Haiti: a reação popular avança contra a barbárie
“Se alguém quiser saber qual é a definição de inferno, é só vir ao Haiti”[1]
As palavras são da ativista haitiana de direitos humanos Vélina Élysée Charlier, em entrevista à rádio canadense CBC no dia 2 de maio deste ano e representam bem a realidade haitiana hoje.
Por: David Espinoza
Há alguns meses escrevemos [2] que o Haiti vivia uma rebelião popular, com uma onda de protestos, barricadas e greves contra o aumento dos preços e o governo de Ariel Henry. Um dos elementos mais marcantes dessas mobilizações foi a presença de grupos criminosos fortemente armados, como o G9, que durante meses bloqueou o principal terminal petrolífero do país. Nos últimos meses, a situação da maioria da população piorou ainda mais. Por um lado, o aumento dos preços, por outro, a enorme violência dos grupos armados.
A inflação anual em fevereiro deste ano chegou a 48,5%[3], com alguns produtos básicos subindo mais de 60% ou 70%, como o arroz ou o óleo de cozinha. Calcula-se que 4,9 milhões de pessoas, quase a metade da população do país, sofre de insegurança alimentar aguda, ou seja, fome.[4] A última pesquisa da Coordenação Nacional da Segurança Alimentar calcula que 71% dos lares sofreram casos de fome em 2022.[5] No Haiti, a enorme maioria dos trabalhadores estão na informalidade. Não existem dados oficiais, mas algumas fontes calculam que a informalidade, há 10 anos, chegava a mais de 80% da população[6], número que certamente aumentou nos últimos anos.
Nessa situação de extrema miséria, a violência e presença de grupos armados aumentou de forma dramática. Em seu último informe, a ONU calcula que cerca de 80% de Puerto Príncipe, a capital do país, esteja sob controle ou influência de grupos criminosos.[7] Os grupos criminosos, que têm relações com empresários e políticos de todos os matizes, agem livremente pelas cidades haitianas. Calcula-se que somente neste ano, entre 1 de janeiro e 31 de março, o número de homicídios aumentou em 31% em relação ao mesmo período do ano passado (815 contra 673). O número de sequestros cresceu cerca em 63% (637 contra 391). As vítimas dos grupos muitas vezes são trabalhadores e trabalhadoras comuns, que perdem sua vida a caminho de casa ou do trabalho. Os roubos de mercadorias também têm sido uma prática frequente dos grupos, o que afeta enormemente a produção e transporte da comida do campo para a cidade e de produtos agrícolas para os camponeses. Esta situação tem dificultado ainda mais a produção agrícola, o que contribui para o aumento dos preços. Os hospitais e escolas também sofrem com a violência urbana. Calcula-se que mais da metade dos centros hospitalares privados do país estejam fechados devido à violência, com muitos profissionais fugindo do país por medo de serem sequestrados. Muitas escolas têm que suspender as aulas devido à ação dos grupos armados.
A responsabilidade da ONU e a possibilidade de uma nova ocupação militar
Como já escrevemos em outros textos anteriores, a responsabilidade da ONU na situação do país é total. Desde 1993, o Haiti tem recebido missões da ONU de caráter civil, policial e militar. Entre 2004 e 2017 foi instalada a MINUSTAH – Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti -, que manteve o país sob uma violenta ocupação militar, coordenada pelo Estado brasileiro (sob os governos “progressistas” de Lula e Dilma) com presença de militares de vários países, mas sob as ordens dos Estados Unidos. A MINUSTAH não só não resolveu os problemas da população pobre haitiana, como os aprofundou. Um exemplo foi a enorme epidemia de cólera que atingiu (e continua atingindo) o país desde 2010. O vibrião colérico já havia sido erradicado há décadas no Haiti, mas voltou a instalar-se através dos soldados nepaleses da ONU. Além do cólera, a MINUSTAH deixou um legado de assassinatos, estupros, abusos sexuais e um longo etc. A maioria dos casos envolvendo militares de diferentes países nunca foram investigados ou julgados. O resultado da MINUSTAH foi um total fracasso. Hoje, um setor relevante da população haitiana é contra uma nova intervenção estrangeira e os próprios Estados que interviram na MINUSTAH não querem repetir a experiência.
Há vários meses, o governo norte-americano e o secretário geral da ONU vêm tentando buscar sócios para intervir no país, até agora sem êxito. Até o governo canadense, sócio imperialista dos EUA e um dos colonizadores do Haiti, manifestou grandes dúvidas sobre a viabilidade de uma nova intervenção.[8] O único governo que até agora aceitou fazer parte de uma Missão multinacional foi o governo da Jamaica.
Uma nova ocupação militar ou intervenção “cirúrgica” no Haiti não deve ser descartada. É fundamental que a classe trabalhadora de todo o mundo repudie uma nova intervenção, que só poderia trazer mais tragédias para o povo haitiano.
A reação popular
A situação de miséria e violência gerou uma forte reação popular. Desde o ano passado multiplicou-se a quantidade de manifestações e greves. Os professores de escolas públicas realizaram uma importante greve nas últimas semanas, exigindo o pagamento de salários atrasados, aumento salarial e contratação de novos professores. Os trabalhadores da central Hidroelétrica de Péligre também protagonizaram uma greve que durou mais de 25 dias, exigindo o pagamento de salários atrasados, o que gerou um apagão elétrico em parte importante do país durante quase um mês.[9] Outra greve importante se desenvolveu entre os dias 8 e 9 de maio na principal zona franca do Haiti, a SONAPI, em Puerto Príncipe. Centenas de operários e operárias se manifestaram exigindo o aumento do salário mínimo de 5 a 18 dólares por dia. Nesta importante greve, estiveram na liderança os companheiros de Batay Ouvriyé, organização com a qual a LIT-QI tem uma importante relação há mais de uma década.
Entretanto, a reação popular mais importante nas últimas semanas começou a ocorrer contra os grupos criminosos. Em 24 de abril, vários supostos membros de um grupo criminoso foram interceptados pela polícia no bairro de Canapé-Vert, em Puerto Príncipe. A população do setor que presenciava a cena decidiu fazer justiça com as próprias mãos e matar todos os detidos, ateando fogo em seus corpos.[10] Essa ação desencadeou ações similares por toda a capital e outras localidades do país. Algumas estimativas falam de mais de 100 supostos membros de grupos criminosos linchados e assassinados nas últimas semanas.[11] O “movimento” recebeu o nome recebeu o nome de “Bwa Kale”.[12] A população pobre saiu com facões, paus, facas e tudo o que tinham nas mãos para deter os grupos criminosos. Tudo indica que se trata de um movimento espontâneo sem liderança, resultado do esgotamento da população. As e os companheiros de Batay Ouvrié realizaram chamados à população para fortalecer o movimento e empregar a autodefesa operária e popular (nota abaixo).
Nos últimos dias, a polícia haitiana está tentando canalizar o movimento de autodefesa popular para um apoio ao Estado burguês. O diretor nacional da Polícia Nacional Haitiana, Frantz Elbé, fez uma declaração chamando a população para consolidar o “matrimônio” entre a polícia e a população .[13] Esse chamado é totalmente hipócrita, já que a própria polícia tem sido um fator fundamental da repressão às mobilizações de massas e inclusive alguns dos grupos criminosos saíram de seu próprio interior, como o grupo Fantom 509.[14]
Somente o poder da classe trabalhadora pode conter a barbárie
A situação haitiana é insustentável. O povo haitiano tem sido conduzido a uma verdadeira barbárie. A responsabilidade dos imperialismos norte-americano, canadense e francês, em conjunto com os diferentes governos haitianos é total. Os governos latino-americanos de direita e “esquerda” nos últimos 20 anos também contribuíram para minar a soberania haitiana. Nas últimas décadas, o imperialismo destruiu o campo haitiano para que o Haiti passasse a importar produtos agrícolas estrangeiros e para que a população camponesa migrasse para as cidades, formando um enorme exército industrial de reserva, que hoje serve de mão de obra baratíssima às transnacionais têxteis que operam em Puerto Príncipe, Ouanaminthe e Caracol. Junto com isso, o país tem sido literalmente colonizado por centenas de ONGs estrangeiras que administram a suposta “ajuda internacional”, que quase nunca chega à população pobre.[15]
O governo haitiano atual, de Ariel Henry, além de ilegítimo por não ter sido eleito, governa por decreto defendendo os interesses da burguesia estrangeira e haitiana. O Parlamento haitiano já não existe, pois o mandato dos parlamentares terminou e não foram realizadas novas eleições. Os serviços públicos são quase inexistentes e grande parte dos funcionários estatais não recebe há 3 ou 4 meses. A situação é dramática.
A população haitiana se levantou contra tudo isso. O movimento Bwa Kale hoje desempenha um papel progressivo, já que surge a partir de uma resposta direta da população ao problema da insegurança. Entretanto, se esse movimento não avançar em sua organização e democracia, poderá se transformar em seu oposto. Não é difícil que pessoas inocentes percam suas vidas ou que os próprios grupos armados e políticos burgueses comecem a divulgar notícias falsas para exterminar seus rivais. As organizações do movimento operário, popular e camponês têm a grande tarefa de tentar canalizar o enorme descontentamento social e essa organização espontânea das massas para um projeto revolucionário.
A classe operária haitiana, pequena em relação à população do país, mas extremamente concentrada e no centro do aparato produtivo, pode desempenhar um papel de caudilho desse processo se for dirigida por uma organização revolucionária. Como já afirmamos em um texto anterior, o Haiti precisa de uma revolução que tire o imperialismo do país e todos os políticos corruptos do poder. As condições objetivas para essa revolução estão mais do que maduras. É necessária a criação de organismos que possam unificar a classe operária com os setores populares e camponeses mobilizados. Esses organismos devem discutir um programa para o armamento da classe trabalhadora e a destruição do Estado burguês, para que seja a classe trabalhadora que tome o poder em suas mãos e comece a implementar medidas econômicas e sociais para reverter a grave situação do país. Em outro artigo [16] que publicamos, propomos algumas das medidas que acreditamos serem necessárias para o povo trabalhador, no entanto, essas medidas só poderão ser realmente avaliadas pela própria classe trabalhadora haitiana no marco de sua revolução.
Em seguida reproduzimos uma declaração da Coordenação de Lutas Políticas de Operários e Trabalhadores. Organização de autodefesa do Haiti
RESISTÊNCIA !
A luta contra a insegurança passa hoje por uma nova etapa. Os Bandos armados (BA) ocupam mais e mais terreno, mas hoje usam o massacre sistemático para assentar sua dominação. Nisso, o governo de fato, além de uma incapacidade espantosa, tem uma óbvia cumplicidade.
Frente a esta situação, a população se defende com todo tipo de armas: é o movimento Bwa Kale (BK). E conseguem fazê-lo, eliminando vários bandidos.
Alguns aplaudem, outros argumentam que não é “democrático”, nem fazendo parte de um “estado de direito”!
Nós da Coordenação de Lutas Políticas de Operários e Trabalhadores (KLPOT em creole), como organização de combate que somos, apoiamos todo movimento em defesa nítida dos interesses populares. Porém tem que ser estruturado e com nítida consciência do inimigo.
Nesse sentido, não apoiamos nenhuma guerra entre BA para ter territórios, distribuir drogas e, enfim, a serviço das classes dominantes e do imperialismo.
Por outro lado, alguns aprovam a aliança de BK e a polícia. Nós não!
A polícia nos reprime diariamente e frequentemente com grande violência. De forma alguma BK deve se unir com a polícia!
Para não defender os interesses das classes dominantes e do imperialismo, BK deve sair do espontaneísmo. Tem que ir nitidamente mais longe, estruturado, com uma orientação autônoma, onde somos nós trabalhadores, camponeses, operários, quem fixamos nossos objetivos, atuais e a longo prazo. E aí, o objetivo maior é chegar a OUTRA SOCIEDADE!
BK deve sair da confusão atual para chegar a um LEVANTE POPULAR ORGANIZADO com o objetivo de DESTRUIR o estado atual das coisas: DESTRUIR A ORDEM BURGUESA!
Isso exige uma linha muito nítida com uma visão estratégica de TRANSFORMAÇÃO total da formação social atual para chegar a uma sã, benéfica para nós operários, pequenos camponeses, trabalhadores de todo tipo, manuais como intelectuais, nós todos contra todo inimigo do povo, nacional como internacional.
KLPOT Maio 2023
[1] https://www.cbc.ca/radio/asithappens/haiti-vigilante-violence-1.6829579
[2] https://litci.org/es/una-nueva-rebelion-de-masas-sacude-haiti/
[3] https://lenouvelliste.com/article/241933/baisse-du-rythme-de-progression-de-linflation-annualisee-de-482-en-fevrier
[4] Os dados sobre a realidade haitiana são sempre subestimados, já que não há agências confiáveis que realizem investigações profundas.
[5] https://www.cnsahaiti.org/13396-2/
[6] https://documents1.worldbank.org/curated/en/319651467986293030/pdf/97341-SCD-P150705-IDA-SecM2015-0130-IFC-SecM2015-0071-MIGA-SecM2015-0046-Box391466B-OUO-9.pdf
[7] https://haiti.un.org/en/227679-720-million-plan-support-millions-facing-gangs-hunger-and-cholera
[8] https://www.nytimes.com/2023/03/23/world/americas/haiti-canada-us.html?searchResultPosition=4
[9] https://www.lenational.org/post_article.php?pol=3542
[10] Os linchamentos populares seguidos de queima de corpos de delinquentes no Haiti têm uma história. O Haiti viveu sob duas violentas ditaduras entre 1957 e 1986, de François Duvalier e Jean-Claude Duvalier (pai e filho). Essas ditaduras se apoiaram em grupos paramilitares conhecidos como Tonton Makoute (oficialmente Voluntários da Segurança Nacional). Os Tonton Makoute cometeram inumeráveis atrocidades durante as ditaduras e muitos de seus crimes consistiam em apedrejar e queimar opositores do regime publicamente. Com a queda de Jean-Claude Duvalier, muitos foram executados nas ruas e seus corpos também foram queimados publicamente pela fúria popular.
[11] https://haitiantimes.com/2023/05/01/in-haiti-bwa-kale-vigilantes-turn-tables-against-suspected-gangs/
[12] “Bwa Kale” literalmente significa “pau pelado”. Em sentido metafórico quer dizer “Tolerância zero” com os bandidos.
[13] https://lenouvelliste.com/article/242276/frantz-elbe-appelle-a-consolider-le-mariage-police-population
[14] https://insightcrime.org/news/disgruntled-police-unrest-haiti/
[15] Três anos depois do terremoto de 2010 denunciávamos que grande parte da “ajuda internacional” não havia chegado à população haitiana. Ver https://litci.org/es/haiti-tres-eneros-despues/
[16] https://litci.org/pt/2022/10/04/uma-nova-rebeliao-de-massas-sacode-o-haiti/
Tradução: Lílian Enck