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sexta-feira, julho 26, 2024

A limpeza étnica em Nagorno-Karabakh

O dia 24 de setembro de 2023 fica para a história como o início da limpeza étnica do povo armênio que vive há séculos na região de Nagorno-Karabakh. Em apenas cinco dias, cerca de 78 mil de um total de 120 mil armênios “fugiram” da região em direção à Armênia temendo represálias do regime Azeri, após o desarmamento das forças de auto-defesa armênias que foram abandonadas pelo regime russo, pelas potências ocidentais e até mesmo pelo governo armênio. Apoiado diretamente pelo regime turco, e indiretamente pelo regime russo, e com armas israelenses, o regime azeri executou um crime contra a humanidade. É difícil olhar as cenas da população aterrorizada em fuga e não recordar do genocídio do povo armênio pelo império otomano, com o apoio de setores da população curda, ocorrido um século antes.

Por: Fábio Bosco

Ao contrário da explicação simplista da grande mídia internacional que atribui esse massacre ao ódio étnico entre os povos, é preciso relembrar que diferentes nacionalidades viveram em paz no cáucaso por séculos, e portanto é necessária uma outra explicação por fora da visão imperialista “orientalista” e outra solução histórica.

A região do Cáucaso Meridional ou Transcaucásia, onde se localizam atualmente a Armênia, o Azerbaijão e a Geórgia, é uma área estratégica entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. Além de constituir um corredor de trânsito entre o oriente europeu e a oeste asiático, ela também se tornou um importante centro de exploração de petróleo e gás a partir do final do século dezenove.

Nesta região povos milenares sempre viveram juntos em paz mas comprimidos por três grandes impérios: o russo, o otomano (atual Turquia) e o persa (atual Irã) cujas presenças exerceram forte influência cultural, linguística e religiosa.

No início do século dezenove o império Russo toma essa região do império persa através de duas guerras (1804-1813 e 1826-1828) encerradas por dois tratados (Gulistão de 1813 e Turcomenchay de 1828) e exerce seu domínio até a revolução russa de 1917.

Apoiar a revolução ou a contra-revolução?

Com a tomada do poder na Rússia pelos bolcheviques liderados por Lênin em outubro de 1917, os líderes locais do partido menchevique da Geórgia, da Federação Revolucionária Armênia e do Musavat (Azerbaijão), contrários aos ideais internacionalistas e revolucionários dos bolcheviques, decidem formar a breve República Federativa Democrática da Transcaucásia em 22 de abril de 1918, certos de contar com o apoio das potências internacionais, como o Reino Unido, a Alemanha e os Estados Unidos, interessadas em conter o avanço da revolução russa.

No entanto, frente à ofensiva militar do exército otomano, os líderes georgianos rompem com a República Federativa em 26 de maio de 1918, se aliam primeiro com o Império Alemão e depois com o império britânico, e mergulham em um nacionalismo abjeto promovendo pela via militar disputas territoriais com a Armênia e o Azerbaijão.

Esse nacionalismo regressivo vai contaminar os líderes nacionalistas armênios e azeris que seguirão o mesmo caminho, disputando áreas entre si. A elite armênia vai buscar o apoio do Reino Unido e dos Estados Unidos para reconstruir a Grande Armênia, e a elite Azeri o apoio otomano e depois britânico.

A guerra com o exército otomano e entre as jovens repúblicas é interrompida pelo ingresso do exército vermelho que toma toda a região em 1920-1921 e, em 1922, é formada a República Federativa Socialista Soviética da Transcaucásia que une as três repúblicas: Armênia, Azerbaijão e Geórgia. Posteriormente a Federação da Transcaucásia  fundará a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) junto com a Federação Russa e as Repúblicas da Ucrânia e BieloRússia.

A questão das nacionalidades

O direito de autodeterminação dos povos oprimidos sempre foi parte do programa do partido bolchevique sob Lênin, que inclui o direito à secessão. Um exemplo disso foi a Finlândia. Logo após a tomada  do poder pelos bolcheviques, o senado finlandês enviou uma delegação à Petrogrado com uma petição pela independência da Finlândia que foi firmada por Lênin de imediato.

No entanto, alguns anos após a tomada do poder pelos sovietes, Stalin rompe com o programa bolchevique ao se opor ao direito de autodeterminação, propondo uma autonomia formal e tutelada.

Esta questão foi objeto de intensa discussão dentro do partido bolchevique e terminou com a derrota de Stalin e a vitória de Lenin, Trotsky e outros líderes bolcheviques. O resultado foi a inclusão do pleno direito de autodeterminação dos povos oprimidos na primeira constituição soviética.

Após a morte de Lênin, com a derrota das revoluções na Europa e o refluxo da revolução russa, Stalin toma o controle sobre o partido comunista (PCUS) e o Estado Soviético, que se tornam burocráticos. O direito de autodeterminação se tornará letra morta, e a União Soviética o “cárcere dos povos”.

A questão de Nagorno-Karabakh

No Cáucaso Meridional, os diversos povos viviam juntos e misturados. Os territórios com maioria de um povo continham importantes minorias de outros povos e não eram contínuos. Esse é o caso de Nagorno-Karabakh (Alto Karabakh).

Nas terras altas de Karabakh (chamadas de Nagorno-Karabakh) vive uma maioria de armênios, algo ao redor de 80%. Já nas terras baixas de Karabakh há, historicamente, uma maioria azeri. Todos vivem nestas regiões há séculos.

Entre 1921 e 1923 ocorreu um debate dentro do partido bolchevique sobre Nagorno-Karabakh. A posição de toda a delegação transcaucasiana (formada por armênios, azeris e georgianos) foi pela integração de Nagorno-Karabakh à Arménia. Mas Stalin impôs outra solução. Entregou a área de Zangezur para a Armênia e a área de Nakhchivan e Karabakh (terras altas e baixas) para o Azerbaijão.

Para piorar, em 1936 Stalin dissolveu a República Federativa Soviética da Transcaucásia e a dividiu novamente nas Repúblicas Soviéticas da Armênia, Azerbaijão e Geórgia preparando o conflito que vai ressurgir meio século depois em 1988.

O fim do “cárcere dos povos” e o veneno dos antagonismos nacionalistas

Em meados dos anos 80, Mikhail Gorbachev ascende ao poder na União Soviética. Ele proclama as políticas da Perestroika (Reestruturação) e da Glasnost (Transparência) e inicia o caminho de volta ao capitalismo.

São as nacionalidades oprimidas quem iniciam o enfrentamento contra a ditadura do PCUS que agora dirige a mão de ferro um Estado capitalista.

Em 20 de fevereiro de 1988, o soviete de Karabakh vota a independência de Nagorno-Karabakh (chamada de Artsakh pela população local) e sua unificação com a Armênia por 110 votos a favor e 17 votos contrários. Gorbachev se opõe à esta decisão. Começa o conflito militar entre o Azerbaijão e a população de Nagorno-Karabakh apoiada pela Armênia.

Em 1991 as Repúblicas da Armênia e do Azerbaijão se tornam independentes e um referendo massivo em Nagorno-Karabakh vota pela independência.

Este conflito se estenderá com forte influência dos militares russos nos dois lados e já resultou em 30 mil mortos e um milhão de refugiados/deslocados.

Em 1994 um armistício mediado pela Rússia congela as ações militares e Nagorno-Karabakh se torna independente de fato mas não de direito, ou seja, a população local armênia controla a região mas sua independência não é reconhecida nem pelo Azerbaijão nem pela ONU.

Desde então ofensivas militares e processos de opressão contra minorias nacionais ocorrem periodicamente, condenando a região de Nagorno-Karabakh ao sub-desenvolvimento.

A quem interessa o conflito?

O antagonismo regional entre a Armênia e o Azerbaijão interessa diretamente à Rússia e outras potências regionais e internacionais.

A Rússia vende armas e mantém bases militares nos dois países que seguem sob sua esfera de influência o que lhe garante o controle do Cáucaso e de suas riquezas.

A partir de 1991, a Turquia estabeleceu uma relação prioritária com o Azerbaijão, onde se concentram as reservas de petróleo e gás natural da região.

O Azerbaijão é governado desde 1993 pelo ex-integrante da KGB Heydar Aliyev que foi sucedido por seu filho Ilham Aliyev em 2003. Esse regime político autoritário e capitalista fomenta um nacionalismo tóxico contra a minoria armênia enquanto entrega a exploração de petróleo e gás para multinacionais ocidentais e russas. Para a atual ofensiva sobre Nagorno-Karabakh, o regime azeri comprou armas israelenses, além das russas, e aposta no apoio da Turquia, que desde 1993 bloqueia suas fronteiras com a Armênia.

A Armênia tinha um regime autoritário que foi derrubado por uma revolução popular em 2018. No entanto o atual regime democrático-burguês também aposta num nacionalismo tóxico contra o Azerbaijão e numa relação privilegiada com a Rússia, a Europa e os Estados Unidos.

Voltar à Lênin

A alternativa aplicada pelos regimes políticos da Armênia e do Azerbaijão é a eterna guerra intermitente e a opressão nacionalista contra as minorias em seus países enquanto entregam suas econômicas para o capitalismo internacional e se mantêm sob a esfera política da Rússia.

Essa alternativa não atende aos verdadeiros interesses da população trabalhadora que sofre com o desemprego, a desigualdade social, o conflito nacionalista e o domínio estrangeiro.

A alternativa que interessa à classe trabalhadora armênia e azeri começa pelo direito de autodeterminação das nacionalidades oprimidas e pelo respeito às minorias nacionais, defendido por Lênin. Afinal qual é o sentido do regime azeri dominar Nagorno-Karabakh pela via militar, onde os armênios vivem há séculos? Promover mais opressão e limpeza étnica? A população de Nagorno-Karabakh tem que ter o direito à autodeterminação. Assim como a população azeri das terras baixas de Karabakh, sob controle armenio até 2020, tem que ter o direito de autodeterminação. Nenhum povo é livre enquanto oprime a outro povo. O caminho da liberdade passa necessariamente pelo respeito mútuo e o reconhecimento dos direitos das nacionalidades oprimidas.

Essa alternativa se completa pela formação de uma nova Federação de Repúblicas Socialistas da Transcaucásia entre Armênia, Azerbaijão e Geórgia, com a saída de todas as forças militares estrangeiras, onde todos os povos da região possam viver juntos e misturados em paz, como ocorreu durante séculos, e sem interferência externa nem relações econômicas ou diplomáticas com o Estado racista de Israel, que se dedica a esmagar os direitos nacionais do povo palestino.

Para levar a frente esta alternativa, a classe trabalhadora dos dois países terá que derrubar ambos os regimes, superar o veneno do nacionalismo tóxico; e caminhar para um poder dos trabalhadores, única saída para garantir justiça social, a paz entre os povos e a independência nacional.

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