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Nahuel Moreno

Velhas recordações muito atuais

janeiro 25, 2024

Buenos Aires, uma tarde de outubro, 1985.

Em um sobrado discreto, de frente para o Parque Centenário, funcionava a sede da LIT. Eu estava no secretariado da LIT, para trabalhar junto a ninguém menos que Nahuel Moreno.

Por: Eduardo Almeida

Para mim, o “velho’ era um mito. Não vou falar de sua trajetória política, das polêmicas que acompanhei. Vou falar da pessoa com quem convivi, do homem por trás do mito. 

O velho era uma simpatia. Aliava um conhecimento enciclopédico a uma simplicidade bem humorada sempre presente. Entrava na fila do almoço, como todos nós. Sentava-se a mesa e muitas vezes nos víamos perante uma aula sobre a história africana ou sobre as características biológicas de alguma espécie. Quase sempre a conversa descambava para uma piada. Me surpreendi vendo Moreno fazendo graça sobre ele mesmo. Ele sabia rir de si próprio, como da primeira eleição em que participou e utilizou como programa o da Comuna de Paris.

Esse traço da personalidade estava ligado a algo profundo. Moreno fazia da autocrítica um instrumento decisivo. Nisso, seguia a Lenin que tinha o mesmo método. O velho se ria dos dirigentes que “nunca erravam”, que é uma marca registrada de quase todos os dirigentes da esquerda, por seu caráter de classe.

Quem intervém na luta de classes, inevitavelmente comete erros. Debater coletivamente seus próprios erros é um instrumento muito importante para a correção e aprendizagem. Quem não aprende de seus erros, não se enriquece.

Conheci, ainda que superficialmente, os outros grandes dirigentes trotsquistas da geração de Moreno, como Mandel e Lambert. Eram muito diferentes.  

Mandel era um intelectual típico das universidades europeias, inteligente e arrogante. Ele fez contribuições interessantes sobre economia marxista. E disse inúmeras barbaridades políticas e teóricas como a capitulação ao guerrilheirismo ou a afirmação de que a burocracia soviética nunca comandaria um processo de restauração do capitalismo. Erros gravíssimos com consequências desastrosas para gerações de militantes. Desconheço qualquer autocrítica séria de Mandel.

Lambert, além de arrogante era grosseiro como um burocrata sindical. Eu fui convidado a um congresso da OSI (a organização no Brasil ligada a Lambert), em que ele fez um contrainforme e destruiu o documento político apresentado pelo dirigente nacional do partido. Depois disso, literalmente ditou outro documento perante todos os delegados. Nesse congresso a OSI girou de uma política sectária em relação ao PT (que foi progressivo em seus inícios) para uma capitulação aberta a direção do PT. Isso acabou por destruir essa organização. Sem nenhuma autocrítica, nenhum debate sério.

O instrumento da autocrítica é tão parte do legado leninista como o centralismo democrático. A direção do PSTU, que aprendeu com Moreno, vive fazendo autocriticas, muitas vezes duras. Foi assim com o pouco caso dado a luta contra as opressões no passado, com a elaboração teórica, com a proletarização. Essas autocríticas nunca geraram crises, sempre ajudaram a fortalecer o partido, corrigir suas rotas.

A maioria da esquerda sequer faz balanços sérios. Emendam uma atividade na outra, sem sequer se preocupar em entender os acertos e erros. O Partido Obrero, da Argentina, é dirigido por Altamira, um típico dirigente que “não se equivoca”, que se julga um Lenin redivivo. Ou o PTS, que girou de um partido sectário à adaptação eleitoral sem nenhuma discussão profunda, nenhuma autocrítica. Essas organizações não aprendem com seus erros. Estão em ascenso nos dias de hoje, mas preparam grandes crises.

Moreno e a moral

Acompanhei Moreno em inúmeras polêmicas, internas e externas, maiores e menores. Jamais vi o velho caluniar alguém. Isso também tinha a ver com uma caraterística da corrente. O “morenismo” não inclui só a defesa de um programa, a audácia na disputa pela direção. Inclui a moral proletária. Essa moral solidária que nasce espontaneamente nos piquetes de greve e leva os ativistas a defenderem um ou outro da polícia e dos patrões, independente das correntes políticas que defendam. A moral revolucionaria que educa os novos militantes de que não vale tudo na luta política. Mesmo ao lutar contra o reformismo ou a burguesia não vale a calúnia.

A calúnia foi introduzida como método de luta política pelo stalinismo. Infelizmente, se incorporou a prática da maioria das correntes da esquerda. Esse veneno depois cobra seu preço, porque se educam os novos militantes nesse vale tudo, isso depois é usado nas lutas internas típicas das seitas estéreis. Pode-se ganhar uma discussão, ajudar a destruir um quadro ou uma organização com uma calúnia. Mas não se constrói nada sólido em termos revolucionários. Os quadros educados nesse método, depois o utilizam

O velho dava seu exemplo pessoal e formava os quadros com uma moral. Existem valores simples e humanos como falar a verdade, ser solidários com os companheiros que são negados cotidianamente no dia a dia do capitalismo. Moreno trazia a educação moral como um contraponto a isso na vida dos militantes.

Saber escutar

O velho me impressionou por outra característica: sabia escutar. 

Ele por vezes me perguntava sobre Brasil ou minha opinião sobre algum tema. E me ouvia, muitas vezes sem falar nada. Só escutava. Fazia isso com vários quadros. Muitas vezes o vi, em uma discussão, reivindicando explicitamente o que disse um companheiro, por vezes de base. Em uma polemica, sempre buscava ouvir e entender a posição contrária. Qual era seu centro, para evitar polemicas falsas. Se existia algo que pudesse ser incorporado.

O processo de elaboração política de um partido é coletivo ou então é fraquíssimo e unilateral. Mais ainda em uma época como a que vivemos. Não temos nenhum Lenin, nenhum Trotsky, nenhum Sverdlov em nenhuma das organizações que se reivindicam revolucionárias. A elaboração coletiva é ainda mais importante.  Saber escutar é fortalecer o coletivo. Saber escutar faz com que os que são ouvidos se sintam integrados.

Quanta diferença em relação aos dirigentes que adoram ser ouvidos, mas não sabem escutar. Que se irritam ao ouvir uma intervenção melhor que a sua.

Aos que adoram falar palavras difíceis para que as pessoas admirem sua inteligência, sem nenhuma preocupação se foi ou não entendido.

Uma relação séria com a teoria

Acompanhei uma parte da elaboração de Moreno sobre as revoluções que derrubaram as ditaduras na América Latina. Moreno tinha uma relação com a teoria que é um exemplo para nós. Em primeiro lugar pela importância dada ao estudo e elaboração teórica.

Acho que foi a relação de Moreno com a teoria que possibilitou que o MAS argentino, sob a direção de Moreno, sobrevivesse a pressão brutal do peronismo, assim como a LIT tenha sobrevivido a pressão do chavismo e dos governos do PT. Enganam-se os que vem em Moreno só a audácia no aproveitamento das oportunidades, da disputa pela direção política. O velho foi, em primeiro lugar, um apaixonado pela teoria e o programa. Foi isso deu solidez a LIT enquanto ele vivia.

Hoje predomina na esquerda uma indigência teórica brutal. Muitas das correntes de esquerda se contentam em buscar citas dos clássicos para justificar sua política. Não é por acaso que os reformistas não elaboram nada de novo. Só terminam por reeditar os reformistas clássicos como Kautsky e Berstein, ainda que não o reconheçam.

Basta ver as “elaborações” de Pablo Iglesias ou das correntes do PSOL para verificar isso.

Essa indigência atinge também o trotsquismo.  O PTS argentino tem no CEIP um ponto forte pela publicação dos livros de Trotsky. Mas sua elaboração teórica própria é nula. Agora está começando a trilhar o caminho teórico do gramscianismo. Esse foi o caminho seguido por 99% do reformismo.

Existem ainda as correntes que tomam os clássicos como imutáveis, sem elaborar nada de novo. Moreno não fazia isso. Quando era o caso, dizia que Trotsky estava errado, sem nenhuma vacilação. A coragem intelectual se aliava a seriedade na discussão teórica. Foi assim na interpretação das revoluções do pós guerra.

Ao mesmo tempo tinha a seriedade de preservar a estrutura básica do pensamento dos clássicos, tão renegados pelos “modernos “ reformistas.

A postura teórica de Moreno é uma de suas maiores contribuições. Não só seus aportes ao marxismo como sua interpretação das revoluções do pós guerra e sua elaboração sobre as revoluções democráticas que derrubam ditaduras. Mas sua postura séria de como elaborar teoria, sem medo de corrigir os clássicos, sem a impaciência dos que buscam o “novo” e reeditam o que de mais velho existe que é o reformismo.

Lembranças de uma passeata triste

Contagem, Brasil, Janeiro de 1987. A campainha da porta toca insistente. Abro a porta. Um velho camarada, chorando, me diz: “Morreu, ele morreu”. Tento entender o que ele diz, mas ele só repetia: “Morreu, morreu”. Depois de alguns minutos, consegui saber que Moreno estava morto. Meu mundo caiu. Tive uma dura sensação de orfandade.

No mesmo dia, conseguimos viajar para Buenos Aires. O clima na direção do MAS argentino e da LIT era de perplexidade e temor em relação ao futuro. Nosso dirigente tinha morrido. E não tinha nenhuma alternativa de direção construída. 

Durante a madrugada, por algum tempo fiz parte da guarda de honra do corpo de Moreno. Olhei para o caixão e, pensei no futuro. Nada de bom me surgiu.

Olhando agora para trás, pode-se ver claramente o motivo da apreensão de todos nós. Moreno se ia em um momento delicado na esquerda mundial. O MAS argentino era naquele momento a principal organização trotsquista em todo o mundo.  Mas já se prenunciava toda a confusão ideológica causada pelo processo em curso no leste europeu. Atravessar esse período sem Moreno era um salto no escuro.

Nas ruas de Buenos Aires, uma passeata  trotsquista cantava: “somos los trotscos, los trotscos de Moreno, somos los trotscos del movimento obrero”. Andávamos em direção ao cemitério de Chacarita com um sentimento duplo: o orgulho de ser “morenistas”  e a incerteza em relação ao futuro.

A incerteza se mostrou um prenúncio do que ia acontecer. Os efeitos da confusão pós leste e a adaptação a democracia burguesa destruíram o MAS, e quase destruíram a LIT. Sem Moreno, a nova direção do MAS e da LIT não passaram a prova da luta de classes em um momento muito difícil.

Felizmente, no entanto, o legado de Moreno sobreviveu. Sua postura de combate contra o reformismo, sua postura de construção na classe operária, sua moral, sua atitude em relação à  teoria possibilitaram que a LIT se reconstruísse.

Apesar da crise, a LIT está viva e se fortalecendo.  Ver a nova direção operária do PSTU, com quadros políticos operários capazes a frente do partido. Ver uma nova seção da LIT se construindo no Paquistão e usando um texto de Moreno (questões de organização) como texto fundacional.

A LIT está se reconstruindo a partir dos alicerces construídos por Moreno. Hoje, 30 anos após sua morte, posso olhar com ar crítico várias das elaborações de Moreno. Nem sempre tenho acordo agora, como não tive no passado. Mas podemos dizer ao velho que tudo que existe hoje na LIT se deve a ele.

 A melhor homenagem que podemos fazer a Moreno é constatar que ele foi a expressão da continuidade viva do marxismo. Ter rompido esse elo teria sérias consequências em relação ao futuro. A melhor homenagem que podemos fazer ao velho é dar continuidade a sua luta para construção da Lit.

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