sáb maio 18, 2024
sábado, maio 18, 2024

Sudão: sério risco de guerra civil e envolvimento dos países vizinhos

Introdução: No sábado, dia 15 de abril, explodiu o enfrentamento armado entre o Exército do Sudão e os grupos paramilitares RSF (Forças de Apoio Rápido). Nesse conflito, de um lado, Abdel Fattah al Burhan (ex-aliado do ditador el Bashir que governou por trinta anos) e de outro lado, Mohamed Hamdan Dagalo, o genocida de Darfur (400.000 pessoas assassinadas e 2 milhões de refugiados), também conhecido como Hemedti.

Por: Ashura Nassor e Cesar Neto

O conflito entre esses dois polos não se trata de uma disputa pela liderança do país como a grande imprensa tenta demonstrar. Da mesma forma, que não se trata de disputa se haverá fusão ou incorporação do Exército sudanês com os paramilitares da RSF.

Articulado às questões mais globais, esse conflito é a expressão da crise imperialista que provoca disputa territorial, geopolítica, controle do ouro e petróleo, e acima de guerras e revoluções. É uma disputa que se inicia no Sudão, mas está estreitamente vinculada aos países do Sahel afetando diretamente os interesses do imperialismo francês, o norte-americano, e também a China e a Rússia.

Levantaremos algumas questões pertinentes a esse intrincado jogo de interesses 

Burhan X Hemedti ou Exército Nacional X Milicias Janjawuid – Rapid Support Forces (RSF)

O atual presidente Burhan, general do Exército sudanês, chegou à política einicialmente se posicionou  contra a ditadura de seu amigo El Bashir, depois passou a apoiar  o governo de conciliação civil e por último liderou  o golpe de Estado que o colocou na presidência.

O autoproclamado, general Mohamed “Hemedti” Hamdan Dagalo, vice-presidente da junta militar no poder desde o golpe de outubro de 2021. Foi responsável por unificar as milícias na Região de Darfur, criou o grupo paramilitar, o  Janjawid, que é um dos principais  responsáveis pelo genocídio em Darfur. Existe um outro aspecto a se considerar, de que população de Darfur é composta, em grande parte, por não árabes muçulmanos e Hemedti é árabe muçulmano. Por esse motivo se fala em limpeza étnica já que existe um processo de racismo de africanos de origem árabes contra os demais africanos pretos.

Burhan e Hemedti: parceiros táticos e inimigos estratégicos

Em 2018, começou uma série de mobilizações que derrubaram o ditador El Bashir que estava há 30 anos no poder.  Após a queda de El Bashir assumiu o Conselho Militar de Transição. As massas que já estavam nas ruas, seguiram lutando pela real democratização do país. No dia 3 de junho de 2019, as massas ocuparam a praça em frente do Quartel General-QG das Forças Armadas do Sudão exigindo o fim do novo governo militar, a reação veio da RSF de Hemedti que interveio e realizou um violento massacre com mais de 100 manifestantes mortos, inclusive alguns cadáveres apareceram boiando no Rio Nilo. Nessa carnificina estiveram juntos Al Burhan e Hemedti.

A repressão aprofundou a mobilização que, entre os dias 9 e 11 de junho de 2019, realizou uma greve geral de 3 dias.  Sem condições de seguir governando o Conselho Militar de Transição negociou com a Associação de Profissionais Sudaneses e o Partido Comunista a instauração de um novo governo: Conselho Soberano de Transição – CST. Ficou definido para o CST o seguinte: seria composto por militares e civis; nos 21 meses iniciais a presidência seria exercida pelos militares e outros 18 meses pelos civis; cabendo ao CST duas grandes tarefas, uma de acalmar o movimento de massas e a outra de democratizar o país.

Entretanto, o período em que o CST esteve no poder liderado pelo Primeiro Ministro, o civil Abdalla Hamdok, implementou determinadas políticas com algumas características. Tais como:

“foram feitas uma série de reformas que conseguiram com que os Estados Unidos tirassem o Sudão da lista dos de países que patrocinam o terrorismo; proibiu a Mutilação Genital Feminina (MGF); revogou as leis que impediam a livre escolha religiosa; e assinou um acordo de paz com grupos rebeldes. Essas reformas cosméticas, ou seja, na aparência apenas serviram para criar a ilusão de que o país estava mudando. Na verdade, o Conselho Soberano, com o apoio dos EUA e da Comunidade Europeia, tomou medidas extremamente conservadoras como a privatização dos portos, venda de terras a estrangeiros e expulsão dos moradores, permitiu que a inflação estivesse acima dos 400% mensais; escassez de alimentos e a total capitulação ao imperialismo ao renegociar a dívida externa, estabelecer relações com o Estado de Israel e aceitar pagar indenização de US 335 milhões pelas vítimas de dois atentados a bomba em 1998 contra as embaixadas dos EUA na Tanzânia e no Quênia”[1].

Dessa forma, pode se constatar que o governo do Conselho Soberano de Transição foi mais neoliberal que o próprio governo de Al Bashir.

Com esse quadro político econômico, os trabalhadores voltaram às ruas com grandes greves, no ano de 2020. Citemos algumas delas como: a da Kenana Sugar Company; a dos trabalhadores da Barragem de Sennar; trabalhadores da Educação; refugiados do campo de Zamzam; além de inúmeras mobilizações semanais conhecidas com Marchas do Milhão de Pessoas.

Frente ao incontrolável movimento de massas, em outubro de 2021, Al Burham e Hemedti se juntaram e deram um novo golpe de Estado. Importantes analistas viam que essa unidade não seria duradoura: “o general Burhan e seu vice ‘Hemeti’ formam uma dupla que mantém unido o regime atualmente no comando do Sudão. No papel, eles não têm nada em comum. Burhan é um soldado de carreira, enquanto Hemeti é um miliciano que se tornou político. No entanto, eles já estão no poder juntos há mais de dois anos… um relacionamento em que o menor pontinho pode resultar na saída do Sudão dos trilhos”[2].

….e o Sudão saiu dos trilhos

O editorial do jornal África Intelligence, publicou em uma de suas matérias que “o menor pontinho pode resultar na saída do Sudão dos trilhos”. E o país começou a sair dos trilhos nas negociações para a fusão das Forças Armadas do Sudão com a Forças de Apoio Rápido (RSF). A princípio se negociou a fusão, depois as Forças Armadas exigiam incorporação.

Porém, é necessário destacar que a “fusão” ou “incorporação” não é um mero jogo de palavras ou categorias militares. Por detrás estavam importantes interesses materiais, como veremos a seguir.

Forças Armadas e Forças de Apoio Rápido:  grandes negócios e interesses contrapostos

As Forças Armadas do Sudão têm estreitos negócios com a China. A exploração de petróleo, refino e transporte tem importante participação chinesa associada com empresas e ministérios controlados por militares sudaneses. A Khartoum Refinery Company, também conhecida como a “Pérola do Continente Africano”, por sua alta tecnologia e produtividade é uma joint venture entre o Ministério de Minas e Energia e a China National Petroleum Corporation-CNPC  na qual cada um tem 50%. A Khartoum Petrochemical Co. 95% pertence à China National Petroleum Corporation-CNPC  e 5% ao Ministério de Minas e Energia; A CNODC Petrochemical Trading Co. é de propriedade da CNPC controlando postos de abastecimento e depósitos de derivados de petróleo. Além disso, a China constrói oleodutos e gasodutos no país[3].

As Forças de Apoio Rápido de Hemedti atuam na exploração de ouro em todas as suas fases e etapas do processo produtivo começando pela limpeza étnica e ocupação das terras para mineração, exploração, transporte (legal e ilegal), proteção aos garimpeiros, contrabando e venda, e entrega do ouro no mercado internacional.

Hemedti possui relações muito estreitas com o Grupo Wagner que atua na vizinha República Centro Africana, dando proteção ao ditador Faustin-Archange Touadéra e garantindo a exploração e transporte ilegal de ouro e diamantes.

Hemedti desde os tempos da milícia Janjawids controla a região de Darfur que faz fronteira com a República Centro Africana e a República do Chad. Assim, sua Força de Apoio Rápido junto com o Grupo Wagner atua na República Centro Africana.

Com a desculpa de que grupos rebeldes da Rep. Centro Africana pudessem penetrar no território sudanês, em dezembro de 2022, Hemedti anunciou o fechamento da fronteira entre os dois países. Na verdade, o ditador Touadera e Hemedti fizeram um acordo informal para que as tropas da RSF intervenham em três regiões da RCA, em especial nas regiões auríferas de Vakaga, Haute-Kotto e Bamingui-Bangoran. Um acordo a três mãos: Touadera-Grupo Wagner-Hemedti.

A República do Chad faz fronteira com Darfur no Sudão. Essa fronteira é controlada pelas milícias da Força de Apoio Rápido de Hemedti. No Chad desde a morte Idriss Déby, em 2021, a França vem tentando manter o controle colonial colocando o filho de Idris, general Mahamat Idriss Déby, como presidente da República. A indicação de Mahamat como presidente desagradou a hierarquia militar do país e provocou a divisão das forças militares e uma recente tentativa de golpe de Estado. Há notícias de envolvimento de Hemedti com os grupos militares de oposição ao governo Mahamat Idriss Déby.

Sudão: sério risco de guerra civil e envolvimento dos países vizinhos

Há algum tempo vemos uma intensificação do processo de disputa pelos minerais da região do Sahel. Nessa disputa a França vem perdendo terreno em suas relações coloniais e criando condições para a entrada de outros países na exploração mineral e petroleira. Já há forte presença da China no Sudão, a Rússia vem ocupando os espaços que a França não consegue controlar e os EUA e a União Europeia estão tentando frear os ímpetos russos e chineses. O imperialismo norte-americano tem diferente tática para a mesma política em relação a Rússia e China. Vejamos a seguinte citação: “Washington [está mudando sua política] em relação ao Sudão. As liberdades políticas deixaram de estar na agenda dos EUA, tendo sido suplantadas pela prioridade urgente de restaurar a estabilidade o mais rápido possível (mesmo que isso signifique legitimar a autoridade de Burhan) e contrariar a crescente influência regional de Moscou”[4].

A mudança na postura dos EUA é visível. Antes exigiam a democratização do país, convocação de eleições e fim do ciclo militar. Porém, há diversas evidências que mostram as mudanças na política. O chefe da Inteligência Militar (MI) do Sudão, Mohamed Ali Ahmed Subir, viajou para Washington. O major-general, Subir, é um apoiador muito leal nas Forças Armadas Sudanesas (SAF) controladas por Abdel Fattah al-Burhan. Nos EEUU, Subir se reuniu com altos representantes da administração de Joe Biden, tanto no Departamento de Estado quanto na CIA.

A intrincada combinação das peças desse tabuleiro de xadrez

A afirmação de que Hemedti responde aos interesses de Moscou, e Al-Burhan responde aos interesses de Pequim apesar de correta é insuficiente.  Hemedti, além de suas estreitas relações com o Grupo Wagner, também tem o apoio dos Emirados Árabes Unidos, tendo inclusive colaborado na guerra do Yemen.

Contraditoriamente, na República Centro Africana, a produção de ouro e diamantes pela Anglo American e De Beers seguem seu curso normal dentro do acordo do ditador Touadera com o Grupo Wagner e consequentemente Hemedti.

Al Burhan, por sua vez, sempre teve bons negócios com a China e foi defendido por eles no Conselho de Segurança da ONU, contra a política dos EUA. O outro aliado de Al Burhan é o Egito que vem transformando a China em seu parceiro privilegiado. Para pagar dívidas em atraso com o FMI o Egito está emprestando US$ 500 milhões em títulos chineses conhecidos como Green Panda[5]. Com isso, a China representará 5% da dívida externa egípcia e será o quarto maior credor. Essa dívida deverá aumentar com os megaprojetos desenvolvidos pelas empresas chinesas: China State Construction Engineering Corporation (CSCEC), Aviation Industry Corporation of China e China Railway Group Ltd. Todos financiados pelo Export-Import Bank of China.

É preciso reconstruir as forças da resistência operária e popular com apoio dos trabalhadores dos países imperialistas

Como dissemos acima, esse intrincado tabuleiro de xadrez recém começa a mover suas peças. O imperialismo em sua fase decadente gera essas combinações – quase improváveis – e reservam para as massas os genocídios, guerras civis e resistência.

A resistência já havia começado no Sudão, em 2018-2019, mas foi traída pela Associação dos Profissionais e pelos Partido Comunista. Resta aos trabalhadores desses países construírem suas novas organizações apoiadas na solidariedade e lutas dos trabalhadores dos países imperialistas.

A resistência operaria e popular deve ter como objetivo político construir a Federação das Repúblicas Socialistas Africanas

Além de construir redes de resistência de trabalhadores no âmbito nacional e internacional é preciso ter como estratégia a derrubada de todos esses ditadores cúmplices ou agentes diretos dos sucessivos genocídios que realizam limpeza étnica. É preciso construir a Federação das Repúblicas Socialistas Africanas. O capitalismo mata, morte ao capitalismo.


[1] Ashura Nassor – Golpe de estado no Sudão e a continuidade da luta – https://litci.org/pt/2021/11/02/65256-2/

[2] Burhan and Hemeti keep a tight hold on power in Khartoum – https://www.africaintelligence.com/eastern-africa-and-the-horn/2022/01/17/burhan-and-hemeti-keep-a-tight-hold-on-power-in-khartoum,109716905-ge0

[3] https://www.cnpc.com.cn/en/eninsudan/201704/183e97d0a46e42cd8a6c0016ae69dd96/files/49eae3c796df4fdbb31a2c5b0b6ae9bc.pdf

[4] Burhan-Hemeti feud plays out in CAR to Washington’s dismay – https://www.africaintelligence.com/eastern-africa-and-the-horn/2023/01/26/burhan-hemeti-feud-plays-out-in-car-to-washington-s-dismay,109906914-evg

[5] Sisi seeks Chinese solution as IMF and creditors close in – https://www.africaintelligence.com/north-africa/2023/04/20/sisi-seeks-chinese-solution-as-imf-and-creditors-close-in,109947254-gra

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