“Se acabó”: o grito de guerra contra o machismo que se ouviu por todo o Estado Espanhol
Quando Luis Rubiales beijou a boca da jogadora Jenni Hermoso, no dia 20 de agosto, nem lhe passou pela cabeça a tormenta que iria desencadear. Afinal, o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) parecia julgar-se acima do bem e do mal: mesmo antes do beijo, para comemorar a vitória da sua equipe, colocara a mão nos seus próprios genitais – num gesto bastante utilizado para simbolizar a supremacia masculina – em plena tribuna de honra do Stadium Australia, em Sydney.
Por: Cristina Portella
Nesse mesmo local, para assistir ao jogo do Mundial Feminino que consagraria a equipe do Estado Espanhol, estavam, nada mais, nada menos, que a rainha e a infanta do país. A rainha não protestou publicamente contra a atitude de Rubiales, mas Jenni Hermoso, sim.
Os fatos
Ainda durante as comemorações pela vitória, Jenni Hermoso disse que não gostou da atitude do presidente da RFEF, mas que não teve como reagir. Na imprensa e nas ruas, ecoaram manifestações de solidariedade à jogadora e de repúdio ao comportamento de Rubiales. Num primeiro momento, ainda na Austrália, ele classificou como “idiotas” as críticas recebidas, para depois recuar e pedir desculpas.
Mas sempre afirmando que a jogadora tinha consentido com o beijo, o que foi negado por ela: “Quero esclarecer que em nenhum momento consenti o beijo que Rubiales me deu”, escreveu Jenni Hermoso num comunicado veiculado pelo sindicato das futebolistas espanholas (Futpro). Nesse mesmo comunicado, o Futpro alerta o Conselho Superior do Desporto para a necessidade de “apoiar e promover de forma ativa a prevenção e intervenção em casos de abuso sexual, machismo e sexismo”.
A comoção no país foi tanta que a vice-presidente, Yolanda Díaz, a Associação de Jogadores de Futebol Espanhóis (AFE) e a Federação de acionistas e sócios do futebol espanhol (FASFE) pediram a renúncia de Rubiales. Ele se negou a fazê-lo, sempre a argumentar que o beijo havia sido consentido, no que foi apoiado pela RFEF. No dia seguinte, a Federação Internacional de Futebol (FIFA) anunciou a suspensão do dirigente por 90 dias, até o veredito do processo disciplinar aberto para apurar o ocorrido.
O Me Too espanhol
A luta de Jenni Hermoso pela reposição da verdade começou a ser ganha no dia 25 de agosto, cinco dias depois do assédio de que foi vítima. Num duro comunicado, a jogadora expôs as situações difíceis enfrentadas pelas mulheres na Seleção Espanhola nos últimos anos e acusou a RFEF de tê-la pressionado, à sua família e às suas companheiras de equipe para que apoiassem a versão dos fatos favorável a Rubiales. “Quero esclarecer que, em nenhum momento, consenti o beijo que ele [Luis Rubiales] me deu (…). Não tolero que minha palavra seja questionada e muito menos que se inventem palavras que eu não tenha dito”, escreveu Jenni Hermoso. “Senti-me vulnerável e vítima de uma agressão, um ato impulsivo, machista, despropositado e sem nenhum tipo de consentimento”, prosseguiu. “Sinceramente, não fui respeitada.”
Em solidariedade a Jenni Hermoso, 81 jogadoras, 23 das quais campeãs do mundo, assinam um comunicado em que expressam “a sua firme e contundente condenação dos comportamentos que violaram a dignidade das mulheres”. Nesse mesmo texto, elas pedem mudanças radicais na direção da RFEF e na seleção feminina e avisam que não voltarão à seleção se os atuais dirigentes, entre os quais Rubiales, lá permanecerem. Além das jogadoras, 11 integrantes da equipa técnica da seleção espanhola, entre homens e mulheres, demitiram-se do cargo.
O Ministério Público espanhol abriu uma investigação contra Rubiales e, nas ruas, prosseguiram as manifestações contra à permanência do dirigente à frente da Federação e em repúdio ao machismo, no desporto e na sociedade. #SeAcabó, o hashtag com que Jenni Hermoso assinou um comunicado publicado no X (Twitter), transformou-se no grito de guerra dessas manifestações.
Elite em pânico
Só no dia 28 de agosto, e já com Rubiales afastado de sua direção, a RFEF muda de posição e apela à “demissão imediata” do até então presidente. Só o fez devido à pressão das jogadoras e das ruas, cada vez mais radicalizada contra o machismo existente no futebol, perpetuado tanto pelos seus dirigentes quanto pelas federações. Essa cumplicidade com as atitudes machistas presentes no futebol, e com Rubiales em particular, também é manifestada pela UEFA (União das Federações Europeias de Futebol), que até agora não condenou a conduta do dirigente espanhol, mantendo um silêncio comprometedor. A mesma atitude adotada pela Federação Portuguesa de Futebol, que se limitou a garantir que nada influenciará a candidatura entre Portugal e Espanha para organizar o Mundial de 2030. Sobre o comportamento machista de Rubiales, nenhuma palavra.
Solidariedade em Portugal
Uma atitude radicalmente oposta à de Jéssica Silva, jogadora da seleção portuguesa de futebol. Para ela, de acordo com entrevista dada ao jornal Público, “é absolutamente triste e revoltante ver o que está a acontecer. A seleção espanhola, em vez de desfrutar do seu primeiro título mundial, tem de continuar a lutar por algo que devia ser transversal a todos nós: respeito, dignidade e honestidade”. “Devemos realçar a bravura dessas jogadoras”, continuou. “Tiveram coragem e espero que sejam protegidas. Esta denúncia foi importante para que outras jogadoras tivessem também essa coragem. É um alerta para a consciencialização de toda a comunidade, para que todos possamos ajudar.” “Estou com todas as minhas colegas”, concluiu ela.
Sim, estamos com Jenni Hermoso e pela destituição de todos os dirigentes desportivos que, como Rubiales, desrespeitam e oprimem as mulheres de suas equipes.
Crédito da Foto: Alejandro Reguero, CC BY-SA 4.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons