search
               
                   
Palestina

Nakba: os jovens não esqueceram

maio 22, 2023

Há 75 anos, aconteceu a Nakba (“catástrofe” em árabe): a criação do Estado de Israel significou a espoliação, do povo palestino, de seu território histórico e o início de um longo sofrimento que continua até hoje, juntamente com uma resistência heroica que se mantém obstinadamente.

Por: Soraya Misleh e Alejandro Iturbe

A Nakba foi resultado do projeto colonial elaborado pelo movimento sionista desde o final do século XIX. Na realização deste plano, devemos considerar dois momentos. A primeira é a votação de 29 de novembro de 1947, na Assembleia Geral das Nações Unidas, que aprovou a criação do Estado de Israel, na qual foram concedidos 52% do território do até então Mandato Britânico da Palestina. Posteriormente, por meio de guerras e ocupações, Israel aumentará esse controle direto em 78% do território. Esta resolução foi o sinal verde para o sionismo avançar na concretização do seu plano.

Em si, essa resolução já representava uma grande espoliação: a população judaica do território era uma minoria em relação ao povo palestino (árabe). Esta população era conformada por um pequeno setor que a habitava desde tempos históricos, outro que se fixou, por política das organizações sionistas europeias, desde finais do século XIX, comprou algumas terras e instalou colônias e, por fim, incluía também contingentes de judeus europeus sobreviventes da perseguição nazista.

Vejamos a evolução das populações até 1948[1]. Em 1917, 644.000 árabes palestinos e 56.000 judeus viviam no território; em 1922, havia 663.000 palestinos e 84.000 judeus; em 1931: 750.000 e 175.000, respectivamente; em 1947/48, 1.300.000 palestinos e 600.000 judeus (a maioria havia chegado da Europa depois de 1945). Mesmo nos territórios concedidos a Israel, a população palestina era de longe a maioria (950.000).

Mas a ONU deu a Israel 52% da área e aos palestinos os 48% restantes. Ou seja, desde sua própria “criação”, Israel significou uma usurpação e um roubo ao povo palestino. Este roubo pretendia justificar-se com a necessidade de dar uma “pátria judaica” aos que sofreram terrivelmente com a perseguição nazi, algo que teria sido muito justo.

Com base nisso, o sionismo construiu uma grande mentira: a criação de Israel significava dar “uma terra sem povo a um povo sem terra”. Uma grande falsificação histórica, porque aquela “pátria judaica” (que teria sido justo criar) foi construída não em uma “terra sem povo”, mas desapropriando e expulsando o povo palestino da terra que lhe pertencia por direito histórico.

Este roubo foi promovido primeiro pelo imperialismo britânico e depois pelo imperialismo americano. Através da criação do Estado de Israel, buscavam construir um enclave militar imperialista, contra os povos árabes e suas lutas, no coração de uma região de imensa riqueza petrolífera.

Contou com a cumplicidade da burocracia da antiga União Soviética (liderada por Stalin). O stalinismo apoiou a criação do Estado de Israel na ONU e foi inclusive quem forneceu armas aos bandos armados sionistas que foram expulsar e assassinar palestinos a partir da Tchecoslováquia. Nesse caso, a justificativa para essa política contrarrevolucionária era que Israel representaria uma “luz progressista” (e até “socialista”) em meio à “barbárie árabe”.

A “limpeza étnica”

A Assembleia Geral da ONU havia “decretado” o “nascimento” do Estado de Israel a partir de 14 de maio de 1948. Embora a “limpeza étnica” já tivesse começado após a resolução da ONU, ela dá um grande salto, a partir de 15 de maio. Ciente de que a população judaica era uma minoria usurpadora, o sionismo iniciou uma brutal operação de “limpeza étnica” contra a população palestina, suas terras e aldeias, por meio de suas organizações armadas, como o Irgun e o Haganah.

Para se ter uma ideia do que isso significou, é importante lembrar o que aconteceu em Deir Yassin, um vilarejo de 700 habitantes, no qual o Irgun assassinou mais de 100 (a maioria mulheres, crianças e idosos) [2]. Ataques e massacres semelhantes foram realizados em muitos outros vilarejos. Estima-se que, em 6 meses, cerca de 500 deles foram destruídos, que 20.000 palestinos foram mortos e que 800.000 foram expulsos de suas terras. Essa “limpeza étnica” é a “marca de nascença” do Estado de Israel.

Um povo “dividido” pela força

Desde então, o povo palestino padeceu enormes sofrimentos, inclusive o de ser condenado à fragmentação. Estima-se que hoje existam cerca de 13 milhões de palestinos.

Cerca de 3 milhões vivem na Cisjordânia, cercados por um muro e pelas forças de ocupação israelenses (com a cumplicidade da “Autoridade Palestina”), e permanentemente atacados por colonos judeus, especialmente os de origem russa, que lhes roubam cada vez mais território. Cerca de 2,4 milhões estão amontoados na Faixa de Gaza, submetidos a ataques e bombardeios permanentes por parte de Israel.

Quase 2 milhões (herdeiros dos que não foram expulsos em 1948) vivem nas áreas ocupadas no ano da nakba (Israel), com alguns direitos políticos, mas, na verdade, como cidadãos de segunda classe. Entre 6 e 7 milhões vivem no exílio, a maioria em países árabes vizinhos (como a Jordânia e o Líbano), muitas vezes em campos de refugiados ou em áreas com serviços precários. Populações que vivem a dor de não poderem voltar à sua pátria e à terra que foi das suas famílias.

Ocupação direta e as Intifadas

De 1948 até hoje, ocorreram inúmeros fatos cuja análise extrapola o escopo deste artigo. Vamos nos concentrar no que aconteceu em junho de 1967 (chamada “Guerra dos 6 Dias”) quando Israel anexou a Faixa de Gaza, Cisjordânia, Jerusalém Oriental (a “Cidade Velha”) e as Colinas de Golã (um planalto fronteiriço entre Israel, Síria e Líbano). O deserto do Sinai, pertencente ao Egito, já estava sob seu domínio.

Israel havia aumentado consideravelmente o território sob seu domínio direto. Porém, ao mesmo tempo, diante do mundo caía sua máscara de “pequeno país progressista lutando por sua sobrevivência” e mostrava sua verdadeira face como um enclave imperialista que aplicava os métodos mais cruéis contra a população palestina. Além da justa ira que já gerava entre os povos árabes, começava agora a ser repudiado por toda a esquerda mundial (uma parte da qual, antes, o via com simpatia).

Ao mesmo tempo, as duras condições da ocupação militar israelense alimentaram o sentimento de injustiça e a disposição para a rebelião entre os palestinos em Gaza e na Cisjordânia, especialmente entre os jovens. Assim, foram criadas as condições para a Primeira Intifada (“revolta” em árabe), também chamada de “guerra das pedras”, em 1987, quando milhares de jovens palestinos saíram para enfrentar, com estilingues e pedras, aos soldados e armas israelenses.

As imagens desses jovens com o rosto coberto com o tradicional lenço palestino (kuffiyya) percorreram e impactaram o mundo como símbolo desse combate desigual e geraram muita simpatia, apoio e até emulação (por exemplo, foi adotado como próprio pelos piqueteiros argentinos). Diante dessa rebelião, Israel, como era sua essência, usou a repressão e a violência: mais de 3.000 jovens palestinos morreram como resultado dessa repressão e outros milhares foram presos.

Os Acordos de Oslo

No entanto, ao mesmo tempo, um processo de desmoralização muito contraditório ocorreu nos jovens soldados israelenses, que se diziam dispostos a lutar para “defender Israel” contra exércitos e soldados inimigos, mas que não suportavam mais “atirar em adolescentes e crianças que só nos jogaram pedras”.

O sionismo e o próprio imperialismo rapidamente entenderam que isso representava um grande perigo e traçaram um plano para “se livrar” da ocupação direta de Gaza e da Cisjordânia. Esse plano culminaria com a assinatura dos Acordos de Oslo (1993) com a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e a posterior criação da Autoridade Nacional Palestina (ANP) nesses territórios.

Os Acordos de Oslo e a criação do ANP foram um grande negócio para o sionismo e o imperialismo. A suposta “autonomia palestina” nesses territórios é inexistente: eles são cercados por muros e retidos pelo exército israelense em suas fronteiras. Mas agora, além disso, se agregou a ANP para o controle interno e a repressão, como “gerente da ocupação”, inclusive com acordos de cooperação em “segurança” com Israel [3].

Esse triunfo do sionismo foi possibilitado pela rendição da direção da OLP (e de suas correntes majoritárias como o Al Fatah) que, a partir desses Acordos e da criação da ANP, deixou de ser a expressão da luta pela recuperação do Palestina para a construção de seu Estado e, como vimos, tornou-se “gerente da ocupação israelense”.

Ao mesmo tempo, como base de sustentação desta localização política, vários autores palestinos caracterizam que houve uma mudança na estrutura social dos territórios porque “a partir de Oslo se formou uma nova classe capitalista palestina” economicamente dependente de Israel que lucra e se beneficia de negócios com este Estado. Em outras palavras, ela se beneficia da ocupação e dominação israelense.

Os Acordos de Oslo foram precedidos pelos Acordos de Camp David (1978), entre o presidente dos Estados Unidos James Carter, o presidente egípcio Anwar el-Sadat e o primeiro-ministro israelense Menahem Begin, pelos quais o regime egípcio “reconhecia” o Estado de Israel e estabelecia a “paz definitiva” entre os dois países. Foi o primeiro de uma longa série de “reconhecimentos e pazes” com Israel por numerosos regimes e governos árabes (um processo que continua até hoje). Desta forma, esses regimes e governos traíram o povo palestino e o abandonaram.

A situação atual

A realidade atual da Cisjordânia é que ela está sujeita ao roubo permanente de terras por parte de colonos judeus, cercada por muros, fragmentada pela ocupação israelense e também submetida ao controle repressivo da ANP.

Os habitantes da Cisjordânia que se rebelam ou são considerados “perigosos” ou são tratados como criminosos: a grande maioria dos 4.900 prisioneiros políticos palestinos nas prisões israelenses vem da Cisjordânia (esse número total inclui 155 crianças).[4]

Uma situação diferente está presente na Faixa de Gaza desde que o Hamas venceu as eleições da ANP em 2006 e assumiu o governo deste território. Esta organização afirma ser “jihadista, nacionalista e islâmica”. Em seu programa de fundação (1987) não reconhece o Estado de Israel e reivindica a construção de um “Estado Islâmico” em todo o território histórico da Palestina.

É por isso que Israel nunca aceitou o governo de Hamas, nem a seu governo como representante dos palestinos em Gaza. Desde esse ano, submeteu este território a constantes ataques com bombardeios massivos ou seletivos. No pequeno e superpovoado território de Gaza, a política de “limpeza étnica” de Israel é destruir permanentemente sua infraestrutura de saúde, educação e geração de eletricidade para tornar a vida insuportável para seus habitantes.

Ao contrário da ANP, o Hamas não é um “gerente da ocupação”. Esta situação mantém-se, apesar de que, desde 2017, esta organização tenta dar um giro em suas posições de forma a ser “reconhecida” numa mesa de negociações. Por exemplo, emitiu uma declaração pedindo “o estabelecimento de um Estado da Palestina completamente soberano e independente, com Jerusalém como sua capital, nas fronteiras de 4 do junho de 1967” [5]. Com base nisso, no mesmo ano ele assinou um “pacto de reconciliação palestina” com a ANP de Mahmud Abbas. Em outras palavras, uma política que levaria o Hamas a realmente reconhecer o Estado de Israel e sua usurpação da maior parte do território histórico da Palestina e aceitar o “mini-estado palestino” em Gaza e na Cisjordânia.

No entanto, o Hamas não seguiu esse caminho completamente: como dissemos, seu governo em Gaza não é um “gerente da ocupação”, mas, de fato, ainda é um governo palestino independente. Por isso, em seu plano de limpeza étnica, Israel continua atacando a Faixa de Gaza permanentemente: o último desses ataques ocorreu recentemente [6].

A Nakba não foi esquecida

Em 1948, depois da Nakba, Ben Gurion, o principal líder sionista e primeiro líder do Estado de Israel, disse, diante de um campo de refugiados palestinos, com o cinismo de um usurpador, que “os velhos morrerão e os jovens vão esquecer”.

Depois de 75 anos, está evidente que esses “velhos palestinos” morreram e, certamente, muitos dos jovens e até crianças que viveram a Nakba. O que Ben Gurion errou profundamente é que o povo palestino iria esquecer: nunca esqueceram a espoliação que sofreram, continuam exigindo a recuperação de seu território histórico e lutam e resistem por isso.

Nos territórios de Gaza e da Cisjordânia, a maioria da população são jovens e crianças. Um jovem povo palestino que manteve sua aspiração histórica. Que enfrenta a ocupação israelita (cuja vanguarda são as chamadas “tocas dos leões” [7], e, nessa luta, desconfia cada vez mais dos seus dirigentes tradicionais, integrados na ANP.

Os jovens exilados também estão dispostos a lutar para devolver a terra de volta às suas famílias. São aqueles que, criados como crianças refugiadas em acampamentos, insistem: “A terra é nossa, vamos voltar”. Uma amostra de seu potencial de combate foi vista em maio de 2011, quando contingentes de jovens palestinos refugiados em países árabes vizinhos se organizaram, “perfuraram” a fronteira de Israel e conseguiram penetrar, ainda que temporariamente, em seu território [8].

A isso devemos acrescentar a crescente campanha do BDS contra Israel (Boicote, Desinvestimento e Sanções), que tem obtido significativos sucessos na tarefa de isolar internacionalmente o Estado sionista e repudiar seus crimes (como foi feito na época com o regime sul-africano apartheid). É uma campanha promovida por ativistas palestinos, mas que tem recebido o apoio e a solidariedade de amplos setores da esquerda mundial e setores democráticos, incluindo parte da juventude judaica do mundo, que vê com repulsa os crimes de Israel.

Isso nos leva a um fato positivo: a crescente crise política que o Estado de Israel vive, por um lado, e, no plano internacional, a ruptura de um setor da juventude judaica (especialmente nos EUA) que antes apoiava o movimento sionista internacional (que era uma base sólida de apoio a Israel no exterior) [9].

Algumas conclusões

Dissemos que Ben Gurion estava errado em seu prognóstico: o povo palestino não esqueceu e continua lutando e resistindo contra Israel e o sionismo. A LIT-QI apoia incondicionalmente esta luta e esta resistência. Fazemos isso, por um lado, como construtores da campanha BDS.

Ao mesmo tempo, no quadro deste apoio e participação, sustentamos que a constituição do mini-Estado não é uma solução, mas sim uma nova armadilha. Mantemos a posição da necessidade de destruir o Estado de Israel como enclave militar e agressor do imperialismo contra os povos árabes, baseado no racismo. Como a OLP propôs em seu programa fundador, “A formação de uma Palestina livre do rio [Jordão] ao mar“.

________________________________________

[1] Todos os dados populacionais neste artigo foram retirados de Ralph Schoenman’s Hidden History of Sionism, publicado pela primeira vez em inglês em 1988, e com inúmeras edições traduzidas para outros idiomas.

[2] Sobre este fato, veja The Deir Yassin massacre: Why it still matters 75 years later | Israel-Palestine conflict News | Al Jazeera

[3] Sobre esta questão dos Acordos de Oslo e a situação atual da ANP, ver https://litci.org/pt/2022/09/17/oslo-a-paz-dos-cemiterios-para-a-continua-nakba/

[4] Os dados foram obtidos na página da Addameer (Associação de Apoio aos Prisioneiros Políticos Palestinos): https://www.addameer.org/statistics

[5] «Hamas Pulls Old Israeli Trick in New Charter», artículo del diario Haaretz

[6] Ver: Declaração | Gaza sob ataque e sangue derramado em toda a Palestina no 75º aniversário da Nakba – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)

[7] Ver:  https://litci.org/pt/2023/02/11/janeiro-sangrento-demonstra-urgencia-em-fortalecer-solidariedade-com-povo-palestino/

[8] Sobre este fato, recomendamos a leitura da reportagem a Soraya Misleh (“Vamos voltar para nossa terra”) publicada na revista Correio Internacional nº 6 (junho de 2011)

[9] Sobre este tema, recomendamos a leitura https://litci.org/pt/2023/02/11/uma-crise-politica-crescente-do-estado-de-israel-e-do-sionismo/

Leia também