-assad-gli-islamisti-prendono-il-controllo-della-siria/
Para uma crítica das posições gerais dessa tendência, remetemos nosso recente artigo www.partitodialternativacomunista.org/politica/nazionale/polemica-con-scr-ora-pcr-e-altri-come-alcuni-leninisti-deformano-lenin
(13) A posição mais complementar da LIT e do PoAC sobre a trégua é defendida no artigo de Fábio Bosco citado na nota 2.
Tradução do italiano para o espanhol: Natalia Estrada
Tradução do espanhol para o português: Lilian Enck