qua jul 24, 2024
quarta-feira, julho 24, 2024

Elly Schlein: uma nova maquiagem para a burguesia de sempre

Antes de comentar a vitória de Elly Schlein nas primárias do Partido Democrata, parece útil começar com um velho provérbio: o hábito não faz o monge. Não faz, acrescentamos, sobretudo se o portador é um conhecido sem vergonha que durante algum tempo mostrou as piores atrocidades.

Por: Fabiana Stefanoni

No caso do Partido Democrata, consideramos que muitos estão cometendo erros. É realmente lícito pensar que basta uma roupa nova para mudar a natureza do partido que mais do que qualquer outro nos últimos anos aplicou com a maior brutalidade, enquanto esteve no governo, as políticas antioperárias dos banqueiros e dos patrões? Mas vamos por ordem e analisemos os fatos.

Uma nova fase no Partido Democrata?

Entre os argumentos mais usados para exaltar a eleição de Elly Schlein está aquele segundo o qual se abriria uma “nova fase no Partido Democrata”. O Partido Democrata, apesar de suas longínquas origens de partido operário estalinista (o PCI, do qual nasceu o DS que depois se fundiu com o que restava da Democracia Cristã, dando vida ao Partido Democrata), foi durante décadas um partido completamente burguês.

Escrevemos completamente não por acaso: é talvez o partido que, enquanto esteve no governo, mais aplicou as políticas mais agressivas em benefício da burguesia. Basta lembrar a famosa reforma das aposentadorias/pensões de Fornero na época do governo de Monti (uma reforma muito pior que aquela contra a qual lutam os trabalhadores e trabalhadoras francesas) ou a chamada Boa Escola (que transformou as escolas em empresas, introduzindo essa alternância escola-trabalho que causou até três vítimas entre os estudantes). Sem falar das políticas de privatização, as leis antigreves (inclusive a lei 146/90, uma das piores do mundo, que proíbe as greves prolongadas nos setores considerados “essenciais” e no setor público), as medidas draconianas contra os trabalhadores do setor público, os decretos racistas (do Turco-Napolitano aos Decretos Minniti, até a aplicação dos Decretos Salvini na época do governo Conte2), a precarização do trabalho (Pacchetto Treu), as políticas de guerra.

Algumas destas medidas, diga-se de passagem, foram implementadas pelos governos de Prodi com o apoio da Refundação Comunista.

A lista de atrocidades assinadas pelo Partido Democrata é muito longa e não é necessário entrar em detalhes para entender quão longe este partido está da classe operária e de suas reivindicações. É suficiente ir a uma fábrica e falar com as operárias e os operários: a lembrança dos ataques dos governos do Partido Democrata está muito viva em muitos trabalhadores.

De fato, é justamente a consciência das políticas antioperárias do Partido Democrata o que fez com que amplos setores da classe operária depositassem erroneamente sua confiança eleitoral nos partidos de direita (populistas) com base pequeno burguesa: menos vinculados de forma direta – justamente por sua base pequeno burguesa – que o PD aos interesses da grande burguesia italiana, a Liga, o M5s e o FdI construíram suas fortunas eleitorais mimetizando uma oposição (de fachada) às políticas de austeridade assinadas pelo PD. Se na questão das aposentadorias/pensões a “Cota 100” da Liga lhes parecia algo bom para amplos setores da classe trabalhadora, certamente não é pelos méritos da Liga, mas pelos deméritos do PD: devendo escolher entre a cruz (“Cota 100”) e a espada (a lei Fornero), muitos operários optaram pela cruz.

Com esse lembrete, coloquemos mãos à obra. Qual é a verdadeira razão desta mudança pelo vértice? O Partido Democrata perdeu grande parte de seu peso eleitoral. Muitos de seus ex eleitores, atingidos diretamente pela crise e pelas políticas de sangue e lágrimas realizadas por esse partido, deixaram de votar nele. De fato, o partido precisa simular um “giro” para recuperar votos.

Mas, trata-se realmente de uma “nova fase”? Assim como as fases lunares não mudam a lua, um ou outro porta-voz não pode mudar a natureza do PD. Ou melhor – façamos uma previsão fácil – logo será a nova secretaria a que abandonará a conversa fiada inicial para representar melhor a natureza de classe (burguesa) do Partido Democrata. Acreditar na ideia de que um assassino pode se tornar um filantropo só porque muda de roupa, significa alimentar ilusões perigosas, destinadas a levar água ao moinho da grande burguesia italiana.

Por que justamente Elly Schlein?

Mas, por que grandes setores do aparato do PD – de Boccia a Orlando, de Franceschini a Zingaretti– decidiram apoiar Schlein, com o aplauso da grande burguesia (e com respaldo da grande imprensa e mídia, pensemos na campanha baseada na La7 a favor de Elly Schlein)? A resposta é simples: Elly Schlein não só é confiável na representação dos interesses burgueses, mas pode fazer seu trabalho antioperário de forma particularmente eficaz, ocultando-o sob um disfarce de “esquerda”.

Já escrevemos um artigo (1) no  passado no qual analisávamos o trabalho de Elly Schlein na época da coalizão «Coraggiosa» [«Valente»] (antes de seu reingresso ao PD): Schlein participou com convicção na construção da Europa dos banqueiros, colocando no máximo algumas controversas, mas sem questionar as políticas da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional) e transformando-se, assim, em uma ativa promotora no Parlamento Europeu do Regulamento de Dublin, funcional em expulsar os imigrantes da Itália para distribuí-los em outros países. Schlein que hoje, após a tragédia de Crotone, afirma querer “ir mais além dos tratados de Dublin” esquece de especificar que ela própria os aprovou (2).

Sobretudo, Schlein demonstrou sua confiabilidade perante a burguesia local nos últimos anos de governo em Emilia Romagna, uma das zonas mais ricas do país, onde residem algumas das maiores e mais rentáveis indústrias – desde Ferrari até Lamborguini, desde Barilla até os gigantes da cerâmica e da química (só para citar alguns) – e onde o capital financeiro também tem sua posição estratégica (pense em Intesa San Paolo, Credito Emiliano, etc).

De fevereiro de 2020 a outubro de 2022 foi vice-presidente da Região, gerenciando em primeira pessoa as políticas burguesas: financiamento da saúde privada (que faturou bilhões durante as fases mais agudas da pandemia), massacre econômico de amplos setores sociais (proletários e pequeno burgueses) durante o chamado lockdown, redução do financiamento dos centros antiviolência, privatização do transporte público, demissões em massa. Em 2020, durante o governo da “feminista” Schlein, foram perdidos 68.000 postos de trabalho em Emilia Romagna (sem contar o trabalho não contratado), dos quais 52.000 eram mulheres (3). Também durante seu mandato, presenteou centenas de milhares de euros às escolas privadas – em sua maioria religiosas – da Emilia Romagna (um financiamento de dois milhões divididos entre 174 institutos estatais e…57 escolas privadas com o mesmo estatuto!). Sem falar, como dizíamos no início, de quanto a saúde privada (Aoip) enriqueceu nestes anos de administração Bonaccini- Schlein… (4)

Os capitalistas italianos confiam mais em Elly Schlein. Sua origem familiar da qual tanto se fala – ou seja, o fato de vir de uma família rica – conta muito pouco: o que importa, para patrões e banqueiros, é a credibilidade política da nova secretária do Partido Democrata.
Por isso, importantes setores da burguesia italiana começaram a apostar na carta de Schlein: uma mulher capaz de acessar o eleitorado mais jovem com uma nova linguagem, simulando um “giro à esquerda”. Com certeza, o capitalismo italiano não é um monolito. Entre seus setores há, às vezes, interesses contrapostos e inclusive o Partido Democrata não é homogêneo: existem diferentes correntes dentro dele, cada uma das quais representa um vínculo mais ou menos direto com este ou aquele setor da burguesia. Alguns patrões teriam preferido Bonaccini, menos propenso à complacência, na linguagem, a setores do movimento como Friday for future, coletivos feministas e lgbt+, etc. Mas os setores mais astutos da nossa grande burguesia local são conscientes de que só a ilusão da “renovação do Partido Democrata” poderá favorecer uma recuperação eleitoral do partido que, mais do que ninguém, é capaz de levar adiante políticas burguesas em um clima de relativa paz social. E para isso, esperam com esperança a nova gestão de Schlein.

Grande confusão à esquerda

Se os capitalistas italianos têm ideias nítidas sobre os interesses de classe que Schlein representa- precisamente seus interesses de classe – o assunto não é tão evidente para as organizações políticas da esquerda italiana. É necessária uma elucidação: por esquerda não nos referimos aqui a aqueles partidos que ocupam as cadeiras de esquerda no Parlamento italiano. Ali, entre as bancadas de esquerda, que Rosa Luxemburgo definiu efetivamente como o “galinheiro da democracia burguesa”, encontramos os principais representantes das patronais e dos banqueiros. Com o termo esquerda queremos nos referir às organizações que mantém, ao menos em seu programa proclamado e em seus símbolos, um certo vínculo com o proletariado e a classe operária (independentemente do caráter reformista desse programa). Portanto, excluímos todo o PD das fileiras de esquerda.

Esclarecimento feito, dizemos que na esquerda há uma grande confusão sob o céu. Citamos aqui só dois exemplos (mas vários outros poderiam ser dados, lamentavelmente): a Refundação Comunista e a organização chamada trotskista SCR (Esquerda, Classe e Revolução, ndt).

O secretário do PRC (Partido da Refundação Comunista), Acerbo, no dia seguinte ao da vitória de Schlein nas primárias, emitiu um comunicado intitulado “Felicitações a Schlein” (5), no qual espera que “sua vitória suponha um giro frente ao habitual PD neoliberal e belicista que conheceu desde 2008 até hoje”. Acerbo precisa de algumas lições sobre o ABC do marxismo: O que caracteriza o caráter de classe de um partido não é a fraseologia daqueles que o dirigem, mas as políticas que concretamente implementam na sociedade. Um partido, como o Partido Democrata, atado pelos pés e mãos aos interesses dos grandes bancos e do grande capital industrial, não muda sua natureza por uma operação de maquiagem na cúpula. Que o partido, que nos últimos anos manejou diretamente as mais ferozes políticas de ataque à classe operária, deixe de ser “neoliberal e belicista” é um assunto que tem mais a ver com a ficção científica do que com análise política. Que setores de massas possam se iludir por uma opção burguesa não é de se estranhar: recentemente, testemunhamos as ilusões de amplos setores dos trabalhadores para com a reacionária Meloni, que reuniu um grande apoio eleitoral em fábricas e bairros populares. Mas que sejam os dirigentes dos partidos de esquerda aqueles que alimentam esta ilusão é particularmente grave.

Como dissemos, inclusive um partido que se autoproclama trotskista – só para aprovar governos burgueses, como fez durante anos com o venezuelano e como continua fazendo com o cubano; ou sem declarar a própria neutralidade entre o opressor russo e as massas ucranianas atacadas militarmente – alimenta esta leitura de uma “Schlein reformista”. Em um artigo (6), um dos principais dirigentes do SCR, Claudio Bellotti, sustenta que “Elly Schlein abre uma nova fase na história do Partido Democrata”, definindo-a como representante de uma “esquerda reformista”, embora um “reformismo tímido” (sic!).  Falar de “reformismo tímido” em relação ao Partido Democrata é a expressão da falta total de uma análise de classe inclusive em certas organizações que se autodefinem marxistas e “revolucionárias”. No caso específico, este artigo do SCR confirma o que temos escrito em outros artigos (7). Fazendo alarde da boca para fora do marxismo (e do trotskismo) esquecem a lição fundamental, a saber, que os marxistas, como nos explicaram todos os grandes revolucionários da história, não acompanham as massas em suas ilusões: pelo contrário, sua tarefa é justamente contrapor estas ilusões. Ainda mais se, como neste caso, setores de massa se iludem com a possibilidade de um “giro à esquerda” do principal partido da burguesia italiana (o “giro à esquerda que, segundo Bellotti, poderia ser um “caminho obrigado para toda uma fase”… sic!). O pobre Trotsky se revira em seu túmulo… (8).

A única «boa notícia»

Há apenas uma boa notícia – por assim dizer- na vitória de Schlein. É o fato de que hoje, qualquer representante da burguesia, para obter consenso, não pode deixar de se referir às questões apresentadas pelos movimentos de massa dos últimos anos: o meio ambiente, os direitos das mulheres, das pessoas LGBT+ e dos outros setores oprimidos. As grandes mobilizações de jovens na defesa do meio ambiente, de mulheres contra o machismo, de pessoas LGBT+ por uma sexualidade livre, estão obrigando inclusive os dirigentes dos partidos liberais burgueses a colocar as questões ambientais e de gênero no centro de sua retórica.
Mas a “boa noticia” para por aí. Somos muito conscientes de que nenhum partido burguês, embora dirigido por uma mulher LGBT que reivindica as mobilizações do Friday for future, jamais poderá dar respostas reais às reivindicações destes movimentos. De fato, já os traiu nas políticas governamentais – nacionais e locais – em defesa dos interesses de classe do grande capital.

O “novo modelo de desenvolvimento” do qual Schlein fala, é um modelo capitalista, destinado a continuar a obra de destruição do planeta que vimos presenciando nos últimos anos. Dar bilhões do dinheiro público às indústrias “verdes” – que frequentemente são as que mais poluíram no passado – não mudará as coisas. A indústria automobilística, após décadas poluindo, esfrega as mãos diante das enormes vantagens econômicas que obterá com o financiamento pela produção de carros elétricos. A menos que depois se comprove, provavelmente dentro de algum tempo, que em um contexto capitalista não são dadas as condições para uma difusão real deste tipo de veículos.

De modo similar, na questão dos direitos das mulheres, das pessoas LGBT+, dos imigrantes, sabemos bem que os capitalistas não têm a intenção de renunciar às vantagens econômicas que obtêm da exploração dos setores oprimidos da classe trabalhadora: as mulheres proletárias continuarão sofrendo violência (e feminicídios) em seus lares sem apoio econômico e psicológico real, as pessoas LGBT+ continuarão sofrendo discriminação nos locais de trabalho e estudo.

Depois do massacre de Crotone, se fala muito da ferocidade de um sistema que deixa mulheres, homens e crianças morrerem no mar, dificultando inclusive os resgates. O governo de Meloni é um governo brutal e criminoso, mas não devemos esquecer que nos últimos anos milhares de imigrantes morreram no mar Mediterrâneo à sombra dos governos do Partido Democrata e com o beneplácito da União Europeia. Essa União Europeia a qual Schlein se refere hoje, prometendo um “giro” em relação à gestão de Minniti e de Bossi Fini…para depois reiterar que a permissão de residência deve estar “baseada em trabalho”.

Somente um programa operário e de classe poderá criar as condições para uma mudança real nas condições do meio ambiente, das mulheres, das pessoas LGBT+, dos imigrantes e dos migrantes. Só a expropriação de grandes capitais industriais e financeiros e a construção de uma economia coletiva, ou seja, socialista, poderão garantir as condições para uma produção que respeite o meio ambiente, pela independência econômica e proteção das mulheres e das pessoas LGBT+, para uma verdadeira acolhida de todas e todos imigrantes.

Esta é a tarefa urgente da classe operária, que precisa construir uma direção revolucionária e combativa, e não fomentar ilusões sobre partidos da burguesia.

Notas:

(1)www.partitodialternativacomunista.org/politica/nazionale/a-chi-giova-il-coraggio-di-elly-schlein-la-famiglia-allargata-di-zingaretti-e-dei-benetton

(2)https://www.basilicata24.it/2018/09/regolamento-dublino-la-riforma-sistema-piu-efficace-rispettoso-dei-diritti-fondamentali-dei-richiedenti-asilo-58758/

(3) https://www.dire.it/10-03-2021/610628-in-emilia-romagna-il-60-dei-posti-di-lavoro-persi-sono-di-donne/

(4)https://salute.regione.emilia-romagna.it/notizie/regione/2022/luglio/regione-emilia-romagna-e-aiop-ancora-insieme-per-il-recupero-delle-liste-d2019attesa

https://salute.regione.emilia-romagna.it/notizie/regione/2020/novembre/ce-laccordo-regione-e-sanita-privata-per-i-tamponi-rapidi-ai-dipendenti-delle-imprese-del-patto-per-il-lavoro

(5) http://www.rifondazione.it/primapagina/?p=52639

(6) https://www.rivoluzione.red/la-vittoria-di-elly-schlein-e-il-futuro-del-pd/

(7) https://www.partitodialternativacomunista.org/politica/nazionale/viaggio-tra-i-partiti-comunisti-2-puntata-le-nostre-differenze-con-scr

https://www.partitodialternativacomunista.org/politica/nazionale/a-proposito-della-dittatura-capitalista-di-cuba-polemica-con-scr-imt

 (8) Estas posições do SCR, por mais bizarras que sejam, na realidade não nos surpreendem. SCR, de fato, é a seção italiana da IMT, uma organização internacional que tem sua seção principal na Grã Bretanha (Socialist Appeal), onde fez entrismo no Partido Trabalhista – um dos dois principais partidos da rica burguesia britânica – até que foi expulsa, apoiando internamente a candidatura de Corbyn (e inclusive esperando um governo dirigido por Corbyn). Teria que acrescentar que, se foram consequentes com o marco político de sua organização internacional, o SCR, hoje na Itália, após a vitória de Schlein, deveria entrar no Partido Democrata e ali lutar contra a política de “conciliação entre as classes” (estaríamos curiosos por saber se encontrariam um vislumbre de classe operária no Partido Democrata…). Desconhecemos a organização interna da IMT, mas uma discrepância de tal magnitude na intervenção política faz pensar que – como também no caso de outras supostas internacionais que se reivindicam trotskistas – prevalece um enfoque federalista e frouxo em torno a um “partido pai”, neste caso, o britânico. Cada seção local faz o que quer desde que a direção internacional (e seu guru?) não sejam questionados.

Artigo publicado em www.partitodialternativacomunista.org, 12/3/2023.

Tradução do italiano para o espanhol: Natalia Estrada.

Tradução do espanhol para o português: Lilian Enck

Elly Schlein: uma nova maquiagem para a burguesia de sempre


 Antes de comentar a vitória de Elly Schlein nas primárias do Partido Democrata, parece útil começar com um velho provérbio: o hábito não faz o monge. Não faz, acrescentamos, sobretudo se o portador é um conhecido sem vergonha que durante algum tempo mostrou as piores atrocidades.

Por: Fabiana Stefanoni

No caso do Partido Democrata, consideramos que muitos estão cometendo erros. É realmente lícito pensar que basta uma roupa nova para mudar a natureza do partido que mais do que qualquer outro nos últimos anos aplicou com a maior brutalidade, enquanto esteve no governo, as políticas antioperárias dos banqueiros e dos patrões? Mas vamos por ordem e analisemos os fatos.

Uma nova fase no Partido Democrata?

Entre os argumentos mais usados para exaltar a eleição de Elly Schlein está aquele segundo o qual se abriria uma “nova fase no Partido Democrata”. O Partido Democrata, apesar de suas longínquas origens de partido operário estalinista (o PCI, do qual nasceu o DS que depois se fundiu com o que restava da Democracia Cristã, dando vida ao Partido Democrata), foi durante décadas um partido completamente burguês.

Escrevemos completamente não por acaso: é talvez o partido que, enquanto esteve no governo, mais aplicou as políticas mais agressivas em benefício da burguesia. Basta lembrar a famosa reforma das aposentadorias/pensões de Fornero na época do governo de Monti (uma reforma muito pior que aquela contra a qual lutam os trabalhadores e trabalhadoras francesas) ou a chamada Boa Escola (que transformou as escolas em empresas, introduzindo essa alternância escola-trabalho que causou até três vítimas entre os estudantes). Sem falar das políticas de privatização, as leis antigreves (inclusive a lei 146/90, uma das piores do mundo, que proíbe as greves prolongadas nos setores considerados “essenciais” e no setor público), as medidas draconianas contra os trabalhadores do setor público, os decretos racistas (do Turco-Napolitano aos Decretos Minniti, até a aplicação dos Decretos Salvini na época do governo Conte2), a precarização do trabalho (Pacchetto Treu), as políticas de guerra.

Algumas destas medidas, diga-se de passagem, foram implementadas pelos governos de Prodi com o apoio da Refundação Comunista.

A lista de atrocidades assinadas pelo Partido Democrata é muito longa e não é necessário entrar em detalhes para entender quão longe este partido está da classe operária e de suas reivindicações. É suficiente ir a uma fábrica e falar com as operárias e os operários: a lembrança dos ataques dos governos do Partido Democrata está muito viva em muitos trabalhadores.

De fato, é justamente a consciência das políticas antioperárias do Partido Democrata o que fez com que amplos setores da classe operária depositassem erroneamente sua confiança eleitoral nos partidos de direita (populistas) com base pequeno burguesa: menos vinculados de forma direta – justamente por sua base pequeno burguesa – que o PD aos interesses da grande burguesia italiana, a Liga, o M5s e o FdI construíram suas fortunas eleitorais mimetizando uma oposição (de fachada) às políticas de austeridade assinadas pelo PD. Se na questão das aposentadorias/pensões a “Cota 100” da Liga lhes parecia algo bom para amplos setores da classe trabalhadora, certamente não é pelos méritos da Liga, mas pelos deméritos do PD: devendo escolher entre a cruz (“Cota 100”) e a espada (a lei Fornero), muitos operários optaram pela cruz.

Com esse lembrete, coloquemos mãos à obra. Qual é a verdadeira razão desta mudança pelo vértice? O Partido Democrata perdeu grande parte de seu peso eleitoral. Muitos de seus ex eleitores, atingidos diretamente pela crise e pelas políticas de sangue e lágrimas realizadas por esse partido, deixaram de votar nele. De fato, o partido precisa simular um “giro” para recuperar votos.

Mas, trata-se realmente de uma “nova fase”? Assim como as fases lunares não mudam a lua, um ou outro porta-voz não pode mudar a natureza do PD. Ou melhor – façamos uma previsão fácil – logo será a nova secretaria a que abandonará a conversa fiada inicial para representar melhor a natureza de classe (burguesa) do Partido Democrata. Acreditar na ideia de que um assassino pode se tornar um filantropo só porque muda de roupa, significa alimentar ilusões perigosas, destinadas a levar água ao moinho da grande burguesia italiana.

Por que justamente Elly Schlein?

Mas, por que grandes setores do aparato do PD – de Boccia a Orlando, de Franceschini a Zingaretti– decidiram apoiar Schlein, com o aplauso da grande burguesia (e com respaldo da grande imprensa e mídia, pensemos na campanha baseada na La7 a favor de Elly Schlein)? A resposta é simples: Elly Schlein não só é confiável na representação dos interesses burgueses, mas pode fazer seu trabalho antioperário de forma particularmente eficaz, ocultando-o sob um disfarce de “esquerda”.

Já escrevemos um artigo (1) no  passado no qual analisávamos o trabalho de Elly Schlein na época da coalizão «Coraggiosa» [«Valente»] (antes de seu reingresso ao PD): Schlein participou com convicção na construção da Europa dos banqueiros, colocando no máximo algumas controversas, mas sem questionar as políticas da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional) e transformando-se, assim, em uma ativa promotora no Parlamento Europeu do Regulamento de Dublin, funcional em expulsar os imigrantes da Itália para distribuí-los em outros países. Schlein que hoje, após a tragédia de Crotone, afirma querer “ir mais além dos tratados de Dublin” esquece de especificar que ela própria os aprovou (2).

Sobretudo, Schlein demonstrou sua confiabilidade perante a burguesia local nos últimos anos de governo em Emilia Romagna, uma das zonas mais ricas do país, onde residem algumas das maiores e mais rentáveis indústrias – desde Ferrari até Lamborguini, desde Barilla até os gigantes da cerâmica e da química (só para citar alguns) – e onde o capital financeiro também tem sua posição estratégica (pense em Intesa San Paolo, Credito Emiliano, etc).

De fevereiro de 2020 a outubro de 2022 foi vice-presidente da Região, gerenciando em primeira pessoa as políticas burguesas: financiamento da saúde privada (que faturou bilhões durante as fases mais agudas da pandemia), massacre econômico de amplos setores sociais (proletários e pequeno burgueses) durante o chamado lockdown, redução do financiamento dos centros antiviolência, privatização do transporte público, demissões em massa. Em 2020, durante o governo da “feminista” Schlein, foram perdidos 68.000 postos de trabalho em Emilia Romagna (sem contar o trabalho não contratado), dos quais 52.000 eram mulheres (3). Também durante seu mandato, presenteou centenas de milhares de euros às escolas privadas – em sua maioria religiosas – da Emilia Romagna (um financiamento de dois milhões divididos entre 174 institutos estatais e…57 escolas privadas com o mesmo estatuto!). Sem falar, como dizíamos no início, de quanto a saúde privada (Aoip) enriqueceu nestes anos de administração Bonaccini- Schlein… (4)

Os capitalistas italianos confiam mais em Elly Schlein. Sua origem familiar da qual tanto se fala – ou seja, o fato de vir de uma família rica – conta muito pouco: o que importa, para patrões e banqueiros, é a credibilidade política da nova secretária do Partido Democrata.
Por isso, importantes setores da burguesia italiana começaram a apostar na carta de Schlein: uma mulher capaz de acessar o eleitorado mais jovem com uma nova linguagem, simulando um “giro à esquerda”. Com certeza, o capitalismo italiano não é um monolito. Entre seus setores há, às vezes, interesses contrapostos e inclusive o Partido Democrata não é homogêneo: existem diferentes correntes dentro dele, cada uma das quais representa um vínculo mais ou menos direto com este ou aquele setor da burguesia. Alguns patrões teriam preferido Bonaccini, menos propenso à complacência, na linguagem, a setores do movimento como Friday for future, coletivos feministas e lgbt+, etc. Mas os setores mais astutos da nossa grande burguesia local são conscientes de que só a ilusão da “renovação do Partido Democrata” poderá favorecer uma recuperação eleitoral do partido que, mais do que ninguém, é capaz de levar adiante políticas burguesas em um clima de relativa paz social. E para isso, esperam com esperança a nova gestão de Schlein.

Grande confusão à esquerda

Se os capitalistas italianos têm ideias nítidas sobre os interesses de classe que Schlein representa- precisamente seus interesses de classe – o assunto não é tão evidente para as organizações políticas da esquerda italiana. É necessária uma elucidação: por esquerda não nos referimos aqui a aqueles partidos que ocupam as cadeiras de esquerda no Parlamento italiano. Ali, entre as bancadas de esquerda, que Rosa Luxemburgo definiu efetivamente como o “galinheiro da democracia burguesa”, encontramos os principais representantes das patronais e dos banqueiros. Com o termo esquerda queremos nos referir às organizações que mantém, ao menos em seu programa proclamado e em seus símbolos, um certo vínculo com o proletariado e a classe operária (independentemente do caráter reformista desse programa). Portanto, excluímos todo o PD das fileiras de esquerda.

Esclarecimento feito, dizemos que na esquerda há uma grande confusão sob o céu. Citamos aqui só dois exemplos (mas vários outros poderiam ser dados, lamentavelmente): a Refundação Comunista e a organização chamada trotskista SCR (Esquerda, Classe e Revolução, ndt).

O secretário do PRC (Partido da Refundação Comunista), Acerbo, no dia seguinte ao da vitória de Schlein nas primárias, emitiu um comunicado intitulado “Felicitações a Schlein” (5), no qual espera que “sua vitória suponha um giro frente ao habitual PD neoliberal e belicista que conheceu desde 2008 até hoje”. Acerbo precisa de algumas lições sobre o ABC do marxismo: O que caracteriza o caráter de classe de um partido não é a fraseologia daqueles que o dirigem, mas as políticas que concretamente implementam na sociedade. Um partido, como o Partido Democrata, atado pelos pés e mãos aos interesses dos grandes bancos e do grande capital industrial, não muda sua natureza por uma operação de maquiagem na cúpula. Que o partido, que nos últimos anos manejou diretamente as mais ferozes políticas de ataque à classe operária, deixe de ser “neoliberal e belicista” é um assunto que tem mais a ver com a ficção científica do que com análise política. Que setores de massas possam se iludir por uma opção burguesa não é de se estranhar: recentemente, testemunhamos as ilusões de amplos setores dos trabalhadores para com a reacionária Meloni, que reuniu um grande apoio eleitoral em fábricas e bairros populares. Mas que sejam os dirigentes dos partidos de esquerda aqueles que alimentam esta ilusão é particularmente grave.

Como dissemos, inclusive um partido que se autoproclama trotskista – só para aprovar governos burgueses, como fez durante anos com o venezuelano e como continua fazendo com o cubano; ou sem declarar a própria neutralidade entre o opressor russo e as massas ucranianas atacadas militarmente – alimenta esta leitura de uma “Schlein reformista”. Em um artigo (6), um dos principais dirigentes do SCR, Claudio Bellotti, sustenta que “Elly Schlein abre uma nova fase na história do Partido Democrata”, definindo-a como representante de uma “esquerda reformista”, embora um “reformismo tímido” (sic!).  Falar de “reformismo tímido” em relação ao Partido Democrata é a expressão da falta total de uma análise de classe inclusive em certas organizações que se autodefinem marxistas e “revolucionárias”. No caso específico, este artigo do SCR confirma o que temos escrito em outros artigos (7). Fazendo alarde da boca para fora do marxismo (e do trotskismo) esquecem a lição fundamental, a saber, que os marxistas, como nos explicaram todos os grandes revolucionários da história, não acompanham as massas em suas ilusões: pelo contrário, sua tarefa é justamente contrapor estas ilusões. Ainda mais se, como neste caso, setores de massa se iludem com a possibilidade de um “giro à esquerda” do principal partido da burguesia italiana (o “giro à esquerda que, segundo Bellotti, poderia ser um “caminho obrigado para toda uma fase”… sic!). O pobre Trotsky se revira em seu túmulo… (8).

A única «boa notícia»

Há apenas uma boa notícia – por assim dizer- na vitória de Schlein. É o fato de que hoje, qualquer representante da burguesia, para obter consenso, não pode deixar de se referir às questões apresentadas pelos movimentos de massa dos últimos anos: o meio ambiente, os direitos das mulheres, das pessoas LGBT+ e dos outros setores oprimidos. As grandes mobilizações de jovens na defesa do meio ambiente, de mulheres contra o machismo, de pessoas LGBT+ por uma sexualidade livre, estão obrigando inclusive os dirigentes dos partidos liberais burgueses a colocar as questões ambientais e de gênero no centro de sua retórica.
Mas a “boa noticia” para por aí. Somos muito conscientes de que nenhum partido burguês, embora dirigido por uma mulher LGBT que reivindica as mobilizações do Friday for future, jamais poderá dar respostas reais às reivindicações destes movimentos. De fato, já os traiu nas políticas governamentais – nacionais e locais – em defesa dos interesses de classe do grande capital.

O “novo modelo de desenvolvimento” do qual Schlein fala, é um modelo capitalista, destinado a continuar a obra de destruição do planeta que vimos presenciando nos últimos anos. Dar bilhões do dinheiro público às indústrias “verdes” – que frequentemente são as que mais poluíram no passado – não mudará as coisas. A indústria automobilística, após décadas poluindo, esfrega as mãos diante das enormes vantagens econômicas que obterá com o financiamento pela produção de carros elétricos. A menos que depois se comprove, provavelmente dentro de algum tempo, que em um contexto capitalista não são dadas as condições para uma difusão real deste tipo de veículos.

De modo similar, na questão dos direitos das mulheres, das pessoas LGBT+, dos imigrantes, sabemos bem que os capitalistas não têm a intenção de renunciar às vantagens econômicas que obtêm da exploração dos setores oprimidos da classe trabalhadora: as mulheres proletárias continuarão sofrendo violência (e feminicídios) em seus lares sem apoio econômico e psicológico real, as pessoas LGBT+ continuarão sofrendo discriminação nos locais de trabalho e estudo.

Depois do massacre de Crotone, se fala muito da ferocidade de um sistema que deixa mulheres, homens e crianças morrerem no mar, dificultando inclusive os resgates. O governo de Meloni é um governo brutal e criminoso, mas não devemos esquecer que nos últimos anos milhares de imigrantes morreram no mar Mediterrâneo à sombra dos governos do Partido Democrata e com o beneplácito da União Europeia. Essa União Europeia a qual Schlein se refere hoje, prometendo um “giro” em relação à gestão de Minniti e de Bossi Fini…para depois reiterar que a permissão de residência deve estar “baseada em trabalho”.

Somente um programa operário e de classe poderá criar as condições para uma mudança real nas condições do meio ambiente, das mulheres, das pessoas LGBT+, dos imigrantes e dos migrantes. Só a expropriação de grandes capitais industriais e financeiros e a construção de uma economia coletiva, ou seja, socialista, poderão garantir as condições para uma produção que respeite o meio ambiente, pela independência econômica e proteção das mulheres e das pessoas LGBT+, para uma verdadeira acolhida de todas e todos imigrantes.

Esta é a tarefa urgente da classe operária, que precisa construir uma direção revolucionária e combativa, e não fomentar ilusões sobre partidos da burguesia.

Notas:

(1)www.partitodialternativacomunista.org/politica/nazionale/a-chi-giova-il-coraggio-di-elly-schlein-la-famiglia-allargata-di-zingaretti-e-dei-benetton

(2)https://www.basilicata24.it/2018/09/regolamento-dublino-la-riforma-sistema-piu-efficace-rispettoso-dei-diritti-fondamentali-dei-richiedenti-asilo-58758/

(3) https://www.dire.it/10-03-2021/610628-in-emilia-romagna-il-60-dei-posti-di-lavoro-persi-sono-di-donne/

(4)https://salute.regione.emilia-romagna.it/notizie/regione/2022/luglio/regione-emilia-romagna-e-aiop-ancora-insieme-per-il-recupero-delle-liste-d2019attesa

https://salute.regione.emilia-romagna.it/notizie/regione/2020/novembre/ce-laccordo-regione-e-sanita-privata-per-i-tamponi-rapidi-ai-dipendenti-delle-imprese-del-patto-per-il-lavoro

(5) http://www.rifondazione.it/primapagina/?p=52639

(6) https://www.rivoluzione.red/la-vittoria-di-elly-schlein-e-il-futuro-del-pd/

(7) https://www.partitodialternativacomunista.org/politica/nazionale/viaggio-tra-i-partiti-comunisti-2-puntata-le-nostre-differenze-con-scr

https://www.partitodialternativacomunista.org/politica/nazionale/a-proposito-della-dittatura-capitalista-di-cuba-polemica-con-scr-imt

 (8) Estas posições do SCR, por mais bizarras que sejam, na realidade não nos surpreendem. SCR, de fato, é a seção italiana da IMT, uma organização internacional que tem sua seção principal na Grã Bretanha (Socialist Appeal), onde fez entrismo no Partido Trabalhista – um dos dois principais partidos da rica burguesia britânica – até que foi expulsa, apoiando internamente a candidatura de Corbyn (e inclusive esperando um governo dirigido por Corbyn). Teria que acrescentar que, se foram consequentes com o marco político de sua organização internacional, o SCR, hoje na Itália, após a vitória de Schlein, deveria entrar no Partido Democrata e ali lutar contra a política de “conciliação entre as classes” (estaríamos curiosos por saber se encontrariam um vislumbre de classe operária no Partido Democrata…). Desconhecemos a organização interna da IMT, mas uma discrepância de tal magnitude na intervenção política faz pensar que – como também no caso de outras supostas internacionais que se reivindicam trotskistas – prevalece um enfoque federalista e frouxo em torno a um “partido pai”, neste caso, o britânico. Cada seção local faz o que quer desde que a direção internacional (e seu guru?) não sejam questionados.

Artigo publicado em www.partitodialternativacomunista.org, 12/3/2023.

Tradução do italiano para o espanhol: Natalia Estrada.

Tradução do espanhol para o português: Lilian Enck

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