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Israel

Manifestações em Israel contra a reforma judicial de Netanyahu

agosto 2, 2023

Na semana passada, mais de 200 mil pessoas se mobilizaram em várias cidades do Estado de Israel contra a reforma judicial promovida pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, no dia em que foi votada e aprovada no Knesset (Parlamento). Essa reforma limita os poderes da Suprema Corte para questionar atos do governo.[1] Um historiador e analista político israelense caracteriza que essa reforma judicial representa uma mudança no regime político israelense [2].

Por: Alejandro Iturbe

Essa onda de mobilizações contra o governo israelense começou em fevereiro passado, quando Netanyahu apresentou seu projeto ao Knesset. Naquele momento, publicamos na página da LIT-QI um artigo que analisava quais processos econômicos, sociais e políticos estavam ocorrendo no seio da população judaica de Israel, que estavam na base desse confronto [3].

Neste artigo, partimos da caracterização que nossa corrente morenista elaborou desde a criação do Estado de Israel, em 1948: trata-se de um enclave militar contra os povos árabes, a serviço do imperialismo, construído a partir da usurpação do território histórico palestino e a expulsão de grande parte deste povo de sua legítima terra. Uma população judaica primeiro da Europa e depois de outras partes do mundo se mudou e se estabeleceu naquele enclave.

Essa essência de Israel é o que determina o caráter de sua sociedade e sua dinâmica política. Porque só mantém a sua “unidade” no “combate contra o perigo” e a ameaça que a rodeia. Ou seja, a resistência do povo palestino e, de forma mais geral, a luta dos povos árabes. Por isso, as organizações políticas e as coalizões governistas têm se movido cada vez mais para a direita (como esta atual de Netanhayu) e, ao mesmo tempo, os governos israelenses sempre tentam sair de suas crises com uma nova agressão contra os palestinos, como a realizada recentemente contra o campo de refugiados de Jenin, na Cisjordânia[4].

As contradições

No entanto, como analisamos no referido artigo, inclusive nessa população “ocupante”, unida contra o “inimigo palestino”, ocorrem processos econômicos, sociais e políticos que geram contradições e enfrentamentos internos.

Nas últimas décadas, houve uma mudança na estrutura social da população judaica de Israel e, nesse contexto, em sua dinâmica política. A população imigrante de origem Ashkenazi, vinda da Europa e de outras partes do mundo, foi quem “pôs o corpo” à construção e “defesa” de Israel nas décadas iniciais (e forneceu os melhores quadros políticos, militares e científicos), agora está muito mais “pequeno burguesa” e muito menos comprometido com Israel. Não questiona sua existência e sua defesa, mas agora o faz de uma perspectiva diferente.

À medida que a realidade se torna cada vez mais perigosa, muitos se cansam desse ambiente de “guerra permanente” e cresce o número de cidadãos israelenses que estão deixando o país, muitos deles da elite intelectual e profissional, buscando uma “solução individual” na emigração para os EUA e Europa (sem renunciar à cidadania israelense). A deserção inexplícita também está aumentando: a saída de jovens em idade militar, que tentam evitar as frentes e o serviço em territórios palestinos ou libaneses.

A “base militante” de “defesa de Israel” e agressão contra os palestinos foi transferida para novos imigrantes, especialmente judeus da Rússia, cuja imigração foi incentivada após a queda da ex-URSS (estima-se que já cheguem perto de um milhão). É um setor que recebe muitos privilégios (casas gratuitas e muitos subsídios estatais) para que Israel assuma o controle total de Jerusalém e avance na ocupação dos territórios da Cisjordânia. Por isso, são os mais radicalizados e agressivos contra os palestinos, e os mais dispostos a lutar pela “defesa de Israel”.

Ao mesmo tempo, embora minoritária, uma população ultra religiosa se estabeleceu, como base do Hamafdal (Partido Religioso Nacional, em hebraico). Os adeptos desse partido não trabalham nem prestam serviço militar: dedicam-se apenas ao estudo da Torá (Bíblia hebraica). Eles conseguiram que o estado e os governos lhes pagassem um salário mínimo. O Hamafdal usou seu peso eleitoral e parlamentar para negociar com Netanyahu seu apoio à formação de seu governo, em troca da manutenção desses benefícios.

Uma mudança no modelo de acumulação capitalista

Durante várias décadas, a economia deste enclave imperialista desenvolveu-se diretamente impulsionada e controlada pelo Estado. Por um lado, pesava a “ajuda” externa: tanto aquela enviada pelo imperialismo estadunidense para fins militares quanto aquela fornecida pelo movimento sionista internacional com contribuições de judeus residentes em outros países (especialmente nos Estados Unidos). Por outro lado, os alimentos eram parcialmente abastecidos pelos kibutz (fazendas coletivas ligadas ao Estado) e serviços públicos, como o fornecimento de energia e água potável, eram garantidos por empresas estatais cuja administração estava nas mãos da Histadrut, a “central sindical” dos trabalhadores judeus israelenses , ligado ao Mapai, o partido da “esquerda sionista” de onde saíram os principais quadros “fundadores” de Israel, como seu primeiro presidente Ben Gurion.

Nesse contexto, desenvolveu-se uma indústria de armas que, primeiro, apenas abastecia o exército israelense, para depois começar a exportar: no século 21, Israel figurava entre os dez maiores exportadores de armas do mundo [5]. Inicialmente, fabricava armas leves e munições, mas depois incorporou veículos de combate e aeronaves de pequeno porte. Por fim, especializou-se cada vez mais no desenvolvimento de tecnologia para fins militares e no desenvolvimento de software e sistemas de segurança e vigilância.

Essa economia israelense nacionalizada começou a ser desmantelada e privatizada desde os anos 1980 (na onda mundial “neoliberal”); uma parte dessas empresas estatais foi transformada em sociedades mistas e outras foram vendidas diretamente [6]. Sobre esta base “neoliberal”, novas empresas privadas começaram a se desenvolver, especialmente no setor de tecnologia de segurança e software e sistemas em geral. De forma minoritária, também em outras áreas como farmacologia e alimentos e bebidas. Atualmente, as exportações israelenses ultrapassam 150 bilhões de dólares, 30% do PIB do país [7].

Assim, surgiu uma nova burguesia privada “clássica” que estabeleceu vasos de comunicação com os mercados internacionais, tanto nas exportações quanto nos investimentos da burguesia israelense no exterior e do exterior para Israel [8]. Por exemplo, a pessoa mais rica de Israel é uma mulher, Miriam Adelson, casada com um americano e com dupla cidadania, com negócios no setor de cassinos [9].

Essa nova burguesia tem atritos e contradições com Netanyahu e sua política de “guerra permanente”, já que o atual descrédito de Israel no mundo, e a campanha BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) afeta as exportações de produtos israelenses e possíveis investimentos do Ocidente em Israel. Por isso, gostariam de “paz” para desenvolver seus negócios tranquilamente. Também desconfia da “insegurança jurídica” que, como burgueses, a atual reforma judicial representa para eles. Não é por acaso, portanto, que entre os que pedem ou apoiam as mobilizações contra a reforma estão empresários e economistas.

Surgiu também um novo setor de trabalhadores especializados e profissionais, cujo desenvolvimento pessoal e econômico está vinculado a essa nova economia. Nesta faixa de trabalhadores, predomina o setor azhkenazim e sua juventude, que quer “paz” para isso. Eles aspiram viver em um Israel “moderno, desenvolvido e democrático” no estilo dos países imperialistas europeus [10].

É preciso considerar que, como economia capitalista, Israel sofreu o impacto da crise econômica internacional iniciada em 2007/2008. A receita do Estado não é suficiente para cobrir suas despesas totais (com um orçamento militar muito alto) e deve escolher qual setor da população judaica ele beneficia. Este setor da juventude azhkenazim sente-se prejudicado e vê com indignação os privilégios que Netanyahu dá aos colonos de origem russa na Cisjordânia e que os ultra religiosos recebam salário sem trabalhar, que, além disso, não sejam obrigados a cumprir o serviço militar. Uma insatisfação que já havia se manifestado no movimento dos “indignados” que produziu uma onda de mobilizações em 2011[11].

Este setor da juventude, os trabalhadores especializados e os profissionais azhkenazim são a base majoritária das atuais mobilizações contra Netanyahu. Aqui é preciso fazer uma consideração: esse setor não questiona a existência de Israel como enclave e a usurpação da qual nasceu. Mas quer “paz com os palestinos”, que sejam abertas negociações com eles e que a política de “dois Estados” (um judeu e outro palestino) coexista “pacificamente” lado a lado.

Em vários artigos temos argumentado contra esta proposta e expressado que é uma “solução falsa”, porque legaliza a usurpação da qual nasceu Israel, além de ser inviável para os palestinos. Defendemos que a única solução possível é uma “Palestina unida, laica e democrática, do rio Jordão ao mar” [12]. Porém, a verdade é que aqueles que se mobilizam com esta posição chocam duramente com o governo de Netanyahu e seus aliados, a “cara feia” atual da “essência” de Israel.

Alguns itens adicionais

A política israelense sempre se caracterizou pela existência de numerosas (e frequentemente mutáveis) organizações que alcançam representação parlamentar e, portanto, a formação de coalizões de governo (como a de Netanyahu e seus aliados ultra religiosos) e blocos de oposição. Atualmente, a coalizão de governo tem 64 deputados e a oposição 56 (que deixaram o Knesset durante a votação da reforma do Judiciário).

O principal partido dessa oposição (com 24 deputados) é o Yesh Atid, cujo líder, Yair Lapid, quando fundou o partido em 2012, disse que “procurava representar o centro da sociedade israelense: a classe média laica”. Em seu programa, este partido propõe o fim da isenção do serviço militar para os ultra religiosos, a reabertura das negociações de paz com os palestinos e a suspensão da construção de colônias israelenses na Cisjordânia.

Agora, ao mesmo tempo em que convoca as mobilizações contra a reforma judicial, Yesh Atid defende o atual regime político israelense e tenta fazer com que essas mobilizações não levem a derrubar, nas ruas, o governo Netanyahu. Por isso, promove uma petição ao Supremo Tribunal Federal para declarar a ilegalidade da nova lei de reforma do judiciário.

Ele também chamou às mobilizações o Movimento por um Governo de Qualidade em Israel, que não atua como partido político, mas como uma “organização de direitos humanos”. Foi fundado em 1990, mas ganhou muito mais peso desde o movimento “indignados” e relata quase 100.000 membros. A política deste movimento é também apresentar uma petição ao Supremo Tribunal [13].

Outra convocatória importante foi a Histadrut, que, embora tenha perdido muito peso como administradora das estatais, continua sendo a principal organização sindical do país com quase um milhão de filiados. Seu líder, Arnon Bar-David, afirmou que “pode ​​convocar uma greve geral em resposta à votação e que começará a consultar os líderes sindicais como um primeiro passo” nessa direção.

Outros partidos que chamaram à mobilização foram os que recebem o voto dos árabes palestinos que vivem em território israelense como cidadãos, como a Lista Árabe Unida (5 deputados) e o Jadash (Frente Democrática pela Paz e Igualdade), a organização mais à esquerda dos que têm representação parlamentar (3 deputados). A maioria de seus dirigentes e eleitores é árabe, mas também tem setores que vêm dos Panteras Negras, organização fundada na década de 70 pelos sabras, descendentes de judeus que viviam na Palestina (ou em outros países árabes vizinhos, antes da criação de Israel) e que sempre foram altamente discriminados pelos azhkenazim.

Como informação complementar, mas muito importante: “mais de 11.000 reservistas anunciaram que cessarão o serviço militar em protesto contra a iniciativa [de Netanyahu]”. Os reservistas são aqueles que cumpriram o serviço militar aos 18 anos e até aos 40 anos estão disponíveis para serem convocados pelo exército em caso de necessidade. Sua atitude é como dizer: “Não vou defender ‘este’ Israel.”

A crise do regime político e o sionismo internacional

Assim, divididos por essas contradições da sociedade, assistimos a uma crise do regime político, expressa numa flutuação e alternância de governos que não se consolidam. O atual governo de Netanyahu tomou posse em dezembro passado e, desde então, vem enfrentando mobilizações contra ele.

Uma crise que se manifesta também no movimento sionista internacional (baseado em comunidades judaicas em outros países), especialmente nos EUA, onde existe a maior comunidade judaica fora de Israel. São cada vez mais os setores (especialmente jovens) que sentem repulsa pelos crimes de Israel, se solidarizam com o sofrimento dos palestinos e sentem a “necessidade” de uma “saída pacífica” que “reconheça” os palestinos e comece a negociar com eles.[14]. Muitos, por exemplo, aderem ao BDS.

Esta crise política nacional e internacional do sionismo é um fato positivo. Porque a luta palestina contra o Estado de Israel (e toda a solidariedade que buscamos construir com essa luta por meio da campanha do BDS) não enfrenta um bloco sólido e sem costura, mas um inimigo com rachaduras crescentes.

O que nos leva à necessidade de aprofundar esse apoio e solidariedade, buscando em cada país a forma de exigir o rompimento das relações diplomáticas dos governos com Israel, como foi feito na época contra o regime do apartheid sul-africano. No caso do Brasil, por exemplo, devemos denunciar e combater os muitos acordos de compra de armas e tecnologia que os governos de Lula e do PT fizeram e mantiveram.

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[1] Israel: mais de 200.000 manifestantes exigem o fim da reforma judicial (diariopopular.com.ar)

[2] Yoel Schvartz, historiador israelense fala sobre reforma judicial em Israel | Melhor País do Mundo – YouTube

[3] https://litci.org/pt/2023/02/11/uma-crise-politica-crescente-do-estado-de-israel-e-do-sionismo/ – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)

[4] https://litci.org/pt/2023/07/05/o-novo-massacre-em-jenin-e-a-palestina-que-nao-se-rende/ – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)

[5] As 10 principais exportações Adoradores mundiais de armas e geopolítica de ferro e fogo – Jornal Opção (jornalopcao.com.br)

[6] Israel acumula 98 empresas privatizadas | oportunidades

[7] Exportações de Israel podem chegar a US$ 165 bilhões (israelnoticias.com)

[8] Lista das principais empresas israelenses com valor de mercado – Capital Times

[9] Lista de israelenses por patrimônio líquido – Wikipedia

[10] Nesse sentido, é interessante ouvir o relatório na referência 2

[11] https://elpais.com/internacional/2011/07/21/actualidad/1311199207_850215.html

[12] https://litci.org/pt/2023/07/10/palestina-sobre-a-falsa-solucao-dos-dois-estados/– Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)

[13] O Movimento para o Governo de Qualidade em Israel (mqgisrael.org)

[14] Veja, por exemplo, https://mondiplo.com/israel-is-moving-away-from-the-american-jews

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