Velhas memórias muito atuais
(Publicado originalmente em 2017, na edição especial de Homenagem aos 30 anos de sua morte, de Conversações com Nahuel Moreno)
Por: Eduardo Almeida Neto
Buenos Aires, uma tarde de outubro de 1985.
Numa discreta casa de dois andares, em frente ao Parque Centenário, funcionava a sede da LIT-QI. Eu estava no Secretariado Internacional, para trabalhar ao lado de ninguém menos que Nahuel Moreno.
Para mim, o “velho” era um mito. Não vou falar sobre a sua trajetória política, sobre as polêmicas que acompanhei. Vou falar sobre a pessoa com quem convivi, o homem por trás do mito.
O “velho” era uma simpatia. Combinava conhecimento enciclopédico com a simplicidade e um sentido de humor sempre presente. Fazia parte da fila do almoço conosco. Sentava-se à mesa e muitas vezes tínhamos uma palestra sobre a história de África ou sobre as características biológicas de alguma espécie. Quase sempre terminava com uma piada.
Fiquei surpreendido por ver o Moreno a rir-se de si próprio. Ele sabia fazer isso, como quando disse que na primeira eleição em que participou concorreu com o programa da Comuna de Paris.
Esse traço da sua personalidade estava ligado a algo profundo. Moreno fez da autocrítica um instrumento decisivo. Nesse aspeto, seguiu Lenin. O “velho” ria-se dos dirigentes que “nunca erravam”, o que era uma marca de quase todos os dirigentes de esquerda, devido ao seu carácter de classe.
Quem intervém na luta de classes comete inevitavelmente erros. Debater coletivamente os próprios erros é importante para aprender e corrigir. Quem não aprende com os seus erros não se enriquece.
Conheci, embora superficialmente, outros grandes dirigentes trotskistas da geração de Moreno, como Mandel e Lambert. Eles eram muito diferentes.
Mandel era um típico intelectual das universidades europeias, inteligente e arrogante. Deu contribuições interessantes sobre a economia marxista. Cometeu grandes barbaridades políticas e teóricas, como a capitulação perante a guerrilha ou a afirmação de que a burocracia soviética nunca lideraria a restauração do capitalismo. Foram erros muito graves, com consequências desastrosas para gerações de militantes. Não conheço nenhuma autocrítica de Mandel.
Lambert, para além de pedante, era grosseiro, como um burocrata sindical. Fui convidado para um congresso da OSI (a organização no Brasil ligada a Lambert), onde ele fez um contra informe que destruiu o documento apresentado pela direção nacional do partido. Nesse congresso, a OSI passou de uma política sectária em relação ao PT (progressivo no seu início) para uma capitulação aberta à sua direção. Isso acabou por destruir a organização. Nunca houve autocrítica.
A autocrítica é tão parte do legado leninista quanto o centralismo democrático. A direção do PSTU, que aprendeu com Moreno, vive fazendo autocríticas, muitas vezes duras. Foi assim com a pouca importância que demos à luta contra as opressões do passado, à elaboração da teoria, à proletarização. Essas autocríticas nunca geraram crises, sempre ajudaram a fortalecer o partido, a orientar os seus caminhos.
A maioria da esquerda nem sequer faz balanços sérios. Passa de uma atividade para outra sem sequer tentar perceber o que está certo e o que está errado. O PTS passou de um partido sectário a uma adaptação eleitoral sem nenhuma discussão profunda, sem nenhuma autocrítica. Essas organizações não aprendem com seus erros. Hoje estão em ascensão, mas preparam grandes crises.
Moreno e a moral
Acompanhei Moreno em muitas polêmicas, internas e externas, grandes e pequenas. Nunca o vi caluniar ninguém. Isso também tem a ver com uma caraterística de nossa corrente. O “morenismo” não inclui apenas a defesa de um programa, a audácia na disputa pela liderança. Inclui a moral proletária. Essa moral solidária que nasce espontaneamente nos piquetes e leva os ativistas a defenderem-se uns aos outros contra a polícia e os patrões, independentemente das correntes políticas que cada um apoia. A moral revolucionária que educa os novos militantes para o fato de que “não vale tudo” na luta política. Mesmo na luta contra o reformismo ou a burguesia, a calúnia não é válida.
A calúnia foi introduzida como método de luta política pelo estalinismo. Infelizmente, tornou-se parte da prática da maioria das correntes de esquerda. Este veneno tem o seu preço, porque os novos militantes são educados no “vale tudo”, e depois isso é utilizado nas lutas internas típicas das seitas estéreis. A calúnia pode ser utilizada para ganhar uma discussão, para ajudar a destruir um quadro ou uma organização. Mas não constrói nada de sólido em termos revolucionários.
O “velho” deu o seu exemplo pessoal, formou os quadros com a moral. Há valores simples, humanos, como dizer a verdade, ser solidário com os seus camaradas, que são
negadas diariamente pelo capitalismo. Moreno trouxe a educação moral como contraponto a isso na vida dos militantes.
Saber ouvir
O “velho” me impressionou por outra caraterística: ele sabia ouvir.
Às vezes, ele me perguntava sobre o Brasil ou minha opinião sobre algum assunto. E me ouvia, muitas vezes sem dizer nada. Fazia isso com vários quadros. Muitas vezes eu o vi numa discussão, defendendo explicitamente o que um companheiro tinha dito, que às vezes era de base. Numa polêmica, procurava sempre ouvir, compreender a posição contrária. Qual era o seu centro, para evitar falsas polêmicas, ou se havia algo que pudesse ser incorporado.
O processo de elaboração política de um partido é coletivo ou é muito fraco e unilateral. Ainda mais numa época como a que vivemos. Não temos Lenine, nem Trotsky, nem Sverdlov em nenhuma das organizações que se dizem revolucionárias. A elaboração coletiva é ainda mais importante. Saber escutar é reforçar o coletivo. Saber ouvir faz com que aqueles que são ouvidos se sintam integrados.
Que diferença em relação aos líderes que gostam de ser ouvidos, mas não sabem ouvir. Irritam-se quando ouvem uma intervenção melhor do que a sua. Aqueles que gostam de dizer palavras difíceis para que as pessoas admirem a sua inteligência, sem se preocuparem se foram compreendidos ou não.
Uma relação séria com a teoria
Acompanhei parte da discussão de Moreno sobre as revoluções que derrubaram as ditaduras da América Latina. Moreno tinha uma relação com a teoria que é um exemplo para nós. Em primeiro lugar, pela importância dada ao estudo, à elaboração teórica.
Acho que foi a relação de Moreno com a teoria que possibilitou que o partido argentino, sob a liderança de Moreno, sobrevivesse à pressão do peronismo, assim como a LIT sobreviveu à pressão do chavismo e dos governos do PT.
Enganam-se aqueles que veem em Moreno apenas a ousadia em aproveitar as oportunidades, na disputa da liderança política. O “velho” era, antes de tudo, um apaixonado pela teoria e pelo programa. Era isso que dava solidez à LIT enquanto ele estava vivo.
Hoje, uma brutal indigência teórica domina a esquerda. Muitas das correntes contentam-se em procurar citações dos clássicos para justificar a sua política. Não é por acaso que os reformistas não elaboram nada de novo. Acabam apenas por reeditar os reformistas clássicos como Kautsky e Berstein, mesmo que não o reconheçam.
Basta ver as “elaborações” de Pablo Iglesias ou as do PSOL para constatar isso.
Essa indigência também atinge o trotskismo. O PTS argentino tem um ponto forte no CEIP, através da publicação de livros de Trotsky. Mas sua própria elaboração teórica é nula. Agora começa a trilhar o caminho do gramscianismo. Esse foi o caminho seguido por 99% do reformismo.
Há correntes que tomam os clássicos como imutáveis, sem elaborar nada de novo. Moreno não fez isso. Se era o caso, dizia que Trotsky estava errado, sem nenhuma hesitação. A coragem intelectual uniu-se à seriedade na discussão teórica. Foi assim na interpretação das revoluções do pós-guerra.
Ao mesmo tempo, teve a seriedade de preservar a estrutura básica dos clássicos, tão renegada pelos reformistas “modernos”.
A localização teórica de Moreno é uma das suas maiores contribuições. Não apenas suas contribuições ao marxismo, como sua interpretação das revoluções do pós-guerra e sua elaboração sobre as revoluções democráticas que derrubaram ditaduras, mas sua metodologia para elaborar teoria, sem medo de corrigir os clássicos, sem a impaciência dos que buscam o “novo” reeditando o que há de mais antigo, o reformismo.
Memórias de uma triste marcha
Contagem, Brasil, janeiro de 1987. A campainha toca insistentemente. Abro a porta. Um velho camarada, chorando, diz-me: “morreu, morreu”. Tento entender, mas ele só repete “ele morreu, ele morreu”. Passados alguns minutos, entendi que Moreno estava morto. Meu mundo caiu. Tive uma dura sensação de orfandade.
No mesmo dia, conseguimos viajar para Buenos Aires. O ambiente na direção do MAS argentino e da LIT era de perplexidade e de receio pelo futuro. Nosso líder tinha morrido. E não havia uma direção alternativa.
Durante as primeiras horas da manhã, fiz parte da guarda de honra durante algum tempo. Olhei para o caixão de Moreno e pensei no futuro. Não me ocorreu nada de bom.
Olhando para trás, podemos agora ver claramente o motivo da apreensão de todos nós. Moreno partia num momento delicado da esquerda mundial. O MAS argentino era a principal organização trotskista do mundo. Mas toda a confusão ideológica causada pelo processo em curso no Leste Europeu já se prenunciava. Passar por esse período sem Moreno era um salto no escuro.
Nas ruas de Buenos Aires, uma marcha trotskista cantava: “somos los troscos, los troscos de Moreno, somos los troscos del movimento obrero”. Caminhamos em direção ao cemitério de Chacarita com um duplo sentimento: o orgulho de sermos “morenistas” e a dúvida sobre o futuro.
A dúvida revelou-se um pré-anúncio do que estava para vir. Os efeitos da confusão pós-Leste e a adaptação à democracia burguesa destruíram o MAS e quase destruíram a LIT. Sem Moreno, a nova direção da LIT e do MAS não passou no teste da luta de classes em tempos difíceis.
No entanto, o legado de Moreno sobreviveu. A sua posição de combate ao reformismo. A sua posição de construção na classe operária, a sua moral, a sua atitude em relação à teoria, permitiram que a LIT se reconstruísse.
Apesar da crise, a LIT está viva e cada vez mais forte. Ver a nova direção operária do PSTU, com quadros políticos operários capazes à frente do partido. Ver uma nova seção a ser construída no Paquistão, usando um texto de Moreno (Problemas de Organização) como texto fundador.
A LIT está a reconstruir-se a partir das bases construídas por Moreno.
Hoje, 30 anos depois da sua morte, posso olhar criticamente para várias das elaborações de Moreno. Nem sempre estou de acordo agora, como não estive no passado. Mas podemos dizer ao “velho” que tudo o que existe hoje na LIT se deve a ele.
A melhor homenagem que podemos fazer a Moreno é dizer que ele foi a expressão da continuidade do marxismo. A rutura deste fio provocaria graves consequências para o futuro. A melhor homenagem que podemos fazer ao “velho” é dar continuidade à sua luta pela construção da LIT.