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Síria: Foi uma derrota ou um triunfo das massas? Debate com a FT/PTS

Sírios comemoram o fim do governo Bashar al-Assad em Damasco, Síria (Foto: Reuters/Firas Makdesi)
janeiro 23, 2025

Por: Alejandro Iturbe

Em 8 de dezembro, após uma longa e sangrenta guerra civil, o povo sírio derrubou o sangrento regime ditatorial de Bashar Al-Assad, que estava no poder há 25 anos. Em um comunicado, a LIT-QI definiu este evento como uma grande vitória das massas sírias[1]. No início deste ano, a FT (Fração Trotskista, cuja principal organização é o PTS-Partido Socialista dos Trabalhadores da Argentina) publicou um artigo com fortes críticas a essa afirmação[2]. Neste artigo, abordaremos esse debate.

No quadro de um texto muito longo, a crítica da FT/PTS se resume neste parágrafo: “A LIT-QI demonstra mais uma vez a falência de sua tese morenista semi-etapista da ‘revolução democrática’. Descreve a derrubada de Al-Assad por facções islâmicas como uma ‘revolução democrática e popular’, adaptando-se assim mais uma vez ao campo burguês anti-Assad e a ninguém menos que potências como Israel, Turquia e o próprio imperialismo norte-americano, que buscam capitalizar a queda deste governo para seu próprio benefício”.

Neste parágrafo, a FT/PTS aborda três questões diferentes. A primeira é a crítica às elaborações de Nahuel Moreno e da LIT-QI sobre as “revoluções democráticas” nas décadas de 1970 e 1980. A segunda é uma caracterização de que o principal do que aconteceu na Síria foi que, após a derrubada de Assad, “facções islâmicas” tomaram o poder. A terceira é que Israel, Turquia e EUA teriam se beneficiado da derrubada de Assad. Vamos abordar cada uma dessas questões separadamente.

As críticas da FT às elaborações de Moreno e da LIT-QI não são novas: surgiram desde a própria origem do PTS, como uma ruptura com o MAS argentino e a LIT-QI, em 1988. Publicamos extensos artigos de discussão com essas críticas[3]. Nelas abordamos, por um lado, as questões fundamentais analisadas por Moreno, a partir da experiência histórica das revoluções da Segunda Pós-Guerra e da América Latina. Ou seja, a existência de processos revolucionários de massas contra regimes burgueses ditatoriais com o objetivo de derrubá-los e impor um novo regime. Por outro lado, como essas “revoluções democráticas” foram inseridas como um momento específico (com suas próprias palavras de ordem e táticas) na dinâmica geral da revolução permanente, de uma maneira diferente de como Trotsky as formulou em suas Teses da Revolução Permanente (incluídas no final de sua última versão, em 1929/1930).[4]

Moreno agiu como um verdadeiro marxista: estudou a realidade, constatou as contradições com a teoria e criticou e corrigiu aspectos da teoria que considerava errados. Em termos de lógica dialética, ele realizou uma ação de “negar afirmando”: “negou” os aspectos que considerava incorretos e “afirmou” a totalidade e a essência da teoria, a qual enriqueceu.

Para o PTS/FT, Moreno não só não deu nenhuma contribuição ao marxismo, mas suas elaborações foram uma adaptação aos modelos da dinâmica da revolução que haviam sido adotados pela maioria da direção da Quarta Internacional no período da Segunda Pós-Guerra II (encabeçada pelo grego Michel Pablo e pelo belga Ernest Mandel), que Moreno combateu com firmeza. Por outro lado, as análises e posições de Pablo e Mandel estavam próximas da visão stalinista da “luta dos campos opostos” e da “revolução em etapas”. O PTS chamou essa direção de “trotskismo de Yalta e Potsdam”, ao qual Moreno estava começando a se adaptar com suas elaborações. Nesse ponto, decidiu romper com o MAS e a LIT-QI para retornar ao “trotskismo de Trotsky”.

Um método dogmático

Para o PTS não havia divergência entre realidade e teoria (mesmo que fosse com aspectos dela). Tudo havia sido previsto por Trotsky e não tinha nada com que se preocupar, refletir ou corrigir. O nascimento da FT/PTS está intimamente associado a esse método que transforma o marxismo em um “dogma bíblico”.

Com base nesse método errôneo, essa corrente sempre faz análises e caracterizações equivocadas dos processos revolucionários de luta contra os regimes ditatoriais. Uma incompreensão que se aprofunda quando essa luta se transforma em guerra civil (uma das formas mais extremas da luta de classes) na qual se formam na realidade “campos militares opostos” (quer a FT/PTS goste ou não). Nesse caso, a questão chave é se um dos dois campos militares expressa, mesmo que de forma distorcida, os interesses e necessidades das massas. Ou seja, se em um deles o “povo em armas” participa como expressão do que Trotsky chamou de “intervenção direta das massas nos eventos históricos”.

Para ter uma política correta diante de uma guerra civil, é necessário diferenciar o “campo de classe” do “campo militar” porque, muitas vezes, no “campo militar” os campos de classe definidos pelo marxismo (burguesia e proletariado) são distorcidos e confusos. A burguesia foi dividida em facções que se enfrentam militarmente e um setor dela faz parte do “campo rebelde” e, muitas vezes, o lidera. Como se trata de frações burguesas, haverá setores reacionários, pró-imperialistas e até nitidamente contrarrevolucionários que a “vida” os obrigou a participar dessa luta para defender seus interesses de classe.

Neste quadro muito complexo, a única maneira de ter uma política revolucionária correta é responder à pergunta-chave que já fizemos: existe um campo militar

em que os trabalhadores e o povo participam porque podem defender melhor seus interesses de classe? Se assim for, nós revolucionários devemos fazer parte desse campo militar sem hesitação e apoiá-lo em sua luta. Em outras palavras, promover a unidade da ação militar com o “campo rebelde”.

Uma contradição aguda

Nesta situação, os revolucionários são confrontados com uma aguda contradição: como promover a unidade de ação militar e, ao mesmo tempo, combater politicamente as direções burguesas que compõem e/ou dirigem o “campo rebelde”, a fim de defender os interesses da classe operária contra aquelas direções que tentam permanentemente impedir sua ação independente e, se não o conseguem “por bem”, a atacam e reprimem. 

Trotsky enfrentou essa contradição na Guerra Civil Espanhola entre os campos militares republicano e franquista. No campo republicano havia vários setores burgueses da Catalunha e Madri que queriam parar e paralisar a revolução. A eles, se somou a ação contrarrevolucionária do stalinismo como o principal apoio da república burguesa.

Duas tarefas combinadas foram então propostas: participar ativamente do campo militar e, ao mesmo tempo, lutar contra a burguesia republicana e o stalinismo, a fim de construir um campo político de classe, independente, que preparasse as tarefas estratégicas da revolução socialista. Mas isso só pode ser feito com a condição de fazer parte do campo militar unificado, o que muitas vezes implica uma certa disciplina militar. É uma política com profundas contradições, mas é a única possível nessas condições.

Em um texto da época, Trotsky resumiu esses dois aspectos de uma política revolucionária: “Participamos da luta contra Franco como os melhores soldados e, ao mesmo tempo, no interesse da vitória sobre o fascismo, agitamos a revolução social e preparamos a derrubada do governo derrotista de Negrín. Somente tal atitude pode nos aproximar das massas.[5]

Neste e em outros escritos da época da Guerra Civil Espanhola, Trotsky deixa bem nítido que o ponto de partida de uma política revolucionária era participar “como os melhores soldados na luta contra Franco” (o eixo que, naquela época, mobilizava os trabalhadores e as massas), e combate duramente as propostas de não participar militarmente dentro do campo republicano (o “derrotismo”).

Consistente com sua posição, Trotsky orientou as pequenas forças dos trotskistas espanhóis para trabalhar em conjunto com a melhor expressão do anarquismo no país (“os amigos de [Buenaventura] Durruti”) e, assim, ser capaz de aplicar melhor sua política no “campo republicano”. O que a FT / PTS teria feito nessas condições: ser os melhores soldados contra Franco ou abster-se de “escolher o campo”?

O “derrotismo” do PTS diante da revolução síria

A FT/PTS reivindica ser a única representante do “trotskismo de Trotsky”. Sua editora (CEIP) republicou muitos de seus textos, incluindo aqueles que se referem à revolução e à guerra civil na Espanha. No entanto, parece ter interpretado mal seu conteúdo: diante da revolução e da guerra civil na Síria, tiveram uma política “derrotista” em relação ao campo militar “rebelde”, oposta à proposta por Trotsky na Espanha.

Para justificar sua política equivocada, a FT/PTS deve recorrer a várias “coberturas”. A principal delas é uma interpretação completamente distorcida do processo sírio desde seu início em 2011 até agora: Na dinâmica da luta de classes na Síria, até o final de 2011, prevaleceu o caráter de um levante popular, mas com a derrota dos apelos à greve geral e às mobilizações no início de 2012, afogados em sangue por Al-Assad, o caráter do conflito mudou definitivamente, algo que a LIT foi incapaz de caracterizar. O levante sírio estava sendo sequestrado, dando poder a movimentos reacionários e a seus patrocinadores estrangeiros.[6]

Da nossa parte, consideramos que é o método dogmático e o arcabouço teórico da FT/PTS que torna essa corrente “incapaz de caracterizar” todo o processo na Síria entre 2011 e a queda do regime de Bashar Al-Assad, seus altos e baixos e complexidades e, nesse curso tortuoso e cheio de contradições, seu fio de continuidade.

O primeiro erro da FT/PTS foi não caracterizar o processo iniciado em 2011 como um processo de revolução democrática contra a ditadura de Bashar Al-Assad, com uma nítida dinâmica insurrecional, mas apenas como um “levante popular” de muito menor profundidade. Nesse quadro conceitual, considera que esse “levante popular” é definitivamente derrotado. Pior ainda, a luta contra o regime ditatorial havia mudado de caráter: não expressava mais nenhum aspecto progressista e havia se tornado, em sua totalidade, uma luta de “movimentos reacionários e seus patrocinadores estrangeiros”.

Consistente com essa visão equivocada de dois campos militares igualmente negativos, a FT/PTS propôs uma política “nem-nem” para a Síria: nem Assad nem rebeldes. Ou seja, convocou os trabalhadores e as massas sírias a não realizarem nenhuma ação militar contra o regime e a esperarem pela revolução socialista na região e no mundo.

Definimos essa política da FT/PTS como sectária e propagandística. É sectária diante das lutas reais do movimento de massas, que tenta desenvolvê-las em condições complexas e cheias de contradições, porque não respondem às “receitas de manual”. É propagandística porque, em vez de propor políticas e táticas concretas que possam ajudar no desenvolvimento das lutas nessas condições, limita-se a repetir fórmulas gerais e aconselhar as massas a aceitá-las.

A LIT-QI, armada teórica e politicamente com sua concepção de que era um processo de luta revolucionária de massas contra uma ditadura, na medida de suas forças buscou intervir ativamente nela com políticas concretas, além de desenvolver uma grande campanha de solidariedade[7]. Por exemplo, se juntou a batalhões do Exército Livre da Síria que lutavam naquele país e ajudou a organizar uma viagem internacional de seu comandante Abou Maen para difundir sua luta, alcançar a solidariedade e, principalmente, exigir a entrega de armamento para essa luta[8]. Ao mesmo tempo, foi capaz de estabelecer fortes laços com ativistas e combatentes antiditatoriais que, em todos esses anos, foram forçados a exilar-se em outros países[9]. Estamos orgulhosos de tudo o que fizemos.

Pelo contrário, a FT/PTS limitou-se a acompanhar o processo sírio em jornais e telejornais e a dar o seu parecer a partir dos seus escritórios.   

“Novos atores” se juntam

Vejamos agora o que aconteceu na Síria desde o início do processo. Em 2012, o regime de Assad não teria sobrevivido à revolução sem a intervenção e o apoio militar das forças russas de Putin, do regime iraniano e das milícias libanesas do Hezbollah. Graças a esse apoio, conseguiu deter a ofensiva dos rebeldes em Damasco e, com métodos genocidas e de terra arrasada, recuperar o controle de uma parte significativa do território sírio. Foi, sem dúvida, uma derrota para as massas sírias. Mas isso não significou sua derrota final, como mostra agora a queda do regime de Assad.

Primeiro, o regime nunca ganhou o controle total do território sírio. Redutos rebeldes sobreviveram em Idlib e em partes de Aleppo e outras cidades. Por sua vez, os curdos alcançaram o domínio de toda a região que chamam de Rojava (quatro distritos no nordeste do país) com um pacto implícito de não agressão com Al-Assad.

Tornando a situação síria e regional ainda mais complexa, em 2014 surgiu um novo participante: o Estado Islâmico (EI) e seu projeto de construir um “califado” (ou seja, um novo país) com a parte do território iraquiano que já dominava e uma parte do território sírio[10].

Com esse projeto, suas forças avançaram “cortando” e dominando uma faixa no meio da Síria. Para consolidar esse domínio, o EI precisava tomar a cidade curda de Kobane, onde enfrentou forte resistência e acabou sendo derrotado[11]. A questão do povo curdo é uma questão de grande peso regional, abrangendo vários países em que são uma minoria oprimida. Em todos esses anos, lhe dedicamos vários artigos defendendo seu direito à autodeterminação e à reunificação em um único Estado curdo[12].

O EI era um “ator que não havia sido convidado” para o “drama sírio”. O imperialismo estadunidense considerou-o o “principal inimigo na região” e partiu para liquidá-lo, primeiro na Síria e depois no Iraque. Nesse contexto, estabeleceu uma aliança com a liderança curda de Rojava (o PYD), forneceu armas e treinamento militar às suas milícias e, com base nelas, construiu uma força armada capaz de derrotar e desalojar o EI e, ao mesmo tempo, dominar parte do território sírio (muito maior que Rojava).[13] Essa liderança curda tornou-se assim o principal aliado dos EUA no complexo cenário sírio. Uma política que se aprofundou durante a primeira presidência de Donald Trump. O imperialismo estadunidense procurava repetir a experiência bem-sucedida que havia feito com Masoud Barzani no Curdistão iraquiano (os curdos chamam essa região de Basur).

Nesse contexto, o exército turco invadiu o norte da Síria (país com o qual compartilha uma extensa fronteira). Como vimos em materiais já citados, na Turquia há uma forte minoria curda oprimida, no sul do país. O presidente turco, Recep Erdogan, considerou inaceitável o estabelecimento de um Estado curdo fortemente armado em suas fronteiras e com profundas conexões com os curdos da Turquia. Diante desse risco, Erdogan invadiu o norte da Síria e se apropriou do território daquele país. Seu principal objetivo era estabelecer um “cinturão de segurança” separando os territórios curdos da Turquia e da Síria e, assim, isolando os cantões curdos da Síria uns dos outros. A operação foi finalmente endossada por Donald Trump[14].

A Turquia completou sua ofensiva promovendo a formação de uma milícia síria a seu serviço (o chamado Exército Nacional Sírio), que controla esses territórios e nem mesmo parou de atacar os curdos em meio à ofensiva de várias forças contra Al-Assad[15].

Em todos esses anos, foi formado na Síria o que chamamos de um “complexo polígono de forças”, tanto pela dinâmica dos setores internos quanto pela intervenção direta ou indireta de potências internacionais e regionais que apoiam algumas dessas forças. Um polígono de forças nas quais, além do conflito central entre o regime de Assad e seus oponentes, outras foram combinadas. No campo anti-Assad, essas forças muitas vezes lutavam entre si. O território da Síria tornou-se cada vez mais fragmentado. Um mapa produzido pelo ISW (Instituto para o Estudo da Guerra) em 2018 mostra essa fragmentação[16]. Uma situação que, em outra guerra civil, foi chamada de “Libanização”.

Mas mesmo neste quadro complexo, é necessário analisar e caracterizar os processos e identificar a continuidade do fio condutor da luta revolucionária para tomar uma posição e fazer propostas concretas nos complexos processos que estão ocorrendo. Foi o que a LIT-QI fez ao longo de todos esses anos, realizando atividades de apoio público, mesmo em meio às dificuldades impostas pela pandemia[17].

O triunfo da revolução

No final de 2024, ocorreu um ponto crítico. Por um lado, o regime de Al-Assad estava muito enfraquecido. Sem o apoio das forças russas, iranianas e do Hezbollah (concentradas em outros conflitos), sua capacidade militar e seu exército começaram a “derreter”.

Nesse contexto, as forças rebeldes iniciaram uma ofensiva militar a partir de Idlib, com uma coluna de 20.000 combatentes, liderada pelo HTS (sigla árabe para a Organização para a Libertação do Levante). O exército sírio estava recuando sem combater.

O HTS é uma organização com ideologia islâmica sunita que surgiu no início de 2017 a partir da fusão de várias organizações. Propôs-se derrubar o regime de Al-Assad e instalar um governo islâmico[18]. Ganhava cada vez mais peso na luta contra o regime, tanto por sua capacidade militar quanto pelo enfraquecimento das facções laicas, duramente perseguidas e reprimidas por Al-Assad, cujos líderes foram assassinados ou tiveram que se exilar.

Uma coluna menor deixou a cidade de Deraa, no sul do país (perto da fronteira com a Jordânia). Esta cidade afirma ser o “berço da revolução” porque foi lá que ocorreram as primeiras mobilizações de massa contra a repressão do regime em 2011[19]. A coluna de Deraa chegou antes a Damasco: Os revolucionários de Deraa avançaram antes do combinado’, diz Khaled Joya, ex-presidente da Coalizão Nacional Síria, uma aliança de forças políticas da oposição”.[20] O processo se repetiu em outras capitais provinciais do sul do país, como Suweida e Quneitra, onde “grupos locais se levantaram em armas … ocuparam a cidade e começaram a penetrar nos bairros do sul da capital [Damasco] na noite de sábado”, antes que as forças do HTS chegassem aos bairros do norte.

Ao mesmo tempo em que as colunas armadas avançavam, nos bairros operários e populares da Grande Damasco, ocorreram levantes que retomaram experiências de auto-organização e mobilização dadas no início da revolução. Todas essas mobilizações avançaram sobre Damasco, tomaram as prisões, libertaram milhares de presos políticos de Al-Assad e começaram a perseguir e retaliar contra os militares do regime (que desesperadamente tiravam seus uniformes e tentavam fugir como podiam) e outros agentes do regime. Esse processo autônomo das massas, típico de uma revolução democrática triunfante, foi tão forte que forçou o HTS (que não tinha tal política) a ter que liderá-lo para centralizá-lo e “discipliná-lo”.

Nesse contexto, Bashar Al-Assad renunciou e, com a covardia típica de ditadores sanguinários, fugiu do país de avião para Moscou, onde Putin lhe deu asilo político.

Foi o triunfo de uma grande revolução democrática, depois de muitos e duríssimos anos de luta contra o regime ditatorial. Foi emocionante ver as multidões que celebraram aquele triunfo na praça principal de Damasco e em muitas outras do país[21]. A celebração foi repetida em várias cidades do mundo, onde vivem migrantes e exilados sírios, e em vários países do Oriente Médio[22].

A celebração do povo palestino, em vários lugares, pela queda de um ditador árabe que sempre foi inimigo de sua luta é muito significativa. Em 2015, atacou e destruiu fortemente o campo de refugiados de Yarmouk, forçando a maioria de seus 150.000 habitantes a fugir para outras regiões do país. Após a queda do regime, alguns desses refugiados voltaram para lá para tentar reconstruir suas casas[23]. Ao mesmo tempo, garantiu ao Estado sionista de Israel uma fronteira “pacífica e segura”.

Uma alegria que a LIT-QI compartilha com as massas sírias e palestinas diante do triunfo de uma revolução democrática, que apoiou e defendeu desde seus primórdios. Assim foi expresso na declaração, que recebeu tantas críticas da FT / PTS.  

Dando as costas para as massas

Em sua declaração sobre a queda de Bashar Al-Assad, esta organização reconhece que “milhares de sírios, dentro e fora de suas fronteiras, celebraram…”. No entanto, imediatamente, acrescenta: Entendemos sua alegria com a queda de um regime odiado e sua esperança de voltar para casa e desfrutar da libertação, ainda que lamentavelmente não possamos compartilhá-la“.

Qual é o principal fator que a FT/PTS considera para dar as costas à alegria das massas pelo que justamente consideram um triunfo de sua luta: o caráter das direções do processo de luta contra o regime de Al-Assad. Um critério que já havia usado para qualificar a Guerra Civil Síria, que levou à queda da ditadura, como uma “guerra reacionária” com “dois lados iguais”.

Agora estende esse critério ao resultado dessa guerra civil: “As forças que derrubaram Al-Assad e tomaram o poder em Damasco são um conjunto heterogêneo de facções islâmicas e milícias apoiadas pela Turquia”. Os processos autônomos das cidades do sul do país e dos bairros da Grande Damasco são analisados com desprezo porque não atingem o nível dos shoras (conselhos operários e populares da revolução iraniana de 1979).

Em todas as suas análises sobre o que aconteceu na Síria, a FT/PT comete um erro típico dos sectários dogmáticos: caracterizar os processos de luta das massas pelo caráter político-social de suas direções e não pelo conteúdo objetivo do processo. Este é um erro grave, porque a crise da direção revolucionária significa que muitos processos de luta (especialmente os de revoluções democráticas contra ditaduras ou lutas anti-imperialistas contra invasões e agressões) são liderados por direções burguesas e reacionárias. No contexto desta profunda contradição, nós revolucionários devemos saber caracterizar o conteúdo objetivo e profundo desta luta e, se for progressista, “temos um lado”, intervimos ativamente nela e celebramos quando triunfa.

Pelo contrário, diante dessa contradição, a FT/PTS diz “obrigado, não fumo, vou esperar um processo de luta sem tantas complicações”, e o analisa a partir de seus escritórios. No caso da Síria, eles aprofundaram essa atitude. Sabemos que temos concepções diferentes diante desse tipo de processo de luta. Podemos até entender que eles caracterizaram que estava “morto” entre 2012 e 2014. Mas diante da continuidade da luta e seu triunfo, celebrado pelas massas, seu pedantismo sectário diante dos processos políticos reais que as massas estão experimentando atinge níveis incríveis. Para a FT/PTS, a luta das massas sírias e sua vitória foram inúteis por causa do caráter da liderança: “Sua vitória não é um bom presságio para a maioria da população síria”.    

Para nós, a queda de Bashar abre uma segunda fase do processo revolucionário sírio. Um componente central desta segunda fase é, sem dúvida, o caráter burguês do HTS, que já “mostrou sua forma” no curto período do novo governo que conseguiu instalar em Damasco: como todas essas organizações islâmicas que chegam ao poder, querem um lugar “debaixo do sol”. Seu objetivo é ser aceito pelas potências internacionais e regionais, no âmbito da manutenção do capitalismo no país. Por isso, busca relações tranquilas com o imperialismo estadunidense, com Turquia, Irã, Arábia Saudita, Catar, Rússia e China, na busca de investimentos para “reconstruir” o país. Também disse que respeitará o cessar-fogo com Israel nas Terras Altas. Por outras palavras, também dará as costas ao povo palestino. É nesse sentido que este governo “não prediz nada de bom”.

Mas isso é apenas parte da realidade. A outra é que a queda de Bashar foi o resultado de uma grande luta das massas que, além da coluna controlada pelo HTS, também realizaram muitas ações autônomas. Massas que se sentem fortalecidas por esse triunfo e com a vontade de alcançar suas aspirações democráticas, econômico-sociais e de apoio ao povo palestino.

Assim, abre-se um possível período de luta entre as massas e o governo HTS por essas aspirações. Uma luta cujos ritmos, dinâmicas e métodos terão que ser considerados com base na realidade (a evolução das ações, a experiência e a consciência das massas). Longe de embelezar ou capitular a essa direção, a LIT-QI denuncia a política do novo governo e propõe às massas sírias um programa de luta, para que essa luta seja a chama que acende uma nova onda de revoluções na região e de apoio ao povo palestino contra o Estado sionista de Israel. Pode fazê-lo a partir do respeito que conquistou por seu apoio permanente à luta do povo e pelos laços que estabeleceu com seus combatentes e exilados. A FT/PTS, por sua vez, continuará a “pregar” de seus escritórios.

Uma estranha coincidência

Em um de seus textos, a FT/PTS cita uma entrevista com Gilbert Achcar, que compartilha suas análises e caracterizações sobre o significado da queda de Bashar e as perspectivas para a situação síria: não é uma revolução”.[24]

Gilbert Achcar é um professor universitário e intelectual libanês radicado na França. Ele é a principal referência em questões relacionadas ao mundo árabe da corrente que no movimento trotskista era conhecida como Secretariado Unificado da Quarta Internacional (ou simplesmente SU), cujo principal guia foi por décadas o falecido trotskista belga Ernest Mandel (Mandelismo). Ou seja, o principal expoente do que a FT/PTS definiu como “trotskismo de Yalta e Potsdam”, com o qual era necessário romper para retornar ao “trotskismo de Trotsky”.

Devemos acrescentar que, após a restauração capitalista, apesar de manter o nome de Quarta Internacional, o SU adotou um curso profundamente revisionista cada vez mais à direita, abandonou o programa trotskista e a luta pela revolução para adotar um programa cada vez mais reformista e pacifista, do qual Gilbert Achcar é seu principal expoente no que diz respeito ao mundo árabe. Ao longo desses anos, debatemos muitas vezes com seus artigos[25].

Vamos examinar mais profundamente essa abordagem. O que caracterizou o setor do trotskismo que a FT/PTS chama de “Yalta e Potsdam” (a linha Pablo-Mandel) foi sua capitulação ao stalinismo. Na Síria, a maioria da esquerda mundial (derivada do stalinismo ou influenciada por seus critérios de análise da realidade mundial) ficou do lado da ditadura de Bashar al-Assad contra os rebeldes. Uma parte minoritária, como a LIT-QI e outras organizações trotskistas, estava no campo militar rebelde (seguindo a orientação de Trotsky para a Guerra Civil Espanhola).

Em uma guerra civil como a da Síria, onde os trotskistas tinham que “ter um lado”, adotar uma posição “Nem Assad nem rebeldes” significa uma capitulação e uma adaptação oportunista à posição do stalinismo. Exatamente a mesma coisa que o “trotskismo de Yalta e Potsdam” fez.

No entanto, para atacar o morenismo e a LIT-QI, a FT/PTS não “fica corada” utilizando, em seu apoio, suas coincidências com a evolução degradada dessa corrente. Uma coincidência que, na realidade, qualifica a FT/PTS e a sua evolução para a direita nos últimos anos[26].    

Tradução: Lílian Enck


[1] A queda de Al Assad é uma vitória para o povo sírio e para os oprimidos do mundo! – Liga Internacional dos TrabalhadoresLiga Internacional dos Trabalhadores

[2] https://www.laizquierdadiario.com/La-LIT-CI-ante-la-caida-de-Al-Assad-otro-episodio-de-su-capitulacion-en-Medio-Oriente

[3] Veja, por exemplo, “O sectarismo mata o conceito de revolução” em Marxism AliveNew Epoch No. 3 (setembro de 2013, (pp. 53-72) em https://archivoleontrotsky.org/view?mfn=16154 e

https://litci.org/es/fraccion-trotskista-pts-del-sectarismo-propagandistico-al-oportunismo-electoralista-parte-i/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[4] https://www.marxists.org/espanol/trotsky/revperm/index.htm

[5] https://ceip.org.ar/Contra-el-derrotismo-en-Espana

[6] https://www.laizquierdadiario.com/La-LIT-CI-ante-la-caida-de-Al-Assad-otro-episodio-de-su-capitulacion-en-Medio-Oriente

[7] https://litci.org/es/solidaridad-internacional-con-la-revolucion-siria/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[8] https://litci.org/es/buenos-aires-acto-en-apoyo-a-la-revolucion-siria/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[9] https://litci.org/es/en-acto-virtual-militantes-y-refugiados-conmemoran-los-diez-anos-de-la-revolucion-siria/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[10] https://litci.org/es/un-ano-de-califato-en-irak-y-siria/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[11] https://litci.org/es/la-victoria-del-pueblo-kurdo-en-kobane/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[12] https://litci.org/es/sobre-la-lucha-del-pueblo-kurdo/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[13] https://litci.org/es/rojava-kurdistan-sirio-las-alianzas-peligrosas-del-pyd/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[14] https://litci.org/es/repudiamos-el-ataque-del-ejercito-turco-contra-rojava-kurdistan-sirio/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[15]https://www.pucara.org/post/el-conflicto-en-siria-trae-m%C3%A1s-actores-turqu%C3%ADa-las-potencias-sunitas-los-intereses-europeos-la-i

[16] https://www.understandingwar.org/project/control-terrain-syria e https://ichef.bbci.co.uk/ace/ws/640/cpsprodpb/6971/live/bd85fc50-b7d0-11ef-a0f2-fd81ae5962f4.png.webp

[17] https://litci.org/es/en-acto-virtual-militantes-y-refugiados-conmemoran-los-diez-anos-de-la-revolucion-siria/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[18] https://www.longwarjournal.org/archives/2017/02/hayat-tahrir-al-sham-leader-calls-for-unity-in-syrian-insurgency.php

[19] https://www.hrw.org/news/2011/06/01/syria-crimes-against-humanity-Deraa

[20] https://elpais.com/internacional/2024-12-08/los-rebeldes-derriban-el-regimen-de-el-asad-tras-13-anos-de-guerra-y-el-dirigente-huye-de-damasco-en-avion.html

[21] https://www.youtube.com/watch?v=12TUVfiIp5U

[22] https://www.france24.com/es/medio-oriente/20241208-en-im%C3%A1genes-los-sirios-en-el-mundo-celebran-la-ca%C3%ADda-de-bashar-al-assad

[23] https://www.youtube.com/watch?v=Y0SOm8nIGx8

[24] https://vientosur.info/el-colapso-del-regimen-de-assad-entrevista-con-gilbert-achcar-sobre-siria/

[25] Veja, por exemplo: https://litci.org/es/debate-con-gilbert-achcar-sobre-palestina-piedras-contra-tanques-y-misiles/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

[26] https://litci.org/es/fraccion-trotskista-pts-del-sectarismo-propagandistico-al-oportunismo-electoralista-parte-ii/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

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