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segunda-feira, junho 17, 2024

A alienação no capitalismo e os distúrbios mentais

Os distúrbios mentais “comuns” – como são chamados tecnicamente a depressão e os distúrbios de ansiedade – estão em crescimento há cerca de quarenta anos. Os anos de pandemia abriram a caixa de Pandora: hoje não podemos ignorar que o sofrimento psíquico é uma das características que se destacam no capitalismo em decadência. Serpenteia pelas ruas e casas, não encontra acolhimento e respostas na Saúde e se espalha como uma névoa obscura por toda a sociedade: não compreendido, os nomes que a medicina lhe deu foram banalizados, esvaziados de significado, e até mesmo “amenizados”; e assim, às vezes tragicamente faltam, falta um diagnóstico, falta um atendimento específico, falta um caminho para resolver o problema.

Por: Giorgio Viganò*

Capitalismo em decadência

O capitalismo, que ainda hoje, não vê uma saída para a crise iniciada em 2008, é um presente – e um futuro – de precarização, de saltos entre empregos insatisfatórios econômica e intelectualmente, uma longa estrada cansativa que vê cada vez menos perspectivas de realização, ou apenas de simples estabilização, existencial. O pano de fundo é a destruição do ecossistema, a ameaça de novas pandemias, um cenário de guerra mundial cada vez mais real. O capitalismo é ainda a voz do patrão dentro de nós, a voz da competição, da obrigação de realizar-se, de ser “a melhor versão de si mesmo”, como tantas vezes por dia nos recordam as redes sociais nas telas dos nossos celulares.

Mas o capitalismo não cria apenas problemas, cria com eles uma ideologia que o cobre, que nos faz aceitá-lo, e a difunde em cada instrumento de comunicação possível.

Neste caso é a psiquiatria – historicamente configurada como uma das disciplinas intelectuais mais opressoras que o capitalismo já criou – a fornecer o ponto de vista dominante sobre a questão: a concepção de que as doenças mentais são causadas por um “desequilíbrio químico”; concepção saída progressivamente das salas universitárias e agora permeada pelo senso comum popular.

 Uma história recente

As descobertas científicas relativas a essas condições começam a ganhar espaço entre os fins dos anos 1950 e início dos anos 1960, com uma forte aceleração após o desenvolvimento dos primeiros fármacos antidepressivos.

No passado não era assim, ao contrário, a depressão era uma doença raramente diagnosticada: até os anos 1980, com a publicação da terceira edição do DSM (o manual que classifica e guia o diagnóstico das doenças psiquiátricas), ela não existia como doença e apenas há algumas décadas o termo viria a ser usado para definir uma vaga constelação de sintomas.

Com relação aos sedativos como o álcool e os opiáceos, usados para a ansiedade, mas também e, sobretudo, para sedar breves momentos de agitação, para o sono ou para divertimento, os antidepressivos surgem quase por acaso da pesquisa por um remédio contra a tuberculose nos anos 1950: observou-se que os pacientes tratados com o antibiótico tinham picos de humor e começaram a experimentar derivados e afins para a depressão. Por volta dos anos 60 alguns estudiosos teorizaram que o mecanismo de ação antidepressivo seria o aumento dos níveis de serotonina, uma pequena molécula com numerosas funções em nosso corpo. Nos anos setenta e oitenta estudam os fármacos indicados para esse propósito. Mas o contexto e a metodologia com os quais se experimentavam esses remédios era aquele dos hospitais psiquiátricos, fortemente autoritários, cujas empresas farmacêuticas tinham começado a colaborar estreitamente com os psiquiatras nos estudos e nos quais se afirmou uma definição circular da doença: deprimido é quem responde aos antidepressivos.

Florescem desse modo os estudos para a demonstração da “teoria da serotonina”, que na realidade, se ampliam paulatinamente a muitas outras moléculas, cada vez mais interconectadas, na tentativa utópica de representar a depressão – todos os deprimidos – como um fato puramente biológico. Uma onda de artigos, mas permanece um problema: a depressão cresce continuamente e os fármacos – sem muitas inovações com relação àquelas citadas anteriormente – têm resultados modestos. Os estudos experimentais das duas últimas décadas concordam agora em dizer que, ainda que se queira vislumbrar o efeito terapêutico claro para além do placebo, isso é muito pequeno. Em julho saiu na Molecular Psychiatry, do grupo Nature (a publicação com maior autoridade do mundo científico), um estudo bem abrangente sobre evidencias da “teoria da serotonina”: têm refutado muito dos argumentos biológicos com os quais se demonstrou a causalidade de baixos níveis de serotonina na depressão e o balanço é simplesmente nulo, com alguns resultados inclusive contraditórios.

O reducionismo, ideologia reacionária

O artigo citado parece ter dado um salto na consciência dos comentadores desse tema. Desperdiçou-se artigos a esse respeito que parecem decretar, com as oportunas distinções, que a “teoria da serotonina” morreu, e com ela a “teoria do desequilíbrio químico”.

Colocar isso em discussão, ainda que no momento apenas em âmbito acadêmico, é positivo. O reducionismo científico tem a consciência de muita gente: alguns estudos clínicos tem inclusive demonstrado que uma explicação biológica mecânica à própria doença, tem um impacto negativo sobre os prognósticos dos pacientes. A “teoria do desequilíbrio químico” admite que existam apenas os indivíduos, que os indivíduos adoecem por motivos em última análise endógenas, por causa de uma biologia particular, toda fechada em si mesma, toda direcionada pela causalidade acuradamente circunscrita ao interior do próprio organismo individual: uma condenação rigorosamente religiosa que devora toda a vida. O ministério da saúde propagandeia o slogan “Cura-se” nos anúncios, mas o que diz a medicina nos ambulatórios, quando você consegue chegar, é que não se recupera: se trata com terapias farmacológicas quase sempre ininterruptamente, mas não se recupera. A medicalização do sofrimento é uma outra forma de individualismo burguês que joga o peso das responsabilidades de um sistema em crise sobre os mais fracos.

No entanto, a discussão acadêmica não desestabilizará de modo algum o sistema de tratamento psiquiátrico, que se baseia em um negócio bilionário entre as multinacionais da indústria farmacêutica e os Estados Nacionais: os gastos do sistema de saúde nacional são, além de um tributo devido a grupos industriais poderosíssimos, um atalho em relação aos investimentos em recrutamento e obras públicas necessárias. Uma relação ambígua que se articula com os assédios dos representantes farmacêuticos na relação com os médicos, assim como na Educação Contínua Médica, periodicamente obrigatória para os trabalhadores da saúde e frequentemente ministrada pelos representantes das empresas.

As soluções reformistas colocadas em movimento na Inglaterra desde 2007 com o plano IAPT (Improving Acces to Psychological Therapies) são absolutamente ilusórias. Este plano colocou em evidência o desequilíbrio insensato entre terapias farmacológicas e não farmacológicas. Quase 90% das depressões são tratadas com remédios, mesmo que não haja prova da superioridade geral dos fármacos com relação à psicoterapia, mas em 2020 75% de quem teve consultas nesse programa se declaroraram insatisfeitos com a utilização desse serviço: é simplesmente impossível gerir a massa dos pacientes com os fundos destinados por qualquer país à saúde pública. Tanto é assim que um dos tantos corolários que entraram recentemente no senso comum é o de que, no fundo, estamos todos doentes: por isso, ninguém (ou quase) está doente, do ponto de vista dos direitos.

A luta contra o sofrimento mental é uma luta de classe

A reivindicação por tratamentos apropriados expõe a clara incapacidade do Estado Burguês de garantir uma vida livre e feliz.

O tema do sofrimento psicológico vive um jogo de força no interior da luta da classe e não pode mais ser negligenciado, ao contrário, pode encontrar um fio de esperança apenas no seu interior.

Reivindicamos investimentos massivos no cuidado com a saúde mental, sobretudo um grande plano de recrutamento que permita a todos uma terapia personalizada de acordo com as exigências reais. Reivindicamos com isso também, a nacionalização – e assim a gratuidade – dos serviços de psicoterapia, hoje amplamente privados. Reivindicamos tudo isso e defendemos que outras reivindicações surjam das mobilizações deste outono e inverno, mas é bom saber que essas reivindicações parciais são tratamentos para os sintomas, parciais: devemos agir sobre as bases profundas, estruturais, desse sofrimento e apenas a destruição revolucionária do capitalismo poderá oferecer as condições para libertar o ser humano das cadeias da doença mental.

*Estudante de medicina

Tradução: Nívia Leão.

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