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Equador

Lasso provoca um terremoto no Equador: dissolve a Assembleia Nacional e convoca novas eleições presidenciais e legislativas (morte cruzada)

Ecuador’s President Guillermo Lasso addresses the nation next to Secretary General of Government Sebastian Corral and Interior Minister Henry Cucalon, after he dissolved the National Assembly by decree, bringing forward legislative and presidential elections, a day after he defended himself in an impeachment hearing, in Quito, Ecuador May 17, 2023. Bolivar Parra/Ecuador Presidency/Handout via REUTERS ATTENTION EDITORS – THIS IMAGE HAS BEEN SUPPLIED BY A THIRD PARTY. NO RESALES. NO ARCHIVES
maio 25, 2023

Em 17 de maio o governo de Guillermo Lasso anuncia em coletiva de imprensa que, invocando o Art. 148 da Constituição, procede a dissolução a Assembleia Nacional e aciona a convocação imediata de novas eleições presidenciais e legislativas para o que resta de seu mandato. Imediatamente, as cúpulas militar e policial expressaram seu respaldo a esta decisão e exortaram a população a respeitá-la, advertindo que, em caso de querer “alterar o regime constitucional”, as Forças Armadas e a polícia agirão com firmeza.

Por: Miguel Merino – ART / Equador

O Art.148 da Constituição dispõe textualmente: “A presidenta ou Presidente da República poderá dissolver a Assembleia Nacional quando, a seu juízo, esta tenha arrogado funções que não lhe competem constitucionalmente, com parecer prévio da Corte Constitucional; ou se, de forma reiterada ou injustificada, obstrui a execução do Plano Nacional de Desenvolvimento, ou por grave crise política ou comoção interna”. Concretamente, Lasso fundamentou sua decisão na terceira causal, ou seja, “grave crise política e comoção interna”. No entanto, para a grande maioria dos jornalistas e da população equatoriana, o que definiu a aplicação desta medida foi o iminente impeachment de Lasso no julgamento político que estava em andamento na Assembleia Nacional.

Várias organizações e grupos políticos de diversas tendências questionaram imediatamente tal resolução ante a Corte Constitucional, por considerá-la inconstitucional, ilegal e inexistente de fato, mas este organismo descartou tais demandas e a chamada “morte cruzada”, como é conhecida esta figura introduzida na Constituição vigente, manteve-se firme.

Reação da cidadania às medidas do governo

As demandas de inconstitucionalidade contra a “morte cruzada” não foram acompanhadas de mobilizações ou protestos nas ruas, salvo algumas manifestações reduzidas realizadas pela União Nacional de Educadores e estudantes universitários vinculados à Unidade Popular, organização política legal localizada na vertente da esquerda estalinista. A CONAIE – Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, liderada por Leonidas Iza, que há algumas semanas havia advertido que se mobilizaria caso o governo dissolvesse a Assembleia, não o fez, argumentando que as condições do país não eram adequadas para realizar este tipo de ações.

Entre as razões que explicam a apatia da cidadania frente a uma medida qualificada como ditatorial por vários setores, está a baixa aceitação da Assembleia Nacional pela mediocridade de muitos de seus integrantes, assim como seu oportunismo, a corrupção e sua falta de coerência e honestidade políticas. Também influiu o estado de choque em que a população se encontra ante a onda de delitos e da violência que é vivida nas ruas de muitas cidades.

Legalidade da “morte cruzada” e crise política

A justificativa para a morte cruzada é muito subjetiva e pode ser objeto de diversas interpretações. Embora seja verdade que no momento da medida ser expedida não existia comoção interna, já que todas as atividades sociais se desenvolviam normalmente, não se pode ignorar que o contexto era de uma grave crise política, pelas seguintes razões:

– Pela deslegitimação e impopularidade do governo de Lasso, devido às suas políticas neoliberais que não deram soluções, nem sequer parciais, às principais demandas sociais da população e em vez disso beneficiaram grupos reduzidos da burguesia financeira e comercial.

– Porque o julgamento político que a Assembleia Nacional tramitava para destituir Lasso estava a ponto de ser resolvido, com uma provável destituição presidencial.

– Pela derrota sofrida pelo governo nas eleições seccionais realizadas recentemente, inclusive a consulta popular, de onde foram vencedores os principais grupos da oposição (UNES-União pela Esperança; PK-Pachakutik; e PSC-Partido Social Cristão), situação que se refletiu na recente eleição da mesa diretora da Assembleia Nacional.

– Pela crescente crise de violência e insegurança que assola o país e gerou um clima de medo e desesperança na população.

– Pelas importantes lutas dos setores populares como as paralisações realizadas em Outubro de 2019 e a mais recente de Junho de 2022, lideradas pelo movimento indígena e pela CONAIE. Esta última deu lugar a algumas mesas de diálogo cujos acordos fundamentais não foram cumpridos pelo governo.

– Pela crise institucional que envolveu as funções e quase todas as entidades estatais, afetadas pela inoperância administrativa, as disputas e a corrupção.

Consequências políticas e sociais da “morte cruzada”

A primeira consequência da medida adotada pelo governo (que vigora de 17 de maio até os primeiros dias de novembro, quando as novas autoridades legislativas executivas tomarão posse) é que Lasso governará sem nenhum contrapeso legislativo nem de fiscalização.

Governará através de “decretos-lei de urgência econômica” com parecer prévio da Corte Constitucional, como a Constituição o assinala. A gestão econômica é uma noção ampla e ambígua que abarca um universo amplo de questões tributárias, trabalhistas, exploração de recursos naturais, gestão de empresas públicas, contratação de obras de infraestrutura e de serviços de diversos tipos como energia elétrica, água potável, telefonia, internet, alfândega, etc. Sendo assim, existe um alto risco de que a gestão econômica comprometa direitos econômicos, sociais, ambientais e culturais vinculados à educação, à saúde, à soberania alimentar, à seguridade social, ao meio ambiente, etc., como o advertiram diversas organizações sociais e de direitos humanos.

Não há garantia de que a Corte Constitucional exerça com imparcialidade sua obrigação de tutelar os direitos constitucionais dos cidadãos e a soberania do Estado, pois seu papel tem sido mais de árbitro entre os poderes estatais, agora centralizados no executivo. Além disso, não existe nenhuma confiança de que Lasso não extrapole suas funções e pretenda passar leis e decretos que sejam vantajosos para os setores da burguesia que ele representa, mas que terão efeitos nocivos para os trabalhadores e a maioria empobrecida da população, como já ocorreu nestes dois anos de seu governo.

No momento atual, já estão tramitando as reformas da Lei Tributária que taxou com altos impostos, especialmente a classe média, tentando aliviar as nefastas consequências que tal lei teve. Também acaba de anunciar a expedição de um novo decreto Lei de Investimentos para criar zonas francas no país, a mesma que beneficiará os exportadores pois serão isentos de vários impostos e contarão com novos incentivos logísticos. Alguns analistas advertiram que esta medida tende a favorecer a lavagem de dinheiro proveniente do narcotráfico. Foi anunciado também um novo pacote de reformas trabalhistas, mas o governo não se atreve ainda a expedi-lo por medo da reação dos trabalhadores.

Caracterização da nova situação política

Surgem várias perguntas depois da decisão da “morte cruzada”: houve um golpe de estado do executivo contra a Assembleia ao tê-la dissolvido? Foi um autogolpe, já que o governo encerrará suas funções antes do período legalmente previsto? Há um giro bonapartista pelo fortalecimento do poder executivo com o respaldo incondicional das Forças Armadas e da polícia, ou seja, dos aparatos repressivos do Estado? Ocorreu uma mudança no regime político? O que ocorrerá nas novas eleições legislativas e executivas previstas para 20 de agosto?

Podemos afirmar que estamos diante de uma situação inédita na história do país que combina em parte algo de cada uma das categorias assinaladas. Houve um golpe contra a Assembleia pois foi dissolvida e é considerada um elemento central e indispensável do Estado burguês, segundo o princípio da separação de poderes. Também foi um autogolpe, na medida em que o governo de Lasso concluirá seu período antecipadamente depois das novas eleições, salvo que se candidate e seja eleito nas urnas. Há um giro bonapartista, já que se consolida o autoritarismo baseado na repressão policial e militar, fato que já vinha ocorrendo há algum tempo, mas agora conta com uma base constitucional.

Não seria adequado falar de uma ditadura total já que a Constituição não foi rompida, o executivo termina seu mandato em seis meses e tem certas limitações jurídicas. Sem dúvida que ocorreu uma mudança de regime já que o poder legislativo não existe e haverá um reordenamento institucional nas funções do Estado, com um novo governo de transição que durará somente um ano e meio em suas funções.

Eleições: elemento central da conjuntura política

Abriu-se uma nova etapa política onde o elemento central são as eleições presidenciais e legislativas que serão realizadas dentro de um prazo muito curto. Há muito pouco tempo para a definição das candidaturas e sua inscrição no Conselho Nacional Eleitoral. Pode-se prever um alto número de candidaturas pelas condições de dispersão e baixo nível de credibilidade que afeta quase todos os partidos e movimentos do espectro político nacional, especialmente o CREO (Movimento Criando Oportunidades), o partido do atual governante.

Existem três grupos políticos que contam com base e apoio social, mas limitado. A primeira é o correísmo (UNES), que é a força mais organizada a nível nacional, obteve os melhores resultados nas recentes eleições seccionais e colheu o descrédito do governo de Lasso. Entretanto, não conta com candidatos que tenham apoio popular para as eleições presidenciais que se avizinham. A segunda é Pachakútik, expressão política do movimento indígena, acometido por forte divisão entre a fração que conseguiu ser comprada pelo oficialismo e o setor mais crítico, ligado à CONAIE, que mantém os princípios ideológicos e programáticos originais do movimento.  A terceira é o Partido Social Cristão (PSC), o partido político mais representativo e organizado da direita, mas também desgastado pelo seu apoio a Lasso, embora posteriormente tenha passado para o bloco de oposição na Assembleia Nacional. Seu líder histórico, Jaime Nebot, mais uma vez desistiu de sua candidatura à presidência da República e decidiu apoiar uma figura nova e quase desconhecida, o economista Jean Tópic, cuja carta de apresentação é ser especialista em segurança, e tentar aparecer como o Bukele equatoriano.

Embora na caótica política equatoriana seja muito difícil fazer previsões, o mais previsível na contenda eleitoral que se avizinha, é que se defina entre os candidatos ou candidatas do correísmo e os candidatos da direita que obtenham mais apoio nas urnas. Isto significa que o poder estatal se resolverá entre as frações da burguesia, que concordam em manter a ordem capitalista.

Não se deve descartar, entretanto, o peso que as candidaturas do movimento indígena e da CONAIE poderiam alcançar, cujo líder mais reconhecido é Leonidas Iza. Ao ser assim se romperia a dicotomia correísmo/anticorreísmo que domina a cena política equatoriana desde 2006. Iza convocou a unidade do campo popular em torno de um programa de reivindicações democráticas que tem como eixo a luta contra o modelo neoliberal.

Ao serem as eleições um espaço manejado pela burguesia, nossa proposta como ART é não confiar em nenhuma das opções da burguesia, sejam de caráter neoliberal ou de caráter reformista. A única forma de superar a grave crise econômica, social, ambiental e de insegurança que nos assola, é através da luta, da mobilização e da organização da classe trabalhadora e dos setores oprimidos, em torno de um programa de transformações estruturais que coloquem fim à pobreza, à desigualdade e à exploração inerentes ao sistema capitalista mundial, imerso em uma profunda crise.

Tradução: Lílian Enck

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