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Correio Internacional

Os planos do imperialismo europeu e estadunidense na guerra da Ucrânia

junho 26, 2023

EUA e OTAN se preparam para impor uma paz com anexações

Os dados sobre o envio de armas mostram que Biden não está proporcionando a ajuda militar necessária à Ucrânia para esta defender sua soberania, nem para satisfazer as necessidades urgentes, em quantidade e rapidez, do povo trabalhador Ucraniano que enfrenta a invasão e ocupação de seu país. Em vez disto, Washington considerou o esforço como um meio de se desfazer de equipamentos velhos de seus arsenais a fim de melhorar a capacidade militar estadunidense.

Por: Florence Oppen, Worker´s Voice (EUA)

Apesar da entrega dos sistemas antitanque Javelin, lança-foguetes múltiplos HIMARS, obuses M777, além dos misseis Patriot de fabricação estadunidense que desempenharam um papel decisivo nas últimas batalhas, as entregas reais não satisfizeram as necessidades de defesa da Ucrânia. George Barros, do Instituto para o Estudo da Guerra, disse à Newsweek que “há um argumento muito errôneo que circula entre alguns especialistas e algumas pessoas da comunidade política”, que argumentam que os EUA “enviaram à Ucrânia todas estas armas e (os Ucranianos) ainda não fizeram um grande avanço desde Kherson em novembro, portanto a ajuda militar é um custo perdido. No entanto, Barros pensa, assim como o ministro da Defesa Ucraniano, que a realidade é justamente ao contrário: “se estudamos as necessidades operacionais da Ucrânia e as comparamos com o que estamos enviando, há uma enorme disparidade, o problema é que na realidade não demos aos Ucranianos o suficiente para que demonstrem do que realmente são capazes”. [1]

O orçamento militar dos EUA alcançou o recorde de 877 bilhões de dólares em 2022, representando 39% do gasto militar mundial. É três vezes maior que o da China, que o segue com 229 bilhões, país que, como a Rússia e as potencias da OTAN, está numa corrida armamentista desenfreada. E isso que a suposta “ajuda” militar para a Ucrânia (19 bilhões de dólares) é só uma parte muito pequena do orçamento militar que Biden destinou ao país e que a maior parte foi um investimento para renovar o arsenal militar estadunidense e beneficiar as grandes multinacionais armamentistas do país. O governo estadunidense está utilizando a guerra na Ucrânia para defender os interesses de suas grandes corporações no exterior, ampliando suas zonas de influência econômica e reforçando a OTAN e o arsenal do Pentágono. 

Durante o primeiro ano da guerra Biden tratou principalmente de atrapalhar e restringir a área de influência da Rússia. O principal objetivo da ajuda constantemente propagandeada, mas entregue a conta-gotas era esgotar e debilitar o exército e a economia russos, mais que alcançar uma vitória rápida e categórica da resistência contra a invasão russa. Hoje, com uma inflação acelerada e uma escalada na competição econômica com a China, Biden e a burguesia estadunidense dão sinais de que o governo estadunidense aponta para um giro em sua política: buscar selar uma “paz” que possam reivindicar como uma vitória contra a Rússia, para poder concentrar sua estratégia política e militar no Pacífico e sudeste asiático. Esta mudança de estratégia também pode ser explicada pelas eleições presidenciais de 2024 na qual Biden quer apresentar um balanço positivo da guerra. Esta análise coincide com a visão de Richard Haas, exposta em um artigo recente da revista Foreign Affairs. Haas, presidente, de saída, do Conselho de Relações Exteriores, o pensador mais influente para determinar a política exterior do governo dos EUA, afirmava que a “nova estratégia” dos EUA na Ucrânia devia “em primeiro lugar reforçar a capacidade militar da Ucrânia e a seguir, quando terminar a temporada de combates no final deste ano, levar Moscou e Kiev do campo de batalha para a mesa de negociações.” [2]

Trata-se, pois, de um plano em dois tempos para tentar “ganhar” a guerra durante o que resta do ano de 2023. Primeiro “acelerar imediatamente o fluxo de armas para a Ucrânia e aumentar sua quantidade e qualidade” para que a ofensiva Ucraniana deste verão tenha mais êxito e alcance uma relação de forças mais favorável, e em seguida “apresentar no final deste ano um plano para negociar um cessar fogo e um processo de paz posterior destinado a colocar um fim no confronto de forma permanente”, sabendo também que “esta tática diplomática pode fracassar”. O argumento que exprime Haas e do qual cada dia mais dirigentes políticos nos EUA fazem eco é que “na medida que aumentam os custos da guerra e se fecha a perspectiva de um estancamento militar, vale a pena pressionar para conseguir uma trégua duradoura que evite a retomada do conflito e, o que é ainda melhor, lance as bases de uma paz duradoura.”

Este plano finalmente reconhece publicamente que a intervenção dos EUA não tem nada de altruísta e está subordinado a seus próprios interesses, mas evita ir até o final nas consequências políticas que acarreta. Primeiro porque não confessa que seu interesse pela “paz”, também está vinculado a um plano econômico para a Ucrânia. Cabe explicar e denunciar os mecanismos que estão estabelecendo hoje os imperialismos estadunidenses e europeu para hipotecar o futuro da Ucrânia (os chamados planos de “reconstrução” e o endividamento do país aos credores estrangeiros) já que estes colocam na encruzilhada qualquer possibilidade de soberania econômica nacional real do país no futuro.

Em segundo lugar, e isto hoje é o mais grave, porque apesar das repetidas garantias de Biden de que se compromete a garantir a “soberania” da Ucrânia, os Estados Unidos poderiam muito bem aprovar uma “paz” a custo dos sacrifícios do povo Ucraniano na guerra, já que qualquer paz que resulte de uma mera trégua militar com uma parte do território ocupado não pode ser de modo algum uma paz justa nem duradoura para o povo Ucraniano nem para os povos que estão submetidos às ambições anexionistas de Putin. Tanto Biden, como Macron, Scholtz e Xi-Jinping vão começar a entoar juntos a canção da paz. Putin inclusive afirmou recentemente que está aberto a negociar uma paz. Mas os socialistas, como dizia Lenin em 1915, afirmamos que a consigna de paz “pode ser colocada em relação a determinadas condições de paz, ou sem condição nenhuma, como a luta, não por uma paz determinada, senão pela paz em geral.” Para o dirigente bolchevique, o discurso da “paz” em geral “carece totalmente de conteúdo, de sentido”. “Pela paz em geral estão todos, sem dúvidas”, estavam tanto a França quanto a Alemanha na Primeira Guerra Mundial e por isso a reivindicam tanto quanto Putin e Biden hoje, “pois cada um deles deseja terminar a guerra: o problema consiste em que cada um coloca condições de paz imperialistas (quer dizer de rapina e de opressão aos povos alheios), que favorecem a “sua” nação”.

A chave para discutir a paz a partir de uma perspectiva que coloque como eixo os interesses dos povos e da classe trabalhadora e para isso é necessário abordar as “condições da paz”, quer dizer as condições territoriais, econômicas, sociais e políticas que garantam uma paz justa. Lenin argumentava que “entre essas condições deve figurar inquestionavelmente o reconhecimento ao direito de todas as nações à autodeterminação e a renúncia a qualquer “anexação”, ou seja a violação desse direito”. [3] Na guerra atual, que é uma guerra de libertação nacional, a condição chave para uma paz justa na Ucrânia é primeiro garantir a soberania integral do território Ucraniano e a retirada de todas as tropas russas. Mas esta premissa básica não está contemplada em nenhum dos discursos vagos de paz que tramam tanto a China como os EUA ou a UE. Por isso devem ser rechaçados e devemos continuar o apoio militar à resistência e construindo nossas iniciativas internacionais e independentes de solidariedade operária com a Ucrânia.

Em meio à guerra, a UE e o FMI hipotecam o futuro do povo Ucraniano.  

Como resultado da guerra, o PIB da Ucrânia caiu 30% enquanto a dívida externa Ucraniana passou a representar 50,7% do PIB do país em 2021 e 90,7% em 2022. Hoje só 60% da população pode manter seu emprego e só 35% têm trabalho de tempo integral. [4] Desde o verão de 2022 tanto a UE, através do Banco Central Europeu (BCE), como os EUA, através do Fundo Monetário Internacional (FMI), tramam um plano de “reconstrução” da Ucrânia que não é outra coisa senão uma ofensiva recolonizadora para continuar e aprofundar as políticas neoliberais iniciadas nos anos anteriores à guerra.

Em 31 de março passado o FMI aprovou um novo empréstimo de 15 bilhões de dólares para a Ucrânia com condições já conhecidas por seus efeitos devastadores: “reformas estruturais mais ambiciosas para assegurar a estabilidade macroeconômica”, “aumento da produtividade e da competitividade”, etc. [5] Este empréstimo se soma aos 17 bilhões que o FMI emprestou ao país em 2015 por um período de 4 anos em troca de reformas que Zelensky começou a implementar em 2019, principalmente a privatização da terra, mas também de propriedades estatais. Desde que assumiu o cargo “mais de 700 empresas estatais passaram para o Fundo de Propriedade Estatal (FPE) para privatização.” [6] Hoje existem mais de 3.500 empresas que constam como estatais e delas 1.800 estão quebradas ou não funcionam. Algumas indústrias, como as destilarias e os silos podem se rentabilizar facilmente e os investidores estrangeiros querem comprá-las por quase nada para tirar lucros delas.

As terras agrárias Ucranianas, 45 milhões de hectares, representam 70% da superfície nacional, representam uma grande fonte de riqueza. Como explicamos em artigo anterior “antes da guerra significava 12% das exportações mundiais de trigo e 16% de milho e além disso a Ucrânia possui também uma enorme riqueza de minerais metálicos e não metálicos, que inclui ferro e outros elementos mais raros, mas de uso crescente nos novos processos industriais, como titânio, gálio e germânio com certo peso de suas exportações no mercado mundial”. [7]

Atualmente 68% das terras do país estão em mãos privadas, enquanto 32% seguem nas mãos do estado. Inicialmente essa privatização foi realizada através da entrega de certificados de propriedade de pequenas parcelas de terra aos trabalhadores das antigas fazendas coletivas, mas esse processo avançou para a concentração de grandes latifúndios privados com a reforma aplicada por Zelensky em 2020 e exigida pelo FMI. Como resultado desta rápida privatização da terra arável, um informe de fevereiro de 2023 do Instituto Oakland explica que hoje “a quantidade total das terras controladas pelos oligarcas, indivíduos corruptos e grandes empresas agro alimentícias supera os nove milhões de hectares, o que significa mais de 28% das terras cultiváveis da Ucrânia.” [8] De fato, os novos grandes proprietários dessas terras são uma “mescla de oligarcas Ucranianos e investidores estrangeiros, em sua maioria europeus e estadunidenses, assim como o fundo soberano da Arabia Saudita. Destacados fundos de pensões, fundações e dotações universitárias estadunidenses investem através da NCH Capital, um fundo de capital de risco com sede nos Estados Unidos”. A maioria deles estão “endividados com fundos de investimentos estadunidenses e europeus, em particular com o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) e o Banco Mundial”.

Em maio de 2022 a UE anunciou que já tinha desembolsado 4,1 bilhões de euros e no que restava de 2022 daria um segundo empréstimo de outros 9 bilhões de dólares e criado uma plataforma de coordenação internacional, chamada Rebuild Ukraine, codirigida pela comissão que representa a União Europeia e pelo governo Ucraniano para gerir o uso dos empréstimos e elaborar um plano de reconstrução que defina “as áreas prioritárias selecionadas para o financiamento e os projetos específicos.” [9]  Ursula Von der Leyden, atual presidente da Comissão europeia deixou claro que “os investimentos irão junto com as reformas que apoiem a Ucrânia em seu caminho para a Europa.” Leia-se reformas que implementem políticas de austeridade fiscal contra o déficit público, privatizações e cortes de direitos sociais.

Durante a guerra Zelensky utilizou o estado de emergência para aplicar uma contrarreforma trabalhista neoliberal exigida pela patronal e pelos organismos internacionais. A medida aumenta a jornada de trabalho para 60 horas semanais, dá poder aos empresários para transferir trabalhadores para zona de guerra e despedi-los facilmente sem motivo, ataca os direitos de representação sindical e permite atrasar o pagamento dos salários para que os trabalhadores sigam garantindo os lucros das empresas na Ucrânia durante a guerra. Também acabou com o Fundo de Seguridade Social através da lei 2.620, deixando no ar o financiamento futuro de vários serviços públicos. Ameaças similares pairam sobre o sistema público de saúde e os programas sociais. Devemos advertir nossos irmãos e irmãs Ucranianos sobre as restrições dos “empréstimos” atuais oferecidos a Zelensky pelo FMI e a UE e o perigo que representa para os direitos sociais e trabalhistas dos Ucranianos a integração do país a esta última. O melhor exemplo disso é a reforma previdenciária de Macron, impulsionadas pela UE, que foi altamente rechaçada pelos trabalhadores apesar da dura repressão do governo.

Por tudo isso devemos insistir na importância de desenvolver uma direção independente da classe trabalhadora tanto na resistência como nos esforços de solidariedade e reconstrução. A Ucrânia necessitará de uma reconstrução operária e socialista para assegurar sua independência nacional, que inclua o não pagamento da dívida externa, reverter as medidas neoliberais de privatização da terra e dos serviços públicos, assim como os cortes de direitos trabalhistas, a renacionalização da terra, dos recursos naturais e das grandes empresas sob controle dos trabalhadores. A classe operária Ucraniana tem todo um futuro para ganhar e por isso a resistência operária à invasão necessita de nossa solidariedade ativa para ganhar a guerra e sair reforçada do processo.


[1] https://www.newsweek.com/undersupplied-ukraine-prepares-spring-offensive-limited-western-arms-1789616

[2] https://www.foreignaffairs.com/ukraine/russia-richard-haass-west-battlefield-negotiations

[3] Lenin, Julho 1915, “O problema da paz”.

[4] https://www.opendemocracy.net/en/odr/ukraine-workers-fight-anti-labour-policies-russia

[5] https://www.imf.org/en/News/Articles/2023/03/31/pr23101-ukraine-imf-executive-board-approves-usd-billion-new-eff-part-of-overall-support-package

[6] https://emerging-europe.com/voices/ukraines-new-privatisation-push-cleaning-the-augean-stables%EF%BF%BC

[7] Alejandro Iturbe, “La estrategia imperialista de colonizar Ucrânia”, Octubre 2022.

[8] https://www.oaklandinstitute.org/war-theft-takeover-ukraine-agricultural-land

[9]  https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_22_3121

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