sáb set 07, 2024
sábado, setembro 7, 2024

Bolívia: O que está por trás da ação de 26 de junho

Na quarta-feira 26 de junho, a Bolívia apareceu em toda a imprensa internacional. Parecia que a trágica história dos golpes militares voltava a se repetir. Nas primeiras horas da tarde 2 tanques e várias dezenas de soldados sob comando do ex Comandante em Chefe do Exército general Zúñiga, ocuparam a Praça Murillo. Um dos tanques derrubou a porta de entrada da casa do governo, e Zúñiga junto com um grupo de soldados, entraram em busca do presidente Luis Arce. O presidente saiu, repreendeu o general, dizendo que ele era seu capitão e lhe ordenou que retirasse seus soldados.

Por: Alicia Sagra

Zúñiga não aceitou a ordem de retirada, mas se retirou do palácio para fazer declarações à imprensa. Declarou que a situação não podia continuar assim, que deveria haver mudanças, que seu objetivo era restabelecer a democracia e libertar seus presos, entre eles, a ex presidenta Jeanine Añez acusada de preparar o golpe de 2019.

Nenhum setor político apoiou essa ação militar. Inclusive, a própria Jeanine Añez declarou que era contra qualquer golpe militar e que iriam derrotar o MAS- Movimento ao Socilaismo- nas urnas em 2025.

A COB- Central Operária Boliviana- chamou greve geral por tempo indeterminado, o que foi apoiado por Evo Morales que também convocou os bloqueios de estrada, para enfrentar o golpe e defender a “democracia”.

Enquanto isso, o presidente Arce destituiu a cúpula militar, nomeando novos comandantes em chefe para as três armas. E, ainda à tarde, o movimento foi dominado e o General Zúñiga foi preso. Antes de ser levado pela polícia, fez a seguinte declaração à imprensa: “No domingo, no Colegio La Salle, me reuni com o presidente. E o presidente me disse: ‘A situação está muito ferrada, esta semana será muito crítica…Então, é necessário preparar alguma coisa para levantar minha popularidade’”[1], dando assim a entender que havia sido um autogolpe. Acusação que foi desmentida pela ministra da presidência María Nela Prada.

O general Zúñiga, visto como próximo a Arce, tinha sido retirado de seu cargo de Comandante em Chefe do Exército por ingerência na política, depois que fez declarações insultuosas a Evo Morales, ameaçando prendê-lo caso se apresentasse como candidato à presidência.

O que aconteceu?

Esta é a pergunta que aparece em toda a mídia boliviana e é certamente feita pelos trabalhadores, camponeses, estudantes, que foram convocados para enfrentar o “golpe”.

Ninguém parece ter nitidez sobre o que aconteceu e diferentes hipóteses são apresentadas. Por exemplo, María Galindo, da organização Mulheres Criando, fez uma forte declaração contra essa ação militar, apresentando três hipóteses:  1- foi uma demonstração de força dos militares, para mostrar o que podem fazer a qualquer momento; 2- tratou-se de um acordo entre o governo de Arce e do General Zúñiga, para mostrar um presidente forte, disposto a enfrentar, diferente do que aconteceu com Evo em 2019, e assim recuperar parte do apoio popular que perdeu; 3- foi um golpe, que ainda permanece ativo e do qual não se conhecem as verdadeiras caras. Por outro, o professor da Pontifícia Universidade Javeriana, Manuel Camilo González, afirma: “Não houve intenção de derrotar Arce nem ações tendentes a isso. Mas, houve uma pressão indevida da liderança dos militares para obrigar Arce a criar um novo gabinete, presumivelmente com menos presença do MAS, e inclusive de libertar presos políticos como o opositor Camacho e a ex presidenta Añez”.[2]

Independente de qual hipótese for a verdadeira, o certo é que provocou medo na população, que conhece muito bem as consequências de mortes, prisão e perseguições da grande quantidade de golpes militares que ocorreram desde 1950. E sabe também, que sempre foi a mobilização operária e popular que permitiu sair dessas situações. Por isso, o chamado à greve geral por tempo indefinido pela Central Operária Boliviana diante dessa ação militar foi correto.

O resultado dessa ação foi o agravamento da crise econômica, à qual se soma uma grande tensão política. E se foi uma tentativa de Arce aumentar sua popularidade, saiu-se mal, já que todos os dados indicam que o percentual de aprovação, que já estava em 18%, caiu ainda mais, depois dos incidentes de quarta-feira 26 de junho.

Por trás desta crise boliviana há três elementos que se destacam: o enfrentamento Arce-Morales, a crise econômica e o enorme descontentamento popular.

O enfrentamento Arce-Morales.

Arce foi ministro de finanças de Evo, e é considerado o “pai do milagre boliviano”. Entretanto, hoje existe uma forte rivalidade entre eles que levou à divisão do MAS entre “evistas” y “arcistas”.

Façamos um pouco de história para entender este enfrentamento..

O governo do MAS é consequência da revolução operária, indígena e popular de 2003 e 2005, que derrotou dois governos burgueses, Goni e Mesa, e impediu a sucessão constitucional de Vaca Diez, homem de confiança da burguesia naquela época. Para conter e desviar a revolução, a burguesia mais lúcida recorreu à saída extrema de aceitar um governo liderado por um indígena e, além disso cocaleiro, embora isso significasse enfrentar os setores burgueses mais reacionários. E a tática funcionou muito bem para a burguesia, com o governo do MAS a revolução foi detida. E, com certeza, Evo Morales (e Luis Arce depois) aceitou as condições exigidas, assim seu governo “indígena” defendeu, sem dúvida alguma, o sagrado direito burguês da propriedade privada e do monopólio total das armas pelas Forças Armadas da Nação.

Como já dissemos em outros artigos, o governo do MAS nunca foi revolucionário, mas para poder desviar a revolução operária, indígena e popular teve que realizar importantes reformas democráticas, como a eleição dos juízes por sufrágio universal e outras com um grande caráter simbólico para um povo desde sempre oprimido e humilhado, como a educação bilíngue e a wipala como símbolo nacional. O Estado Plurinacional foi contido dentro do simbólico e sua maior expressão material é a ampliação da representação indígena campesina, operária e popular no Estado, deputados, funcionários públicos e governos locais. Tudo isso, em meio a uma situação econômica favorável, pelo alto preço das matérias primas, em especial o gás, que possibilitou um rápido crescimento, estabilidade e capacidade para conter a inflação, o que veio a se chamar “O milagre econômico boliviano”.

Mas esta situação econômica começou a mudar em 2014. Isso somado à pouca resposta às condições de vida dos operários, a repressão aos indígenas que protestavam pela construção de uma mega rodovia que atravessava seus territórios, e as manobras de Evo para concretizar sua terceira reeleição, foram fazendo cair o prestígio do governo do MAS. Esse crescente desprestígio facilitou o reacionário golpe militar promovido pela direita do Oriente Boliviano, que obrigou Evo Morales a renunciar, em novembro de 2019.

Frente ao golpe, ocorreu a tradicional reação operária e popular, que impediu que o governo golpista de Jeanine Añez se consolidasse e nas eleições de 2020 voltou a triunfar a fórmula do MAS, liderada pelo professor universitário Luis Arce.

Essa fórmula teve o apoio de Evo Morales, mas poucos anos depois o conflito que existia entre eles tornou-se público.

 Em outubro de 2023, realizou-se o congresso do MAS, que expulsou o presidente Luis Arce e o vice David Choquehuanca, (dirigente camponês, de origem aymara) e proclamou Evo Morales candidato à presidência. O que provocou uma impugnação, por parte de Luis Arce, que foi aceita pela justiça.

Esse enfrentamento público entre os dirigentes, foi deslocado para o parlamento e levou a confrontos entre as bases que respondiam a um ou a outro e à divisão nas organizações sociais.

Os dois se acusam, mutuamente, de corrupção. Evo acusa Arce de ineficiente, Arce acusa Evo de irresponsável, de colocar a institucionalidade em risco. O governo de Arce acusa de corrupção na indústria do lítio e manda deter funcionários ligados a Evo Morales. Em janeiro-fevereiro deste ano, Evo impulsiona bloqueios de estradas exigindo a renúncia dos juízes que confirmaram sua inabilitação eleitoral. E assim continuam usando recursos do estado e das organizações sociais, em sua briga.

Até agora não aparecem diferenças políticas. Por exemplo, a defesa dos recursos naturais era um dos pontos da Agenda da revolução (2003-2005) e era uma das bandeiras do MAS. No entanto, concretizou-se uma impressionante entrega do lítio do Salar de Uyuni à empresa privada chinesa Citic Cuoan Group e à estatal russa Rosatom. Ante esse fato, não houve nenhuma oposição de Evo, que é também quem mais promoveu (e promove) as relações com a ditadura capitalista chinesa e as grandes empresas desse país.

Tudo parece indicar, e é o que a mídia boliviana reflete, que a briga tenha a ver com a questão eleitoral. O apoio popular ao MAS não é o mesmo que durante o primeiro governo de Evo, mas segundo todas as pesquisas, estaria em primeiro lugar (se estiver unido) nas intenções de voto para a eleição presidencial de 2025, já que a direita saiu muito mal depois do golpe de 2019 e das mobilizações que desestabilizaram o governo golpista.

Como a disputa será por quem será o candidato à presidência e, muito provavelmente, o próximo presidente da Bolívia, a briga que não é pelo prestígio do cargo, mas está estreitamente ligada à corrupção, às vantagens que esse cargo oferece, à medida em que as eleições se aproximam, a briga se fortalece.

Ou seja, exatamente igual ao que ocorre nos partidos burgueses. O que não é estranho, porque esse tipo de partido, à medida em que passam anos administrando o estado burguês, vão se parecendo cada vez mais aos partidos burgueses. E independente que seu principal dirigente seja um camponês de origem aymara ou um ex-operário metalúrgico como Lula no PT do Brasil. Inclusive esses partidos podem chegar a mudar seu caráter de classe. Foi isso o que aconteceu com o MNR-Movimento Nacionalista Revolucionário-, de origem pequeno burguesa, que depois da revolução de 1952 deu origem a uma nova burguesia boliviana, a partir dos benefícios obtidos pela administração das empresas estatais.

E essa briga entre estes dois dirigentes do MAS pela candidatura presidencial, por si só  complicada, já que o prestígio de Arce caiu muito e Evo está impedido de ser candidato pela Constituição que só permite dois mandatos presidenciais, é ainda mais complicada porque ocorre em meio a crescentes problemas econômicos.

A deterioração econômica

A Bolívia destacou-se na América Latina pelo seu rápido crescimento e capacidade para conter a inflação. Era quando se falava do “milagre econômico boliviano”. Mas, em março de 2023, se detectaram problemas, quando se evidenciou uma grave escassez de dólares e começaram a aparecer longas filas nas ruas daqueles que tentavam comprá-los

Isso gerou um mercado paralelo e fala-se de que havia cerca de 13 tipos de câmbio. O governo afirma que a economia continua estável e que só se trata de um surto especulativo. Mas não é o que os especialistas dizem. Eles falam de um problema muito mais profundo, que se explica pela queda do nível de produção do gás natural, que possibilitou grandes rendas para o país depois da nacionalização dos hidrocarbonetos.

O economista e consultor financeiro Jaime Dunn, explica: “Desde 2014 o efeito dessa bonança começou a se reverter e isto fez com que baixasse o nível de dólares que chegavam ao país.”

Paralelamente, as reservas internacionais diminuíram consideravelmente.

Segundo os informes do Banco Central, estas passaram de US$15,122 bilhões em 2014 para US$1,796 bilhões em abril de 2024 (data em que o último informe foi publicado).

Com esses recursos foram mantidos alguns dos programas sociais dos governos de Evo Morales primeiro e Luis Arce depois, como o subsídio para a compra de combustíveis, que a Bolívia tem que importar e pagar em dólares nos mercados internacionais. “Isso levou o país a uma crise porque, apesar das receitas terem caído, manteve-se um gasto muito alto. E desde 2014 as receitas do gás natural começaram a ser substituídas por dívida interna e externa”[3]

A escassez de dólares repercutiu especialmente nos setores que importam ou exportam bens. A escassez de dólares também afetou diretamente a importação de combustível. Isso é problemático se considerarmos que, segundo o próprio presidente Arce, a Bolívia importa 56% da gasolina e 86% do diesel que consome. “A Bolívia passou de ser um país exportador líquido de energia para ser um importador. Tendo sido uma espécie de centro energético para a América do Sul há apenas 10 anos atrás”, afirma Jaime Dunn.

Claudia Pacheco, presidenta do Colégio de Economistas de Santa Cruz, destaca que “a Bolívia é importadora de insumos e de bens de capital em quase 80% por isso se viu muito afetada pela escassez de dólares”[4].

E essa realidade é sentida na economia popular, com o aumento do valor de alguns produtos básicos como o arroz ou o tomate e com a falta de outros.

 Descontentamento e resposta popular

Tudo isso está gerando um grande descontentamento popular que se expressa em diferentes ações. Comerciantes e transportadores têm realizado manifestações e bloqueios de estradas em diferentes cidades do país. Em 2023, houve em torno de 200 bloqueios, denunciando a escassez de dólares e de combustível. Nos postos de gasolina há longas filas, alguns tem que passar a noite para conseguir combustível.

Uma grande manifestação de vendedores ambulantes, de diferentes partes do país, ocorreu em La Paz denunciando a escassez de dólares e de combustíveis.

Perspectiva

É evidente que existe uma importante crise política que se combina com a econômica, situação intensificada pelos acontecimentos de 26 de junho, onde se voltou a jogar com os sentimentos e temores do povo boliviano. É difícil prever como acabará o enfrentamento dos dirigentes do MAS. Mas qualquer que seja o resultado dessa briga e das eleições, o certo é que nada será a favor dos trabalhadores e dos pobres da Bolívia.

Aos sofrimentos econômicos que se intensificam, soma-se uma nova frustração. Foram muitos camponeses e trabalhadores que participaram nas revoluções de 2003-2005 e que colocaram suas expectativas em Evo Morales e no MAS. Mas, o que algum dia foi o Instrumento Político dos Trabalhadores, hoje se transformou em um partido muito parecido aos burgueses, onde os dirigentes brigam por cargos, por vantagens e usam os trabalhadores e suas organizações, como armas dessa briga.

Aos trabalhadores, camponeses pobres e estudantes só resta um caminho para superar essa situação, a luta pela revolução socialista, pelo poder dos trabalhadores que inicie o caminho para o socialismo e, para alcançá-lo, a construção do partido que oriente nesse caminho: um partido operário, revolucionário e internacionalista. É uma tarefa difícil, mas é a única que pode proporcionar uma saída.


[1]  Semana, 28-06-24, www.semana.com

[2] idem

[3] BBC New Mundo, 28-06-2024

[4] idem

Tradução: Lílian Enck

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares