50 Anos da Revolução Portuguesa: Lições para a Ação Revolucionária Hoje
Introdução
No âmbito da campanha pelos 50 anos da Revolução Portuguesa, no dia 30 de abril as seções da LIT na Europa realizaram uma LIVE para falar sobre a revolução. Uma atividade que consideramos muito bem-sucedida e na qual três companheiros explicaram de ângulos diferentes, o que foi a última revolução operária na Europa no século 20, quais foram suas conquistas e limitações e, sobretudo, que lições importantes ela nos deixa para o presente e o futuro.
Por: LIT- Europa
A LIVE contou com a presença de cerca de 70 companheiros/as que se conectaram de Portugal, Espanha, Itália, Bélgica, França, Turquia e outros lugares, e através do chat tiveram a possibilidade de enviar suas perguntas, algumas das quais também foram respondidas pelos palestrantes
A seguir, a transcrição do conteúdo das três falas.
50 Anos de Abril: Na Luta por uma Nova Revolução
Flor Neves (Em Luta)
Como revolucionários, estudamos e debatemos revoluções para aprender lições para hoje. No 25 de Abril, milhares de pessoas invadiram as ruas de Lisboa em resposta ao crescimento da extrema-direita nas últimas eleições, exigindo liberdades democráticas e avanços da revolução, mas também levantando as suas reivindicações de hoje.
O 25 de Abril de 1974, começou como um golpe de Estado militar, por parte dos oficiais médios – os capitães – para derrubar a ditadura que travava uma guerra colonial desde 1961 – em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau – contra as aspirações independentistas destes países. É por isso que dizemos que o 25 de Abril nasceu na África. Nesse sentido, não é verdade o que se costuma dizer que foi uma revolução sem sangue, já que a base da revolução foi o sangue derramado por milhares de combatentes africanos e pelos trabalhadores portugueses nessa guerra. Essa crise das Forças Armadas, produto da guerra, combinou-se com o crescimento da resistência e da oposição operária e estudantil à ditadura, particularmente nos últimos anos da ditadura, o que possibilitou uma reorganização nesses setores e um aprendizado político de uma vanguarda que viria a desempenhar um papel central na revolução.
No dia 25 de abril, o Movimento das Forças Armadas (MFA) apelou a toda a população para ficar em casa. No entanto, a população saiu à rua, não só mostrando o seu apoio à derrubada da ditadura, mas também desempenhando um papel central no desmantelamento das estruturas repressivas do regime, como a polícia política – a PIDE/DGS – ou a libertação de presos políticos. Assim, no 25 de Abril, o golpe de Estado transformou-se numa revolução, que se confirmou em 1 de Maio, quando um milhão de pessoas saíram à rua, conjugando reivindicações democráticas, contra a guerra colonial, mas também pelo direito ao pão, aos salários ou à habitação.
Nos meses que se seguiram, o carácter combinado e permanente da revolução confirmou-se cada vez mais, em contraste com a visão estalinista de uma revolução por etapas, primeiro democrática e depois socialista (defendida pelo Partido Comunista Português). O mês de Maio ficou marcado por inúmeras greves por todo o país, com a oposição do PCP que as considerava reacionárias. Enfrentando o fascismo, as condições miseráveis de vida e os patrões que a ditadura protegia e apoiava, os trabalhadores começaram a enfrentar diretamente o capitalismo. Além disso, os trabalhadores passaram a se organizar de forma autônoma. Eles formaram comissões de trabalhadores em grandes empresas, comissões de soldados dentro do exército, comissões de camponeses no campo e comissões nos bairros para resolver os problemas mais urgentes de suas vidas, acreditando em suas próprias forças e habilidades para tomar seu destino em suas próprias mãos. Se os governos provisórios expressavam o poder institucional da burguesia, essas comissões expressavam o poder que os trabalhadores estavam construindo em paralelo: um duplo poder. Por isso, nesse período, foi levantada a possibilidade não só de construir uma democracia burguesa, mas de construir o socialismo em Portugal, uma sociedade sem exploração e opressão.
Nesse período, o general Spínola, primeiro presidente da república do novo regime, foi o grande representante da burguesia. Tinha um projeto oposto ao da revolução que crescia nas ruas, nas empresas e nos bairros. Ele queria derrotar a revolução anticolonial na África, defendendo um projeto neocolonial, em oposição à independência imediata das colônias. Também era contra a formação de uma Assembleia Constituinte e defendia a prioridade da realização de eleições presidenciais, em um regime com traços marcadamente bonapartistas, para derrotar a revolução e suas conquistas. Spínola foi derrotado pelo movimento de massas em 28 de setembro de 1974, quando pediu a constituição da maioria silenciosa. Mas, em 11 de março de 1975, organizou um golpe contrarrevolucionário que foi definitivamente derrotado pela mobilização dos trabalhadores, juntamente com o Partido Socialista, o Partido Comunista e o MFA, tendo posteriormente se exilado no Estado espanhol.
Uma vez derrotada a tentativa de golpe contrarrevolucionário, abriu-se o caminho para a independência nas ex-colônias, enquanto em países como Timor-Leste, a própria independência permaneceu por cumprir, como uma miragem, durante décadas. Mas também se abriu uma situação revolucionária que se radicalizava a cada momento com o aprofundamento das experiências de controle operário e crise nas Forças Armadas. Assim, a derrota do golpe colocou em pauta o projeto de país a seguir.
As eleições para a Assembleia Constituinte foram realizadas em abril de 1975. O PS, integrado na social-democracia europeia que o financia, vence as eleições, o que dará mais força ao seu projeto de derrotar a revolução através de uma democracia burguesa, assente no parlamento e nas eleições. É também um projeto apoiado pelo imperialismo europeu, e a partir de certo ponto também pelos EUA, e que tem como horizonte a entrada na CEE: a Europa promete verbas para ajudar Portugal desde que o país se submeta a uma democracia liberal e a uma economia de mercado.
O Partido Comunista responde às necessidades da URSS. Esta não era mais a URSS revolucionária do tempo de Lênin, mas a URSS herdada de Stalin, que usurpou o poder dos trabalhadores nos sovietes e o entregou à burocracia. Foi a URSS que, contra a revolução mundial, desde os acordos de Yalta e Potsdam após a Segunda Guerra Mundial, fez um pacto com o imperialismo norte-americano para dividir o mundo em dois, ocupando e oprimindo militarmente o Oriente, enquanto impedia que os trabalhadores chegassem ao poder no Ocidente. Nesse sentido, o objetivo da URSS era fazer de Portugal um país neutro nas disputas da Guerra Fria, mas não um país “comunista”.
O PCP, apoiado por amplos sectores do MFA, tinha assim um projeto bonapartista e autoritário de controle do movimento operário e das suas liberdades democráticas, utilizando para o efeito, a “Aliança Popular-MFA”. Esse perfil controlador e burocrático expressava-se, concretamente, no brutal ataque às greves, que eram combatidas e até reprimidas, como foi o emblemático da TAP (setor da aviação) ou dos CTT (setor postal), ou na batalha pela produção, porque o país já estaria no caminho do socialismo. Ou na tentativa de enquadrar as iniciativas de controle operário das massas através do MFA e da sua institucionalização.
Nesse sentido, apesar dos projetos opostos, tanto o PS como o PCP tinham um grande acordo: os trabalhadores e as suas organizações não tomariam o poder e governariam o País, não constituiriam um Estado operário, não construiriam um verdadeiro socialismo. O projeto do PS foi o que acabou por ganhar, mas o papel do PCP foi essencial para controlar a iniciativa das massas e até para orientar o processo revolucionário para o pacto social de estabilização da democracia.
Havia até um terceiro campo, embora muito minoritário. A corrente trotskista, liderada por Nahuel Moreno, que na época fazia parte do Secretariado Unificado da Quarta Internacional, tinha fundado, no calor da revolução, uma organização essencialmente jovem – o Partido Revolucionário dos Trabalhadores – nossa corrente. Em seu livro Revolução e Contrarrevolução em Portugal, Moreno expressa esse outro projeto. Um projeto que defendia que deveriam ser os trabalhadores a governar e por isso propunha um congresso nacional das comissões de trabalhadores, para tomar o poder, numa adaptação da proposta bolchevique de “Todo o poder aos sovietes”. Ao contrário da maioria da esquerda que tinha ilusões no MFA (que eram, de fato, como bem assinalou Moreno, as forças armadas de um país, na época, imperialista) e nos seus governos (de conciliação com a burguesia), Moreno e a nossa corrente defendiam que o centro era este congresso para unificar e permitir que os trabalhadores tomassem o poder e governassem através dos seus organismos. Por isso, faltava um partido revolucionário com peso de massas, com musculatura e força para defender esse projeto e o programa de um Estado operário, de um Estado em que as organizações operárias governassem e não os militares.
Como a revolução foi derrotada?
Normalmente, falamos do 25 de novembro de 1975, data em que um golpe dentro das Forças Armadas permitiu restaurar a hierarquia de comando, pondo fim ao duplo poder e permitindo que a burguesia recuperasse o controle da violência estatal, essencial para controlar o país. Esta data é fundamental porque, na ausência de um partido revolucionário com peso de massas, determina o encerramento do elemento mais radical da revolução portuguesa: a crise e o duplo poder dentro das Forças Armadas. É também a primeira derrota grave da revolução, que garante a nível do exército um novo equilíbrio de forças favorável à burguesia. Embora seja o PS que está politicamente por detrás do processo que conduzirá ao 25 de Novembro, o PCP não apelará a uma reação de massas contra o 25 de Novembro e, pelo contrário, desempenhará um papel central como peça-chave para o pacto de estabilização do regime, através dos sindicatos e autarquias.
Mas, justamente porque a contrarrevolução violenta tinha sido derrotada com Spínola, esse golpe nas Forças Armadas é um dos instrumentos da política de reação democrática para derrotar a revolução, que tem seu pilar central na nova Constituição de 1976. A nova Constituição afirmava que Portugal estava empenhado na construção de uma sociedade sem classes e no caminho para o socialismo, mas consagrava o parlamento burguês como instituição central; protegia nacionalizações, mas defendia a propriedade privada e as reparações.
Nesse sentido, a Constituição reconheceu e integrou as conquistas democráticas alcançadas pela revolução, mas seu cerne era derrotar e sufocar a democracia operária nos corpos burgueses e suas instituições – sua essência é tirar o poder dos trabalhadores e devolvê-lo à democracia [burguesa]. Assim, a derrota da revolução só pode ser explicada pela conjunção do 25 de novembro com a constituição, como dois instrumentos combinados para derrotar a revolução com a democracia capitalista, sempre com a “Europa” como horizonte.
Não podemos entender o país de hoje sem entender que, ao contrário do Estado espanhol, a transição da ditadura para a democracia é produto de uma revolução e que algumas das conquistas democráticas persistiram. E nesse sentido há uma ruptura radical com o passado. A gigantesca manifestação do 25 de Abril em Portugal é também uma expressão disso.
Mas também não é possível entender o país sem reconhecer que o regime de democracia dos ricos em que vivemos hoje é produto da derrota dos trabalhadores, de suas organizações e da possibilidade de construção do socialismo. A crise social que Portugal atravessa é herdeira da crise de 2008, onde a austeridade do tempo da troika não terminou, onde fomos obrigados a liberalizar todas as empresas estratégicas, onde o Serviço Nacional de Saúde e a educação estão sendo destruídos, onde cada vez mais gente vive nas ruas porque não é possível pagar casas com os salários que são pagos aqui. 50 anos depois da revolução, somos um país com mão-de-obra barata para vender ao capital europeu, um país de serviços e turismo, para a exploração de recursos como o lítio pelo capital internacional, com elevados custos de destruição ambiental e social. Não foi isso que os trabalhadores fizeram no 25 de Abril, porque esta democracia é de fato a ditadura do capital e dos seus interesses, que não são nossos.
Moreno, na época, acreditava que ou a revolução socialista triunfaria ou Portugal, sem colônias, avançaria para uma submetrópole do imperialismo europeu e, a longo prazo, uma semicolônia, já que seu atraso não lhe permitiria competir com os grandes monopólios europeus. A classe operária portuguesa, como previu Moreno, está completamente sujeita aos interesses da UE do capital. Dentro dela, não é possível decidir ou mesmo investir no Serviço Nacional de Saúde, utilizar as empresas estratégicas do País ou garantir uma transição energética a serviço dos trabalhadores e dos povos.
É esta UE que afirma defender os “direitos humanos”, mas hoje apoia o genocídio em Gaza, que mostra na televisão, diante dos nossos olhos. É esta UE que reforça e estimula o racismo e a xenofobia, quando deixa morrer milhares de migrantes no Mediterrâneo. Foi esta UE que serviu para unir os grandes capitalistas de todo o continente para destruir os direitos dos trabalhadores e dos povos em todos os países.
Cinquenta anos depois, esgota-se o caminho que a democracia portuguesa para os ricos e a Europa do capital nos trouxeram
A eleição de 50 deputados de extrema-direita no parlamento português mostra nitidamente a incapacidade desta democracia para responder às necessidades da maioria da população, alimentando o discurso populista e a sua política de dividir os que estão na base para fazer reinar os capitalistas.
Mas também mostra o esgotamento da política da esquerda reformista, que continua defendendo que é através de reformas no parlamento que chegaremos ao socialismo. Esta proposta, que foi a do PS em 1975, é a que, como vimos, nos trouxe até aqui. Além disso, a política de décadas de concertação social do PCP nos sindicatos ou mesmo a experiência da Geringonça, em que BE e PCP apoiaram o governo do PS, mostram que a conciliação de classes não é o caminho. Nesse sentido, a esquerda parlamentar é responsável por alimentar a ilusão de que é possível fazer diferente sem mudar o essencial. Foi o que fez, mesmo perante a crise da dívida entre 2011 e 2013, afogando as forças dos trabalhadores no voto parlamentar e na Geringonça.
Pelo contrário, para nós do Em Luta e da LIT, 50 anos depois de Abril é preciso lutar por uma nova revolução que, aprendendo com o passado, leve os trabalhadores ao poder, para que possam governar com os seus próprios organismos. Mas esta revolução, hoje mais do que nunca, só pode ser internacional, contra esta União Europeia do capital. Para que seja vitorioso, e não derrotado como foi há 50 anos, também precisa que este partido e o seu programa sejam internacionais, e é por isso que estamos aqui construindo a LIT.
O impacto internacional da Revolução Portuguesa: a exemplar “Transição Espanhola”, foi um anti-25 de Abril
Ángel Luis Parras (Corriente Roja)
Para os liutadores/as, apesar de serem muito jovens naquela época, a revolução portuguesa marcou-nos e foi para nós uma fonte crucial de aprendizagem.
A conjuntura do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 na Europa
Naqueles anos vivíamos uma situação marcada pelo Maio francês de 68, a Primavera de Praga (5 de janeiro a 21 de agosto de 1968), o quente outono italiano (1969), a ascensão da luta estudantil na Grécia contra a ditadura dos coronéis (1967-1974), as mobilizações operárias e estudantis contra a ditadura franquista na Espanha e especialmente contra o Julgamento de Burgos (realizado na sala de audiências do Governo Militar daquela cidade, de 3 a 9 de dezembro de 1970).
Foram anos marcados por um enorme surto revolucionário, de lutas operárias e estudantis, o início de uma crise econômica do capitalismo sem precedentes desde 1929 (a chamada crise do petróleo) e a maior derrota militar do imperialismo norte-americano, a do Vietnã. Aquelas imagens icônicas da retirada americana em 29 de março de 1973 ficaram marcadas na história.
Nesse quadro geral, houve um grave retrocesso: o golpe de Pinochet em 11 de setembro de 1973. A contrarrevolução que, como sempre, apareceu como sombra para o corpo do processo revolucionário, colocou pela enésima vez na história, o debate reforma ou revolução na agenda de todo o ativismo operário e estudantil e alertou as direções das grandes organizações operárias em oposição ao regime, mas também, e muito, ao próprio regime franquista e a todos os setores burgueses.
25 de Abril uma onda de entusiasmo pela revolução
O 25 de Abril transformou Portugal no ponto alto da luta de classes em escala internacional, gerou uma enorme onda de entusiasmo, sobretudo onde, como no Estado espanhol, a crise da ditadura prenunciava o seu fim e o debate sobre reforma ou revolução, a “reforma ou ruptura” estava no centro das preocupações sociais do debate no ativismo trabalhista e estudantil.
Um texto que foi resenha e cartão de visita na Europa da corrente precursora da IWL-FI: foi Revolução e Contrarrevolução em Portugal, escrito por Nahuel Moreno. Nele se abordava a revolução portuguesa, sua explicação, sua dinâmica, suas perspectivas possíveis em termos da luta de classes, o deslocamento das classes sociais, como elas se expressavam, como se moviam e como as formações políticas e sociais expressavam esses deslocamentos de classe. Esse é um problema crucial que as formações políticas e as análises da esquerda em geral omitiram. O texto, entre outras coisas, alertava para não perder de vista os movimentos de todas as classes sociais, não apenas os das duas grandes: a classe operária e a burguesia, para não esquecer os setores da pequena burguesia, das chamadas classes médias modernas, que acabariam por desempenhar um papel decisivo no curso tanto da revolução portuguesa como da transição espanhola.
Como foi a reação das classes sociais e seus partidos no Estado espanhol à Revolução do 25 de Abril?
A primeira reação no regime franquista foi tentar aplicar o Pacto Ibérico, acordo assinado em fevereiro de 1942 entre Portugal e Espanha e assinado pessoalmente pelos dois ditadores, Francisco Franco e Antonio de Oliveira Salazar. Depois do 25 de Abril, o então primeiro-ministro, Carlos Arias Navarro, se dirigiu aos EUA oferecendo o território e as Forças Armadas espanholas como base de apoio à “invasão de Portugal”. Madrid tornou-se o centro operacional da contrarrevolução portuguesa e internacional, um refúgio para os PIDE que circulavam livremente pela Gran Vía de Madrid e para os militares de Spínola após o golpe falido de 11 de Março de 1975.
A Revolução Portuguesa abriu uma grande crise no exército franquista. Em agosto de 1974, menos de 4 meses após o 25 de Abril, foi fundada a União Militar Democrática (UMD). Jovens capitães, alguns comandantes dos 3 exércitos e membros da Guarda Civil e da Polícia Armada, promoveram esta organização e desde o primeiro momento estabeleceram ligações com o Movimento das Forças Armadas (MFA) de Portugal, que eram a sua referência militar e política.
A UMD foi a mais séria tentativa de abrir fissuras no exército de Franco. Conscientes da natureza do exército franquista, da sua gênese e da sua composição que o tornava muito diferente do exército português, o seu projeto era molhar a pólvora, como diziam, se o regime saísse à rua para esmagar o crescente ascenso operário e estudantil. A UMD era uma minoria dentro de um exército forjado a sangue e fogo como instrumento da ditadura. Um exército cujo papel foi definido em 1968 pelo almirante Carrero Blanco, enquanto entregava a faixa e o Diploma do Estado-Maior aos soldados daquela promoção:
“… Preparem-se para estar no segundo escalão atrás dos aparatos policiais, porque o Exército não tem objetivo ou inimigo fora do país, em qualquer fronteira e em qualquer lugar, tudo é paz e estabilidade, o único inimigo que existe é o inimigo interno, o povo”.
Essa crise dentro do Exército também se expressou na promoção dos Comitês de Soldados nos quartéis. Surgiram comitês, organizações como a União Democrática dos Soldados (maio de 1975). Diante das condições infames nos quartéis, do serviço militar obrigatório e prolongado (a mili) (entre 15 e 18 meses dependendo da corporação) e do medo crescente de ser usado contra as crescentes lutas operárias e estudantis, a revolução portuguesa estimulou demandas nas tropas. Foi reivindicado o serviço militar de 6 meses, no local de residência; melhoria das condições nos quartéis – alimentação, higiene, cuidados de saúde, alojamento; Liberdades democráticas; Liberdade dos objetores de consciência; Abandono das colônias…
Essa crise no Exército foi agravada pela decisão da ditadura de militarizar o transporte em greves operárias. Foi o que aconteceu em Madri, em março de 1976, com a militarização da Companhia Municipal de Transportes (EMT), onde 300 militares e policiais foram colocados como motoristas em 28 das 80 linhas existentes na época. O mesmo tinha acontecido na RENFE (ferrovia) em Janeiro desse ano.
A Revolução Portuguesa ajudou muito a impulsionar a luta operária e estudantil. A queda da ditadura mais longeva da Europa Ocidental gerou enorme entusiasmo em uma classe trabalhadora rejuvenescida e muito combativa que liderou a oposição ao franquismo e se organizou em torno das Comissões de Trabalhadores nas fábricas e nos poços.
As medidas que a Revolução Portuguesa adotou após a derrota do golpe de Spínola em 11 de Março de 1975 (nacionalização dos bancos e das grandes empresas; expropriações dos terrenos, independência das colônias) que obrigaram inclusive o Conselho Português da Revolução a ter que legalizá-las e falar numa “transição para o socialismo”, incentivou ainda mais essa luta e deu um enorme impulso à convicção de que sustentar a revolução contra a reação exigia não dissociar as tarefas democráticas das anticapitalistas, que a luta para derrubar a ditadura franquista, para alcançar liberdades democráticas plenas, só poderia ser garantida pelo levante da classe operária, sua organização em torno de um programa operário e socialista.
Para a burguesia, assim como para as direções dos partidos de oposição ao regime, esse entusiasmo do Estado espanhol pela revolução portuguesa acendeu todos os alarmes. Foi extremamente preocupante porque esse entusiasmo crescia a cada passo num movimento operário e estudantil muito mais organizado e muito mais numeroso do que em Portugal antes do 25 de Abril.
O imperialismo norte-americano e europeu e a burguesia espanhola: evitando a todo custo o contágio, a exemplar “transição espanhola”
Diferentes setores burgueses, os monarquistas de Don Juan de Borbón (avô do atual rei e pai do “Emérito”), liberais, setores da igreja -Democristãos- burguesias catalã e basca, de acordo com o os aparatos social-democratas (PSOE), stalinista (PCE), a burocracia sindical e que (e infelizmente) arrastaram até grupos da chamada extrema esquerda (PTE, ORT, MCE) criaram a chamada Junta Democrática – 29 de julho de 1974––, primeiro, a Plataforma de Convergência Democrática – 11 de junho de 1975–, e finalmente a unificação de ambos na Coordenação Democrática em 26 de março de 1976.
Uma parte substancial do regime franquista, incluindo um enorme setor do aparato político, militar, judicial e eclesiástico do regime, aliou-se aos diferentes setores burgueses e às lideranças do PSOE, PCE, CCOO e da recém-reincorporada UGT, base da chamada Transição Espanhola, a “reforma”, preservando as instituições centrais do regime franquista, seu exército, seus juízes, sua polícia, suas forças especiais, garantindo-lhes a impunidade, tudo sob o sabre de um novo Bonaparte, nomeado por Franco e que seria coroado em sua morte, Juan Carlos de Borbón.
Os dirigentes do PSOE, PCE, CCOO, especialmente este último que tinha mais autoridade na classe operária, optaram por transformar a classe operária em apoiadora do projeto burguês, enterrar a “ruptura” expulsando de seus partidos toda a militância rebelde.
E aqui é preciso destacar o papel desse outro setor social que foi omitido nas análises tanto em Portugal, como aponta Moreno, quanto aqui, o da pequena burguesia, as chamadas classes médias modernas, o setor decisivo nesse movimento e no qual se apoiavam os “novos partidos” como a UCD e mesmo os chamados partidos de esquerda.
O regime franquista não tinha de modo algum ignorado este setor. Há uma conhecida estória contada pelo general Vernon Walters, militar e embaixador dos EUA, quando perguntou a Francisco Franco em 1971, durante sua visita a Madri, em uma entrevista no El Pardo, por ordem do então presidente dos EUA, Richard Nixon, que estava preocupado com o que aconteceria na Espanha após a morte de Franco. O próprio Franco respondeu da seguinte forma:
“A Espanha vai longe no caminho que vocês querem, democracia, pornografia, drogas e sei lá mais o quê. Haverá uma grande loucura, mas nada disso será fatal para a Espanha… Porque vou deixar algo que não encontrei quando tomei posse neste país, há quarenta anos: a classe média espanhola. Diga ao seu presidente para confiar no bom senso do povo espanhol, não haverá outra guerra civil.”
O campesinato foi o grande beneficiário do franquismo, especialmente do campesinato castelhano, das pequenas propriedades industriais, do comércio e do já incipiente fenômeno do turismo, estendeu a pequena propriedade, dando enorme peso àquela base social que em grande parte queria romper com o franquismo, mas temia, como o diabo à cruz, os processos revolucionários e a classe operária à frente deles.
Foi essa base social que essencialmente garantiu a solução da “reforma” diante do perigo de “ruptura”. Foi nela que os setores burgueses e os aparelhos do PSOE, PCE, CCOO e UGT se apoiaram para garantir a preservação do essencial do antigo regime franquista por meio de uma reforma. Queriam evitar que o processo português se repetisse, corrigisse e aumentasse aqui.
Em essência, a Transição Espanhola foi o modelo anti-25 de Abril
Se a revolução portuguesa liquidou a odiada polícia política, a PIDE e estes foram perseguidos pela população, no Estado espanhol nenhum torturador e assassino da Brigada Política Social pagou por alguns dos seus ultrajes, pior ainda, alguns como o famoso Bylli, o Menino, morreu a 6 de maio de 2020, na cama, condecorado, com uma pensão vitalícia que aumentava a cada nova condecoração que recebia. Juízes e soldados franquistas circulam livres hoje, enquanto aqueles homens da UMD pagaram com prisão e expulsão do exército, sendo explicitamente excluídos da anistia.
Um dado, para concluir. Aqueles que se vangloriam de uma transição pacífica face aos “perigos” colocados pela revolução portuguesa omitem fatos ostensivos da realidade. Embora, como disse Flor no seu discurso, a revolução portuguesa de 25 de Abril não tenha sido pacífica, dezenas de milhares de angolanos, moçambicanos ou guineenses e mais de 8.000 soldados portugueses perderam a vida nesses 13 longos anos de guerra colonial. Nos acontecimentos de 25 de Abril, morreram 6 pessoas, essencialmente devido ao entrincheiramento das PIDE. A ” pacífica transição espanhola“, de 20 de novembro de 1975 a 31 de dezembro de 1983, provocou 591 mortes, das quais oficialmente 188 se devem à chamada violência política de origem institucional. Há exemplos disso, só para citar alguns, os advogados de Atocha ou a nossa companheira Yolanda.
Da Itália a Portugal: o papel traiçoeiro dos partidos stalinistas e reformistas
Francesco Ricci (Pdac- Itália)
O 25 de Abril, por coincidência, é um dia celebrado tanto em Portugal como na Itália. É a data do início da Revolução Portuguesa e aqui na Itália celebramos a queda do fascismo nas mãos da Resistência partisana em 1945.
Há vários pontos em comum entre os dois eventos históricos, não apenas a data. Ambos os países saíam de uma longa ditadura: mais de 40 anos em Portugal, 20 anos na Itália. Duas ditaduras que, para além de suas diferenças, serviram para defender a dominação da burguesia capitalista contra o movimento operário.
Ambas as ditaduras foram, para usar a expressão de Trotsky, um aríete lançado contra as organizações do movimento operário. Há também outro elemento comum: ambas as revoluções foram traídas pelos partidos stalinistas e reformistas.
O papel do Partido Comunista na resistência partisana
Na Itália falamos da resistência partisana (que se desenvolveu a partir de 1943 e teve sua última grande explosão em julho de 1948, quando os operários ocuparam as fábricas) como de uma “revolução traída”. Isso porque 300 mil jovens armados lutaram não só para derrubar o fascismo, mas para derrubar o domínio burguês, para fazer uma revolução socialista.
Se não triunfaram, não foi pela força da burguesia (que havia sido expulsa das fábricas) nem pela força do aparelho de Estado burguês, que foi meio destruído: foi pela intervenção do stalinismo, do PCI.
Togliatti retornou à Europa de Moscou com as ordens de Stalin para bloquear a revolução na França e na Itália e desarmou os partisanos ideológica, política e organizacionalmente.
Como algumas organizações de massa se opunham à reduzir a Resistência à simples expulsão dos fascistas de Mussolini e das tropas alemãs de Hitler, os líderes dessas organizações foram caluniados e também, em vários casos, assassinados.
Como ministro da Justiça, após a Libertação, Togliatti apoiou a anistia aos fascistas, enquanto prendia partidários que não estavam dispostos a parar a revolução. Foi o PCI stalinista que pediu aos patrões que retomassem as fábricas das quais os trabalhadores os haviam expulsado.
O PCI atuou como agente direto da burocracia stalinista em Moscou, que havia feito um pacto com o imperialismo dito “democrático” (nas reuniões em Yalta, Teerã e Potsdam) de que a Itália deveria permanecer na zona de influência do imperialismo. Por isso mesmo, a resistência na França e na Grécia também foi desarmada. A burocracia stalinista temia novas revoluções porque elas poderiam colocar em xeque seu papel contrarrevolucionário na Rússia e sua política de coexistência pacífica com o imperialismo.
É preciso construir outra direção
Ao longo do século 20 não faltaram lutas e revoluções na Europa. O que tem faltado é uma liderança revolucionária forte o suficiente para combater as lideranças traidoras do reformismo de origem social-democrata ou stalinista. Foi apenas graças ao stalinismo que a burguesia foi salva muitas vezes: pense-se, por exemplo, na extraordinária onda revolucionária de maio de 1968 na França, bloqueada pelo Partido Comunista, nas lutas operárias de 1969 e início dos anos 1970 na Itália, mais uma vez usada pelo stalinismo como moeda de troca para colaborar com os governos burgueses.
Em Portugal, tanto o Partido Socialista de Soares como o Partido Comunista de Cunhal (ligado à burocracia estalinista em Moscou) desempenharam esse papel. Foram eles, juntamente com o Movimento das Forças Armadas, que assumiram o controle da situação em nome da burguesia, com o Partido Comunista comprometido em acabar com a onda grevista em nome do “interesse nacional”.
Os vários governos provisórios que se sucederam ao longo de um ano e meio, em 1974-1975, defenderam o Estado burguês. Governos burgueses baseados no Partido Comunista, no Partido Socialista e no MFA, todos eles respondendo às diferentes “fases da marcha da revolução e às sucessivas formas como a burguesia, a classe média e os reformistas que atuam como representantes do proletariado se adaptam a essa marcha para detê-la”, como resume Nahuel Moreno. O MFA trava a radicalização no Exército, o PC controla os trabalhadores através do seu peso nos sindicatos e o PS tem uma forte influência eleitoral.
Um ascenso revolucionário não pode durar para sempre: ou termina com a tomada do poder (e “rompe” a máquina estatal, como Marx resumiu a experiência da Comuna de Paris) ou está condenado a recuar. Em novembro de 1975, uma poderosa manifestação de trabalhadores da construção civil cercou o prédio do governo e os trabalhadores começaram a se armar. Mas o Governo faz algumas concessões na plataforma de reivindicações e – graças ao papel ativo do PCP – consegue apagar as chamas antes que estas engulissem o palácio, impondo um “estado de exceção”. Começa o refluxo e a burguesia recupera as concessões que lhe foram arrancadas através das lutas.
Portanto, pela ausência do elemento subjetivo, as condições objetivas – que estavam maduras – não levaram à única solução lógica e necessária: a tomada do poder pela classe operária.
Mas também por isso, apesar da sua derrota, a revolução portuguesa – a mais recente das revoluções na Europa – continua a ser um acontecimento cheio de lições sobre o papel nefasto do reformismo e as tarefas dos revolucionários.
Hoje o 25 de Abril em Portugal e o 25 de Abril em Itália são celebrados por todos, incluindo a burguesia, os seus governos e ministros. Mas estas não são datas de todos: nessa data celebramos a corajosa luta dos trabalhadores e da juventude que lutaram para construir um mundo diferente daquele em que vivemos, uma sociedade sem divisões de classe, liberada da exploração e da opressão. Foi esta necessidade de lutar por um mundo diferente que levou centenas de milhares de pessoas às ruas aqui em Itália há poucos dias, no 25 de Abril, e nas praças de Portugal no mesmo dia.
Aqui, nas manifestações, as principais palavras de ordem eram a favor de outra luta heroica de resistência: a do povo palestino, que hoje é a vanguarda da luta mundial contra o imperialismo. Mesmo no caso da Palestina, encontramos a mesma atitude das lideranças reformistas, sejam de origem stalinista ou social-democrata: elas só defendem a luta palestina com palavras, enquanto a traem com a mentira dos “dois Estados”, ou seja, de uma coexistência impossível entre os palestinos oprimidos e os opressores coloniais, os sionistas.
Na Palestina de hoje, como em Portugal em 1974 e na Itália em 1945, o reformismo, para defender os interesses das direções burocráticas, não põe em causa os interesses fundamentais do imperialismo. Por isso, é preciso construir outra direção.
Se olharmos para trás na história, o 25 de Abril de Portugal e o 25 de Abril de Itália, não é por nostalgia do passado. É tentar completar o trabalho interrompido, construir os partidos e a Internacional revolucionária indispensáveis para o triunfo das próximas revoluções.
Tradução: Lílian Enck