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Argentina | Sobre a carta de Cristina a Milei

outubro 2, 2024

Este mês, o presidente Javier Milei e Cristina Kirchner trocaram mensagens no Twitter com “artimanhas” mútuas. Milei disse que Cristina “sabia pouco sobre economia”; ela respondeu que ele “passa tempo brincando nas redes” e que deveria se dedicar a “administrar o Estado porque os argentinos estão passando por um momento muito, muito ruim” [1]. É um jogo político mediático que é útil para ambos.

Por: Alejandro Iturbe

O governo Milei continua seus ataques aos trabalhadores e ao povo a serviço do grande capital e do pagamento da dívida com o FMI. Ele agravou a profunda crise socioeconômica e nem sequer reverteu realmente à inflação. As expectativas no governo diminuem, e está perdendo parte do apoio daqueles que votaram nele. Uma pesquisa recente estimou que “57% dos argentinos desaprovam a gestão de Javier Milei… 69% acreditam que ele mente quando diz que “aplicou a motosserra à política e não ao povo”, e 70% acreditam que ele “governa para o benefício dos ricos” [2].

Por sua vez, Cristina Kirchner e o peronismo saíram de seu último governo muito desacreditados e perderam uma parte significativa de sua base eleitoral histórica que acabou votando em Milei. Depois disso, Cristina “se escondeu” e orientou o peronismo a não enfrentar nas ruas o governo e seus ataques. Essa orientação foi expressa na frase “deixa ele se queimar”. Muito recentemente, seu filho Máximo (deputado nacional e líder do peronismo em Buenos Aires), diante do veto presidencial ao aumento das aposentadorias votado na Câmara dos Deputados, declarou: “Não há necessidade de se irritar com o veto. O presidente foi eleito por 56% dos votos em novembro e o veto é um poder constitucional. Temos que parar de espernear, temos que começar a construir, a nos organizar” [3].

Em outras palavras, Cristina e Máximo dizem que temos de deixar Milei governar “em paz”, para que ele possa fazer o “trabalho sujo” do ajuste e dos ataques aos trabalhadores. Não há necessidade de lutar contra suas medidas e seu plano. Apenas preparar um retorno eleitoral do peronismo, que hoje está muito fragmentado e a liderança de Cristina cada vez mais questionada.

Neste contexto de “crise simétrica”, Milei e Cristina escolhem um ao outro como “inimigos” para polarizar o debate político na falsa alternativa que nos oferece o sistema capitalista. Milei apresenta Cristina como uma expressão da “velha” forma de “governar” que deve ser superada. Cristina apresenta Milei como um presidente preocupado apenas com sua imagem e insensível aos problemas do “povo” e que, por essa razão, não se dedica a “administrar” o Estado. Desta forma (“comigo ou contra mim”), ambos tentam esconder as verdadeiras causas da deterioração de sua influência política.

O programa que emerge da carta

Logo após a troca de mensagens, Cristina Kirchner publicou uma extensa carta que aprofunda o debate com Milei, com a premissa de que, sob os governos peronistas do século XXI, “as pessoas estavam em melhor situação”[4].

Ao mesmo tempo, tenta responder à pergunta “quando o peronismo deu errado?” devido a políticas que os seus últimos governos não aplicaram. Ao longo da carta, Cristina apresenta uma “autocrítica” da qual emerge a política que um futuro governo peronista deve aplicar. Vamos esclarecer o que “não fez” e agora deve ser feito:

  1. “Não advertiu sobre a modificação das relações de trabalho da população economicamente ativa”. Ou seja, realizou uma profunda reforma das leis trabalhistas para adaptá-las às novas (e muito piores) condições impostas pelo capitalismo atual.
  2. “Não promoveu a reversão do déficit fiscal por meio da redução dos gastos tributários…”. Ou seja, não ajustou suficientemente o orçamento do Estado.
  3. “Não promoveu uma revisão e reforma profunda da educação pública. Ou seja, não a reduziu e enfraqueceu conforme necessário para o capitalismo.
  4. Por fim, durante os governos peronistas não houve um “plano de segurança abrangente”. Algo como “não reprimimos o necessário”.

As profundas coincidências com Milei

Em princípio, essas medidas propostas por Cristina implicitamente são muito semelhantes às que Milei agora aplica de forma grosseira e “sem anestesia”. São coincidências que explicam por que ela propõe “deixá-lo governar”. Ao mesmo tempo, são coincidências que têm raízes muito profundas, conceituais e de classe.

Tanto Cristina Kirchner quanto Milei governam para o capitalismo dentro do regime burguês. Milei faz isso de forma ostensiva e orgulhosa, Cristina e o peronismo tentam disfarçar a realidade. Mas durante seu último governo, como vice-presidente, declarou: “O capitalismo provou ser o sistema mais eficaz para a produção de bens e serviços” [5].

Na Argentina, isso significa governar dentro de um capitalismo semicolonial submetido ao imperialismo ianque, ao FMI e às grandes empresas nacionais e estrangeiras. A própria carta de Cristina reconhece essa realidade, ao assinalar que, através dos governos argentinos, “passaram macristas, peronistas e agora até libertários, todos sob o estrito controle do FMI”.

A crise do sistema partidário burguês

Neste ponto, é necessário ampliar a perspectiva. Em 2001, o capitalismo semicolonial argentino chegou a um ponto de falência. A resposta das massas foi o Argentinazo e o repúdio ao regime político que o sustentava (o “fora todos”). Esse regime (baseado no bipartidarismo peronista-UCR) ficou em ruínas.

Não é o objetivo deste artigo analisar em profundidade o que aconteceu desde 2001 até agora. Mas a burguesia argentina conseguiu tirar das ruas a ação das massas, colocar os processos eleitorais de volta no centro e, assim, recompor o regime burguês. Duas coalizões foram formadas (uma peronista e outra em torno de Macri) para se alternarem no governo através de eleições quando a outra se esgotasse.

Ambas as coalizões terminaram seus últimos governos muito enfraquecidas e desgastadas. É aí aparece Milei, com seu discurso de “capitalismo bruto” e seus ataques à “casta política” como responsável pela crise econômico-social (ele até se apropria do “fora todos”). Dessa forma, ele não apenas conseguiu deslocar Macri e o macrismo como o centro da alternativa burguesa contra o peronismo, mas também capturar um segmento muito importante dos votos dos trabalhadores que tradicionalmente iam para o peronismo, cansados da deterioração de sua situação durante o último governo de Alberto Fernández-Cristina Kirchner-Sergio Massa e das mentiras do peronismo.

No contexto em que ambas as coalizões se encontram num processo de fragmentação e crise, o governo de Milei coloca estas expressões políticas fragmentadas da burguesia diante da alternativa de aderir ao seu governo, apoiar suas medidas ou exercer algum grau de “oposição”.

O momento atual

Como vimos no caso de Cristina Kirchner, toda a burguesia argentina é a favor das políticas fundamentais que Milei está adotando (submissão ao FMI, reforma trabalhista e ajuste do Estado). Nesse contexto, surgem duas questões que empurram alguns setores a uma “oposição amigável”.

Por um lado, a aplicação irrestrita da política promovida pelo governo e suas consequências sobre a dinâmica atual da economia liquidam muitos setores pequeno-burgueses (aqueles que trabalham para o mercado interno, economias regionais ou os prestadores de serviços do Estado). É por isso que, por exemplo, eles tentam atenuar a versão inicial do RIGI (Regime de Incentivos a Grandes Investimentos).

Por outro lado, como questão central, está cada vez mais claro que o governo de Milei está perdendo apoio e o clima social está “esquentando”. Um agravamento da crise econômico-social e um aumento dos confrontos com os planos do governo e do FMI poderão ser uma situação crítica para a burguesia. A preocupação de muitos setores burgueses (incluindo a Igreja) é tentar evitá-la (especialmente um aumento da luta dos trabalhadores e das massas) e tentam canalizar e para isso levar tudo para o terreno eleitoral.

Assim, começa a tomar forma uma possível conformação de uma nova coalizão burguesa que se apresente como alternativa a Milei em 2027. Em sua carta, Cristina Kirchner expressa isso ao propor “organizar uma força política que mais uma vez represente a maioria, para passar de oposição a alternativa de governo.

Com esta proposta, ela pretende não apenas reorganizar as frações do peronismo, mas também colocá-lo no centro dessa coalizão, que seria formada não apenas por setores peronistas, mas também por forças e figuras de outros partidos. Por exemplo, Ricardo Alfonsín, que acaba de deixar a UCR [6], a fração desse partido liderada pelo senador Martín Losteau [7] e até mesmo figuras provenientes  do macrismo, como Horacio Rodríguez Larreta, ex-chefe de governo da CABA [8].

Algumas conclusões

Mais uma vez, os trabalhadores são confrontados com falsas alternativas capitalistas (Milei vs Cristina ou vice-versa). Queremos dialogar com eles. Em primeiro lugar, com aqueles que, fartos do peronismo, romperam com ele e procuraram uma alternativa no “capitalismo puro” de Milei. Compreendemos o seu esgotamento e sua ruptura com o peronismo, mas infelizmente foi como “sair da Guatemala e entrar na Guatepeor”*.

Muitos deles estão certamente chegando à conclusão de que a decisão de votar em Milei para expressar sua ruptura com o peronismo foi um “tiro pela culatra”. Em segundo lugar, aqueles que mantiveram seu voto em Massa e, diante da realidade do governo de Milei, escolheriam novamente o “mal menor”.

Para ambos os setores, fazemos duas propostas. A primeira é lutar juntos contra o governo Milei, seus ataques e suas duras consequências sobre os salários, o desemprego, as condições de trabalho e a aguda deterioração dos padrões de vida. Nesse sentido, ignorar a passividade que nos levam tanto o “dar tempo a ele” como o “deixar que ele se queime”. Precisamos responder unidos com lutas duras, como a levada a cabo pelos trabalhadores da indústria do óleo e azeite [9].

A segunda é que nós, trabalhadores, precisamos romper com a armadilha política da falsa alternativa entre duas variantes burguesas (na forma de “irmãos gêmeos”) na qual querem nos colocar novamente. Necessitamos de um partido próprio, sem capitalistas ou líderes patronais, que expresse e defenda nossos interesses de classe e conduza a luta para solucionar as terríveis necessidades que sofremos. Essencialmente com greves e mobilizações, como devemos fazer agora. E também para participar dos processos eleitorais: basta de votar em líderes da burguesia!

Para defender os interesses dos trabalhadores sem contradições, este partido deve dotar-se de um programa de governo com as medidas de fundo, necessárias para romper com o capitalismo semicolonial que subjuga e empobrece nosso país. Entre elas, o não pagamento da dívida externa e o rompimento com a submissão ao FMI [10]. 

Essas são as propostas que o PSTU faz a todos os trabalhadores e, especialmente, àqueles que estão lutando. Chamamos a fazer juntos. 

[1] https://www.filo.news/noticia/2024/09/06/cristina-kirchner-le-volvio-a-responder-a-milei-largue-twitter-que-los-argentinos-la-estan-pasando-pero-muy-mal

[2] Encuesta: laimagen de Mileien picada y el impacto de sus últimas declaraciones – puntoapunto.com.ar

[3] Máximo Kirchner apuntó contra Daniel Scioli y llamó a construir y organizarse desde el peronismo (a24.com)

[4] https://chequeado.com/ultimas-noticias/la-carta-de-cristina-fernandez-de-kirchner-sobre-su-presidencia-y-la-gestion-de-javier-milei-chequeos-a-sus-afirmaciones/

[5] Cristina: “El capitalismo se ha demostrado como el sistema más eficaz para laproducción de bienes y servicios” | La Opinión Austral (laopinionaustral.com.ar)

[6] Para Ricardo Alfonsín, la UCR perdiólaesencia por metas electorales | El Territorio

[7] La crítica de Martín Lousteau al Gobierno de Milei por el aumento de ladesigualdad: “El sacrificio de tantos solo beneficia a unos pocos” – Infobae

[8] https://eleconomista.com.ar/politica/horacio-rodriguez-larreta-lanzo-su-propio-espacio-politico-diferencia-pro-n76965

[9] Gran triunfo de lostrabajadoresaceiteros – PSTU

[10] AbajolaLey Bases y elplan de Milei – PSTU

*[provérbio que se aplica a alguém que tentando escapar do perigo se afunda nele ou algo pior, ndt].

Tradução: Rosangela Botelho

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