dom jun 16, 2024
domingo, junho 16, 2024

Acelerando no vazio: a crise neoliberal da sociabilidade e a saúde mental

Nessa segunda semana de janeiro foi publicado no portal da LIT o texto A alienação no capitalismo e a saúde mental, assinado por Giorgio Viganò, da Itália. E, antes de mais nada, a iniciativa de se abordar o tema da saúde mental é muito importante e urgente. Não há quem negue o aumento dos casos de adoecimento mental – especialmente no cenário pós-pandêmico – e que não reconheça o assunto como um tema latente de nosso tempo. E não somos nós quem dizemos. A depressão foi considerada pela Organização Mundial da Saúde como o “mal do século” – para mencionar um dos transtornos, apenas. As organizações políticas precisam começar a olhar com seriedade para o tema, primeiro como uma questão e aspecto social do capitalismo contemporâneo e, segundo, como um problema mesmo organizativo. Afinal, são questões que atingem também nossos militantes e camaradas. Quero, então, fazer um diálogo com o companheiro Viganò e pontuar algumas questões.

 Por: Romerito Pontes

A concepção biomédica

A primeira delas é sobre a ideologia reducionista, corretamente criticada pelo autor. Durante muitos séculos de desenvolvimento da Medicina, desde os tempos em que as enfermidades eram consideradas manifestações sobrenaturais, ser “saudável” era não ter doenças. Ou seja, uma concepção que atendia plenamente os princípios da lógica formal (identidade, não-contradição e terceiro excluído). Resumindo: saúde é a ausência de doenças, gozar de saúde é não padecer de enfermidades. Essa concepção vigorou até meados da década de 1940, quando a Organização Mundial da Saúde passou a considerar em sua definição de saúde o completo bem-estar físico, mental e social, esgarçando assim a concepção para além da “ausência de doenças”.

Mas o desenvolvimento das ciências médicas não passou incólume a essas formulações. Vale lembrar que no século XIX vivemos o auge de concepções positivistas que imprimiram uma forte leitura biomédica sobre o entendimento da vida, mesmo nos seus aspectos sociais. Não por acaso, nessa mesma época, ideologias e preconceitos ganham status de cientificidade a partir de abordagens mecanicistas e biomédicas. Por exemplo, a frenologia, uma pseudociência que buscava identificar tendências criminais baseadas em padrões fenotípicos. Teses racistas e eugenistas como a do darwinismo social também ganharam fundamentação com aparência científica baseada em aspectos biomédicos e genéticos, como no caso da suposta superioridade de algumas raças.

A mudança na concepção da OMS foi importante, mas as marcas desse positivismo biomédico e reducionista persistem latentes em parte das práticas de saúde hoje, especialmente sobre aquelas que de alguma maneira possuem uma interface com aspectos da vida social. O tema da “teoria da serotonina” trazido por Viganò, por exemplo, é apropriado, embora isso em nada diminua a importância das pesquisas sobre os aspectos bioquímicos do funcionamento encefálico. A armadilha da ideologia positivista e reducionista contida na concepção biomédica da saúde mental, entretanto, opera em um outro nível que vai ao encontro de algumas especificidades do capitalismo contemporâneo. Voltaremos a essa questão.

De que momento do capitalismo estamos falando?

As organizações políticas aos poucos estão se dando conta da importância do tema da saúde mental. Naturalmente, as primeiras conclusões sobre esse debate apontam para os impactos do capitalismo sobre a saúde mental. Mas se quisermos ir a fundo na questão é preciso se perguntar: por que o capitalismo não causou esses problemas antes como causa hoje? O próprio Viganò introduz seu texto dizendo que os transtornos mentais estão em ascensão nos últimos quarenta anos, embora não se arrisque muito a explicar o porquê.

Essa é uma questão justa e que precisa de respostas. O capitalismo é um modo de produção que tem alguns séculos já. Se considerarmos o capitalismo industrial, surgido com a primeira Revolução Industrial na virada do século XVIII para o XIX, são pelo menos duzentos anos. Agora, se é verdade que o capitalismo é o mesmo desde então, pelo menos em suas bases estruturais não houve uma mudança radical, qual é a especificidade de seu momento hoje que faz com que se agrave a crise da saúde mental? A pista é dada pelo próprio Viganò: quarenta anos atrás.

Ascensão da ideologia neoliberal e corrosão da sociabilidade

Quando falamos “quarenta anos atrás” estamos nos referindo aos anos 1980. E o que houve de específico ali que pode ter desencadeado a crise da saúde mental? Temos um palpite: a ascensão da ideologia neoliberal. Que, é verdade, não muda as bases estruturais do capitalismo, mas o coloca em um outro patamar ideológico. Pois o neoliberalismo não é apenas uma filosofia gerencial de assuntos econômicos, mas uma filosofia que impacta a vida na sua totalidade. Afinal, na medida que a produção passa a se reorganizar sob a batuta de outros ditames ideológicos, toda a sociabilidade é afetada por isso.

Por exemplo, as grandes concentrações de operários nas fábricas e, consequentemente, nos sindicatos, aspecto clássico do período fordista, são profundamente reformuladas pelo neoliberalismo. Aumenta as terceirizações e quarteirizações, o maior encadeamento da produção a nível global, a diminuição do tempo de rotação do capital e a aceleração da vida, a automação e consequente demissões, a precarização do trabalho e a destruição dos direitos. Tudo isso vai dissolvendo a velha formação fordista da produção e a sociabilidade que decorria dela. A possibilidade total do teletrabalho hoje nos priva até da socialização que – com todos os problemas – ocorre no ambiente de produção e/ou serviço. Igualmente, os sindicatos vão sendo esvaziados na medida em que o próprio processo produtivo vai sendo pulverizado e precarizado.

Ainda no tocante à sociabilidade, é preciso mencionar a crescente mercantilização e privatização de todos os espaços públicos. O neoliberalismo, desde sua concepção de Estado mínimo, tem aversão a isso tudo e joga todos os parques, teatros, clubes, espaços de convivência públicos para as mãos da iniciativa privada por meio das privatizações. Não só a sociabilidade da produção vai se dissipando como também qualquer possibilidade de sociabilidade pública passa a ser cerceada pelos muros privatistas.

Por fim, os altos níveis de precarização do trabalho somados ao extremo individualismo neoliberal são terreno fértil para a proliferação de toda ideologia empreendedora, dos coachs às teologias da prosperidade, que simplesmente culpabilizam o indivíduo pelo seu fracasso. O medo da demissão passa a ser o medo se sentir individualmente fracassado, como se demissões fossem única e exclusivamente motivadas por méritos, e não pela própria dinâmica macroeconômica. A precarização da vida, a corrosão da sociabilidade e o extremo individualismo são características do neoliberalismo que custam muito caro para a saúde mental das pessoas.

A queda da URSS e o “mundo possível”

Por fim, mas não menos importante, é preciso mencionar a queda da União Soviética. Não pelo seu impacto objetivo apenas, mas também pelo seu impacto subjetivo. Mark Fisher é feliz ao resgatar o famoso slogan de Margaret Tatcher – “There is no alternative (Não há alternativa) – para explicar como a queda da URSS e a ascensão do individualismo neoliberal criam um componente ideológico derrotista, de resignação e aceitação da tragédia social em que nos encontramos. Se esse é o único mundo possível, o que nos resta é tentar melhorar individualmente a situação. Como diz Zizek e reafirma Fisher: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Somos privados até de sonhar com um mundo diferente.

Portanto, a falta de perspectiva social, a precarização da vida, a corrosão da sociabilidade e o extremo individualismo nos parecem os componentes objetivos e ideológicos do capitalismo contemporâneo – na sua fase neoliberal – que servem de disparadores para a crise de saúde mental em que nos encontramos.

Não nos parece por acaso que assistimos também, pelo menos na América Latina, a ascensão de grupos neopentecostais fundados sob a égide da teologia da prosperidade, sem falar na ascensão de toda sorte de seitas, a começar por alguns grupos bolsonaristas no Brasil. Esses grupos atendem a uma dupla função: ao se apoderarem da totalidade da vida dos fiéis, as igrejas acabam ocupando um espaço vazio deixado pela corrosão neoliberal da sociabilidade. Não se trata apenas de uma crença religiosa, mas de toda uma reestruturação da vida, incluída aí a sociabilidade. Cada vez mais as novas igrejas se parecem com clubes de socialização, desde a infraestrutura até as atividades como shows, teatros, clubes e atividades para todas as dimensões da vida. Ao mesmo tempo em que atendem a uma perspectiva individualista de prosperidade, mesmo que fictícia. Tamanha crise também ajuda a explicar, em partes, o surgimento de mitomanias e a adesão à líderes autoritários e paternalistas, em geral, populistas de direita. O vazio deixado pela destruição neoliberal é ocupado por toda sorte de oportunistas.

Vigilância e dataficação

Mas de volta à concepção biomédica. O que ela tem a ver com o neoliberalismo? Pois bem, o neoliberalismo que tanto criticava a burocratização e a centralização soviética acabou criando, contraditoriamente, uma “burocratização difusa”, digamos. O processo de subsunção real e formal do trabalho ao capital – como descreve Marx – sempre implicou em alguma forma de normatização dos processos da vida cotidiana. Sob o processo industrial de produção, nós passamos a ter hora para acordar, para comer, para se divertir etc. Mas na ânsia de acelerar e aumentar a produtividade, o neoliberalismo acaba metrificando e mensurando todos os aspectos da vida, transformando tudo em dados, o que coloca o processo de normatização do cotidiano em um patamar superior. Um componente ideológico muito fortalecido pela ascensão das bigtechs, plataformização do trabalho e seus métodos de rankeamento, o desenvolvimento de algoritmos e inteligência artificial. Tudo o que é sólido, é transformado em dados. E tudo que é dados é também “metrificável” e metrificado. E na medida em que vão sendo reduzidas à métricas, as coisas vão sendo esvaziadas de sua humanidade.

A vida tem se tornado um “museu de grandes novidades”. Nunca se criou tanta coisa ao mesmo tempo em que o mundo nunca foi tão sem graça. A vida nunca foi tão acelerada sem sair do lugar. Inovação, disrupção ou qualquer outra palavra da moda. A sensação é de que corremos, corremos, e morremos na praia. Aceleramos no vazio de tal maneira que pouco importa a velocidade: nosso entorno é sempre o mesmo apesar dela. Nada disso faz sentido esvaziado de humanidade.

Essa obsessão com a metrificação, mensuração e classificação vai ao encontro direto da concepção biomédica reducionista, que acaba se especializando em produzir diagnósticos – leia-se: mensuração e classificação. Para tudo hoje se produz um diagnóstico que tem, como consequência direta, a medicalização da vida em sua totalidade. Existe uma norma do que é uma vida feliz e saudável (e produtiva, claro) e quem não se encaixar vai ser forçado pela medicalização.

Um parêntesis para uma observação linguística: falamos genericamente em um produto de qualidade. “Um carro de qualidade”, por exemplo. Mas quando se trata de nossas vidas e nosso cotidiano a coisa se inverte: falamos em qualidade de vida. A inversão não é casual. É justamente porque a qualidade – pré-definida e formada a priori – é o produto em si e as vidas que vêm depois é que devem se adequar a essa mercadoria chamada “qualidade de vida”. Não há sob o capitalismo espaço para as vidas se tornarem de qualidade, mas há uma qualidade-produto que pode ser adquirida como mercadoria ou serviço.

Claro que a Big Pharma, enquanto ramo capitalista, se aproveita disso para aumentar as vendas. Aliás, como qualquer outro ramo capitalista, principalmente em tempos de ESG (Environmental, Social and Governance). Mas o boom da “diagnosticalização” tem mais a ver com uma abordagem neoliberal de mensuração de processos do que com o aspecto capitalista da Big Pharma.

Big Pharma e a saída mística

O que não significa que a medicalização seja um problema em si. Vejamos. Somos críticos ao modelo do agronegócio, mas isso não significa que sejamos contra o desenvolvimento tecnológico do campo que busque aumentar a produtividade, a qualidade dos alimentos e a preservação do meio ambiente. Igualmente, a crítica à Big Pharma não pode ser a crítica dos fármacos em si. O avanço da medicina deve-se muito a isso. Vide a importância da produção de vacinas em massa, para ficarmos em um caso recente. O risco que se corre é que com a crítica dos fármacos em si se acabe alimentando ideologias místicas e pseudocientíficas como terapias alternativas e ritualísticas. A crítica da Big Pharma não pode servir de berço para o anticientificismo. Mais uma vez aqui, a erosão provocada pelo capitalismo em sua fase neoliberal vai sendo ocupada por oportunistas, mais especificamente, charlatanismos de todo tipo crescem nas rachaduras das Big Pharma. Muitas vezes as próprias curas milagrosas acabam se convertendo em grandes negócios.

Também não está descartado que parte dos casos de transtorno em saúde mental possam e devam ser tratados com fármacos ou que tenham suas causas principais em aspectos bioquímicos do encéfalo. Nem que os fármacos sejam importantes para o controle de soluções limítrofes e extremas. A crítica à Big Pharma deve centrar-se no problema da mercantilização de uma vida normatizada como solução vendável a uma vida precarizada e com a sociabilidade erodida.

A luta pela saúde mental

Por fim, Viganò esboça um indicativo programático para a questão da saúde mental que se apoia basicamente em

investimentos massivos no cuidado com a saúde mental, sobretudo um grande plano de recrutamento que permita a todos uma terapia personalizada de acordo com as exigências reais. Reivindicamos com isso também, a nacionalização – e assim a gratuidade – dos serviços de psicoterapia, hoje amplamente privados.”

Ora, é um bom começo na medida em que o debate é inicial. Mas a ideia de que psicoterapia seja uma cura, que nos parece estar nas entrelinhas do argumento, sugere ir ao encontro de uma tentativa de normalizar vidas desregradas. Nesse sentido, trata-se de uma redução de danos, um tratamento. Mas saúde mental não é meramente um problema de orçamento nacional.

Claro que as terapias são importantes, ainda mais nos casos em que o sujeito já se encontre adoecido. Mas a terapia não se destina apenas aos adoecidos. É um exercício de autoconhecimento e amadurecimento que é bom e serve para qualquer pessoa em qualquer momento da vida.

Mas se queremos superar de fato o adoecimento mental provocado pelo capitalismo em seu momento neoliberal, melhor do que tratamento e redução de danos, nos parece a prevenção. E no que consistiria uma política de prevenção ao adoecimento mental neoliberal? Na garantia do emprego digno, uma vida estável e na reestruturação da sociabilidade esfarelada pelo capitalismo e, mais rapidamente, por décadas de neoliberalismo. Isso implica não só no acesso aos serviços de saúde, mas também à cultura, ao lazer, ao espaço público, ao tempo livre e a restruturação do próprio processo produtivo. Implica na possibilidade de nos reapropriarmos de nossas próprias vidas, usurpadas pela exploração e alienação. Isso o capitalismo não pode garantir.

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