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quarta-feira, julho 24, 2024

Itália: o governo de extrema-direita e as lutas operárias

Em setembro de 2022, a Itália realizou eleições parlamentares – isto é, eleições nas quais os deputados são eleitos – e, pela primeira vez na história da República Italiana (a República nascida após a queda do fascismo na sequência da Segunda Guerra Mundial), um partido de extrema-direita obteve a maioria dos votos. De fato, o Fratelli d’Italia, o partido de Giorgia Meloni, alcançou 26% dos votos e formou, junto com o Forza Italia (Berlusconi) e o Lega (Salvini), um governo de direita dirigido pela própria Giorgia Meloni.

Por: Fabiana Stefanoni, PdAC (Itália)

Há que assinalar que o percentual de abstenções foi muito elevado: somente 64% do eleitorado votou. Deve-se lembrar também que na Itália é muito complicado obter cidadania: existem mais de 5 milhões de estrangeiros residentes na Itália que não podem exercer o direito ao voto. Vamos tentar entender o que é o partido de Giorgia Meloni e, sobretudo, como ela conseguiu chegar ao governo com um consenso tão amplo.

De MSI a Fratelli d’Italia

Fratelli d’Italia nasceu em 2012 de uma cisão do Popolo della Libertà (PdL), fundado em 2009 por Silvio Berlusconi, o empresário notoriamente machista que conseguiu governar a Itália por cerca de 9 anos. Giorgia Meloni e seus aliados mais próximos vêm do Alleanza Nazionale (o componente mais à direita do PdL), que surgiu do antigo Movimento Sociale Italiano (MSI). A própria Meloni havia sido ministra da Juventude no quarto governo de Berlusconi. Em seu simbolismo, o partido de Meloni continua remetendo ao MSI.

Mas o que era o MSI? Fundado no imediato pós-guerra, o MSI pretendia dar representação política a todos os nostálgicos de Mussolini e do antigo regime, embora não se declarasse fascista abertamente. De fato, a nova Constituição italiana, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1948, proibia a “reorganização, sob qualquer forma, do extinto partido fascista”. Esta proibição, evidentemente contornada facilmente, como atesta o facto de o MSI ter sido fundado por antigos dirigentes da República de Salò (estado fundado por Mussolini em estreita colaboração com os nazistas em setembro de 1943, após a adesão da Itália à frente Aliada, e milhares de trabalhadores grevistas terem sido deportados para campos de concentração nazistas durante os anos da República de Salò). Giorgio Almirante, líder do MSI, muito admirado por Meloni (que o descreveu nas redes sociais como “um grande homem que nunca esqueceremos”), foi ministro na República de Salò e colaborador de confiança de Mussolini e de Hitler.

Naquela época, a Itália vivia uma convulsão revolucionária e uma guerra civil com a participação da chamada Resistência Italiana, caracterizada por uma grande participação de trabalhadores e jovens – os partisans, com o armamento das massas. As lideranças reformista (Partido Socialista Italiano, PSI) e stalinista (Partido Comunista Italiano, PCI) do movimento operário traíram esse movimento ao votar a favor de uma Constituição burguesa que devolveu a liderança do país aos capitalistas que, até poucos anos antes, tinham feito negócios em colaboração com os fascistas. O líder do PCI, Togliatti, homem de Stalin, tornou-se Ministro da Justiça por dois anos, promulgando um decreto de anistia para os fascistas.

Foi também graças à colaboração dos dirigentes “comunistas” (stalinistas) que os antigos dirigentes fascistas, responsáveis pela morte de milhares de trabalhadores, bem como de judeus e presos políticos nos campos de concentração nazistas, conseguiram reconstituir o seu próprio partido, o MSI. Ao longo dos anos, assim como o PCI evoluiu de um partido dos trabalhadores para um partido totalmente burguês (o atual Partido Democrata, o PD de Elly Schlein, nascido da fusão com os católicos da Democracia Cristã), o MSI gradualmente também se tornou um partido nacionalista liberal de direita (Alleanza Nazionale). O Fratelli d’Italia recupera alguns aspectos de sua identidade. Sobretudo, como veremos, no campo da “família” e na negação dos direitos civis.

De Draghi a Meloni

Após a vitória eleitoral de Meloni, a imprensa internacional descreveu o novo governo como “o mais à direita desde Mussolini”. É verdade que a atual coalizão de governo, pelo peso do Fratelli d’Italia, é um governo de extrema direita racista, xenófobo, machista e fortemente contrário às demandas dos movimentos LGBTQ+. Ao mesmo tempo, ao contrário do que comentaram alguns setores da esquerda, não é realmente um governo “fascista”. Pelo contrário, é um governo que faz parte do sistema democrático burguês, leal à OTAN e à União Europeia, e ao mesmo tempo, caracterizado por uma acentuação de políticas repressivas e reacionárias.

Uma coisa precisa ficar clara: o sucesso eleitoral de Meloni não caiu do céu. É fruto de anos de políticas de ataques brutais às massas populares e à classe trabalhadora por parte dos governos liderados pelo PD, obedecendo à Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), ou seja, às reivindicações do grande capital europeu. Os governos liderados pelo PD foram os que lançaram os ataques mais duros contra as aposentadorias, contra o poder de compra dos salários, até mesmo contra os direitos sindicais e de greve (a Itália tem uma das leis antigreve mais duras da União Europeia, tanto que em muitos setores é proibido fazer greve por mais de um dia). As políticas adotadas pelos governos durante a pandemia agravaram ainda mais as condições da classe trabalhadora e empobreceram amplas camadas da pequena burguesia, e Meloni acendeu as chamas do descontentamento nesses setores. O impressionante crescimento eleitoral recente deste partido – em 2013, quando o FdI concorreu pela primeira vez às eleições, obteve apenas 1,9% dos votos – deve-se, em particular, à sua “oposição” ao governo Draghi.

Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, expressão direta do agressivo capital financeiro europeu, apesar de não ser deputado ao Parlamento italiano, foi nomeado em fevereiro de 2021 pelo Presidente da República para formar um governo de unidade nacional. O objetivo era gerir os interesses da burguesia italiana de acordo com as instituições europeias num contexto muito difícil, caracterizado pelo agravamento da crise econômica devido aos efeitos da pandemia. Todos os partidos presentes no parlamento – liderados pelo Partido Democrático, o principal artífice da operação governamental – apoiaram Draghi, com a única exceção do Fratelli d’Italia (e algumas pequenas distinções de alguns deputados da esquerda liberal-reformista – Sinistra Italiana – que fez uma oposição muito tímida). Meloni apareceu então como a única voz no Parlamento, crítica ao governo de Draghi, precisamente no momento em que este aplicava ferozes políticas antitrabalhistas. Draghi, entre outras coisas, retirou a lei que restringia parcialmente a possibilidade de demissão durante a emergência do COVID, desencadeando assim uma onda de demissões.

A “oposição” de Meloni ao governo Draghi foi mais da boca para fora do que real, com uma retórica antieuropeia centrada no racismo e na xenofobia. Entre os argumentos favoritos do Fratelli d’Italia, em sintonia com os da Lega de Salvini, está a defesa da pátria contra a “invasão” dos imigrantes. Ao mesmo tempo, diante da indignação das grandes massas – trabalhadores e pequena burguesia – contra o governo Draghi e suas políticas, o consenso cresceu desproporcionalmente em relação à única voz aparentemente crítica: Meloni.

Tudo isso explica por que, embora o Fratelli d’Italia seja um partido pequeno-burguês, amplos setores da classe trabalhadora – pelo menos daqueles que votaram – deram seu apoio eleitoral a Meloni. Isso levou à formação de um governo de extrema direita liderado por Giorgia Meloni em outubro de 2023, mas também envolvendo a Lega dos racistas Salvini e Berlusconi.

As políticas do novo governo

Como já aconteceu com outros partidos populistas europeus que cresceram a partir da crise da ordem burguesa, uma vez no governo o partido de Meloni abandonou sua oposição à União Europeia. Desde o início não faltaram apertos de mão e cumprimentos mútuos entre a nova primeira-ministra Meloni e Lagarde (atual presidente do Banco Central Europeu). Elogios a Meloni também vieram da equipe da OTAN, que vê no Fratelli d’Italia um aliado confiável.

A primeira lei financeira do governo é continuidade dos governos anteriores, defendendo os interesses do grande capital. Está reduzindo até mesmo as migalhas reservadas às classes trabalhadoras (por exemplo, o seguro-desemprego), demonstrando que, quando chegam ao governo, os partidos pequeno-burgueses certamente não rompem com o grande capital.

O novo governo implementou imediatamente uma série de medidas típicas da extrema-direita. Citamos aqui as mais significativas. La Russa e Fontana, ambos conhecidos por suas inúmeras declarações reacionárias e LGBTIfóbicas, foram eleitos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, respectivamente. La Russa é conhecido por manter bustos de Mussolini em sua casa e por ter feito a saudação romana mais de uma vez (a típica saudação fascista) em situações públicas. Recentemente, falando do massacre de Ardeatine (onde os nazistas mataram 335 pessoas em retaliação), ele deu a entender que a responsabilidade era dos partisans que – em suas próprias palavras! – “espancaram um grupo de semiaposentados na Via Rasella.” Para quem não sabe, em 1944 na Via Rasella em plena guerra civil e durante a ocupação nazista, 33 soldados de um regimento nazista sob comando da SS foram mortos por partisans. Os nazistas se vingaram com o massacre Ardeatino, que ainda está muito vivo na memória dos antifascistas italianos. Já Fontana, presidente da Câmara dos Deputados, é conhecido por seus comentários LGBTIfóbicos e contra o direito ao aborto; é um católico fundamentalista que organizou vários encontros em defesa da família tradicional.

O governo Meloni também endureceu imediatamente as leis xenófobas e repressivas. Foi promulgado um decreto anti “rave” que pune duramente, com anos de prisão, os eventos musicais de jovens e, neste momento, vem sendo debatida uma lei que pune com pesadas multas e até prisão de jovens ambientalistas que, em protesto contra a crescente crise climática, pintam simbolicamente os monumentos da cidade. As leis xenófobas também se tornaram mais rígidas com o endurecimento dos “decretos Salvini” (em vigor desde 2018 e não revogados por sucessivos governos), que dificultam ainda mais a recepção de refugiados. O massacre de Cutro (Crotone, no sul do país), onde 91 migrantes (incluindo várias crianças) morreram a 150 metros da costa por não terem sido resgatados, suscitou muita indignação entre as massas. O governo não fez nenhuma autocrítica e, aliás, posteriormente a ministra da Agricultura, Lollobrigida (cunhada de Meloni, diga-se de passagem), falou do risco de “substituição étnica” na Itália. Deve-se lembrar que dezenas de milhares de imigrantes morreram no Mediterrâneo nos últimos anos e que os governos liderados pelo PD não seguiram políticas muito diferentes, tornando-se responsáveis, como o governo de Meloni, por numerosos massacres de Estado.

Em 1º de maio, Meloni convocou seus ministros para votar uma lei trabalhista que reduz o seguro-desemprego. A tudo isso devemos acrescentar as declarações do ministro da Educação, Valditara. Em resposta a um ataque fascista em frente a uma escola por um grupo de estudantes de direita contra alguns alunos de um coletivo que distribuíam panfletos, o Ministro não só se omitiu de criticar o ataque, como ele próprio atacou (com a ameaça de sanções) o diretor da escola por ter enviado aos alunos uma nota criticando o ocorrido e lembrando o risco sempre presente da expansão do fascismo…

Oposição de classe ao governo

Apesar do caráter burguês e reacionário deste governo, no momento em que escrevemos esse artigo não assistimos um aumento da mobilização de massas que seria necessário para desafiá-lo. A nosso ver, essa aparente paz social se explica por uma conjugação de fatores. Em primeiro lugar, um freio importante à mobilização da classe trabalhadora por parte das atuais direções sindicais (e políticas) do movimento operário. Na Itália existem três grandes centrais sindicais (CGIL, CISL e UIL) que reúnem milhões de trabalhadores. Em particular, a CGIL (que inclui a FIOM, constituinte dos metalúrgicos) exerce grande controle sobre os setores tradicionalmente mais militantes da classe operária. No passado, a direção da CGIL estava ligada ao PCI stalinista, enquanto agora desenvolve uma política de total conformidade com os governos do PD. Além disso, ao longo dos anos, esses aparatos acentuaram sua dimensão burocrática e sua colaboração com o Estado. De fato, gerem uma série de serviços por conta dos aparatos do Estado, incluindo declarações fiscais, gestão que lhes permite enriquecer consideravelmente (os orçamentos destes sindicatos são muitas vezes superiores aos das empresas).

Também por isso nada fizeram para elevar o nível de confronto com os governos, inclusive os de direita. Desde a instalação do governo Meloni, a CGIL organizou pouquíssimas greves e poucas manifestações simbólicas, mais voltadas para comemorar a eleição da nova secretária Elly Schlein à direção do PD do que para contestar o governo.

A coisa mais notável que a liderança da CGIL fez foi convidar a primeira-ministra de extrema direita para o congresso sindical, deixando-a falar do palco. Esta ação foi acompanhada apenas por fracos protestos de alguns dos delegados.

Ao nefasto papel de agitadores que desempenham as direções sindicais, deve-se acrescentar a ausência de uma direção diversa e combativa nas fábricas e setores estratégicos da classe trabalhadora. Os sindicatos alternativos são pequenos e muitas vezes em competição entre si, incapazes de iniciar ações de luta unitárias e radicalizadas; também carecem de uma liderança política revolucionária com influência de massa (a liderança revolucionária que a Alternativa Comunista está tentando construir).

Isso não significa que faltaram mobilizações operárias nesses meses de governo. Os trabalhadores da antiga companhia aérea Alitalia (atual Ita), liderados por um camarada da Alternativa Comunista (Daniele Cofani), lançaram uma das lutas mais participativas dos últimos anos contra a privatização da empresa (com inúmeras greves e manifestações). Formados em um comitê combativo e unitário (Tutti a Bordo – no Ita) juntaram forças com os trabalhadores Gkn em Florença que haviam sido demitidos pelo patrão que preferiu transferir a produção para o exterior. Os trabalhadores Gkn também formaram um comitê de fábrica, dando origem a várias mobilizações tanto regionalmente quanto em escala nacional.

Também deve ser mencionado o importante papel desempenhado pela Fronte di Lotta No Austerity (FLNA), que busca superar a fragmentação do sindicalismo italiano reunindo importantes setores de vanguarda da classe operária. Desde os trabalhadores da Pirelli (ao FLNA juntaram-se os trabalhadores da Pirelli das principais fábricas italianas, organizados por um camarada da Alternativa Comunista, Diego Bossi) aos ferroviários Cub (que organizaram algumas greves nacionais com um grande número de participantes), e dos trabalhadores da Stellantis (Slai Cobas) aos trabalhadores da Ferrari (FIOM).

Os ventos da luta de classes que sopram na França ainda não chegaram à Itália, mas a Alternativa Comunista está na linha de frente na tentativa de relançar a luta de classes também aqui, contra este governo e por uma alternativa revolucionária e socialista.

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