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sexta-feira, maio 17, 2024

Entrevista com Ludmila, operária em Arcelor Mittal em Kryvyi Rih

Entrevista realizada antes do agravamento dos cortes de luz, gás, água e internet em 25 de dezembro de 2022

Publicamos esta entrevista com a companheira Ludmila, operária em Arcelor Mittal em Kryvyi Rih e membro do sindicato mineiro que está participando da campanha de solidariedade com a resistência ucraniana. Esta entrevista foi realizada há duas semanas, antes que os cortes de luz, gás, água e internet se agravassem e paralisassem ainda mais.

Florence – Para nós esta campanha de solidariedade internacional com a resistência operária ucraniana agora é, e continua sendo, extremamente importante. Aqui nos Estados Unidos e muitos outros países temos arrecadado fundos entre outros setores dos trabalhadores industriais para prestar solidariedade direta com os trabalhadores na Ucrânia. Poderia falar primeiro sobre como a guerra está afetando as mulheres na mina, no local de trabalho?

Ludmila–Neste momento, na fábrica e na mina uma proporção muito importante de mulheres estão paradas, em lay off, em casa, recebendo nominalmente dois terços do salário. A maior parte dos homens está na frente de batalha, e a maior parte das mulheres em casa, com menos salário. No meu caso, estou temporariamente trabalhando, mas de janeiro até março estaremos paradas outra vez. Tenho minha irmã e meu irmão nas minas, eu estou na fábrica. Na mina estão trabalhando oito turnos no mês, ou seja, também é um trabalho muito mais reduzido. E não há só suspensões, mas quando estamos gtrabalhando, por culpa dos bombardeios, de repente a luz é cortada e apaga-se tudo, e ficamos nas minas e nas fábricas em total escuridão. A produção é interrompida e situações perigosas são geradas porque os cortes são imprevisíveis. Tudo isso torna muito pesado levar o trabalho na produção adiante e coloca em risco nossa segurança.

Florence Quando fizemos o primeiro envio de solidariedade que mandamos com o sindicato, soubemos que uma parte dos fundos foram usados para comprar tasers (arma de eletrochoque, ndt.) para a autodefesa das mulheres. Poderia nos explicar por que é importante que as mulheres possam ter o direito à autodefesa e sobre o cotidiano das mulheres em situação de guerra?

Ludmila –O que acontece é o seguinte: as fábricas estão em territórios extensos, e como há menos pessoas por causa da guerra, e como a produção está semi paralisada, e estamos trabalhando em horários noturnos, e além disso com uma situação de desemprego em torno de 30% da população, enfrentamos uma decomposição social e muita delinquência.  Estamos em um contexto onde há pessoas deslocadas que chegam de outras cidades, e são desconhecidas. Não se sabe como, de repente, no território das fábricas, no horário noturno, aparecem uns caras que, com certeza, entram para roubar alguma coisa, para levar alguma coisa, pois há metal, há coisas que podem ter um valor para a revenda no mercado negro, e então, aparecem de repente, do nada, e com certeza isso gera medo e uma situação de tensão, de poder defender-se.

Onde vivo e trabalho é uma cidade operária, mas há muitas pessoas que chegam, que são de outra característica, são muito insolentes, ou cara de pau, diríamos. Há setores lúmpens, que estão envolvidos em outras atividades. Então, ocorre uma situação difícil, desconhecidos, pessoas que têm um comportamento muito agressivo e então é importante para nós termos os tasers.

Florence – E como estão as coisas na sua fábrica e na mina? Sabemos que na Arcelor Mittal há 12 sindicatos para 14.000 operários e desses 12 sindicatos há apenas um independente, que defende as operárias, que têm uma quantidade de filiados mínima. O resto são sindicatos da empresa, sindicatos pelegos.

Ludmila –Temos uma guerra interna com a empresa, e isso acontece porque nos mandam para casa, com a suspensão da produção, com dois terços [do salário]. Sabem o que isso significa? Significa 150 dólares por mês de salário, menos, 120. Esses 120 dólares representam 5.000 grivnas, entendem? Então, isso coloca as pessoas na defensiva, e  não só pela guerra, mas pela guerra com a empresa, com este tipo de empresas que alegam falta de produção com o argumento da guerra…Temos, pelo menos, 300 companheiros filiados na fábrica que são da empresa, depois tem os terceirizados, que são em torno de 150 mais, no total; para uma fábrica que tem, da empresa, 9.000, e do resto, até 14.000. Na fábrica e na mina seriam 400 no total. Na fábrica, metade são mulheres, ou seja, dos 9.000 da empresa, 4.500 são mulheres; na mina são muito menos, mais ou menos 10%, calculo. Mas, são 50 e 50 na fábrica.

Florence – Poderia nos falar do papel que as mulheres estão assumindo na resistência contra a invasão russa?

Ludmila – A respeito ao meu contato direto com companheiras que são voluntárias, da minha área de trabalho, ou seja, da mesma brigada de trabalho, da equipe de trabalho, tenho uma companheira que se alistou como voluntária para ir para a frente de batalha, porém não a chamaram. Em geral, isso acontece. Eu vi isso também, que não estão recrutando, apesar de haver muitas que estão alistadas como voluntárias. Do nosso sindicato há algumas mulheres na frente de batalha, embora a maioria sejam homens. No nosso sindicato há em torno de 10% dos filiados que estão na frente.

As mulheres também se organizam para garantir a alimentação dos que estão nas trincheiras, ou seja, preparar ajuda humanitária com o que é recebido. Preparam para levar porções para a frente de batalha, de determinadas comidas que são muito apreciadas, como o famoso varéniki, que é a comida tradicional e mais apreciada por qualquer ucraniano, ficam muito felizes quando chega até eles um pouquinho de varéniki na trincheira.

Hoje, o trabalho das mulheres de ajuda para a frente é organizado de duas formas: como começou o frio muito forte e as pessoas começaram a adoecer, há oficinas nas cidades que são organizadas por empresas auto-organizadas ou cooperativas, para costurar roupas de camuflagem para a frente. Nas trincheiras também há pessoas que não estão feridas mas doentes, o que tem a ver com as doenças do frio acima de tudo, e estão enviando medicamentos. As companheiras se organizam, para juntar medicamentos e enviá-los como ajuda humanitária para a frente. E também nos hospitais onde estão os feridos, para atendimento, porque o que o próprio hospital oferece não é o suficiente, como alimentação e roupa para que possam trocar e assim por diante.

Erika – Gostaria de perguntar, mas, primeiro, queria me solidarizar com Ludmila. É muito triste saber que vocês estão no meio de uma guerra, de uma invasão como esta, e o sofrimento que deve ser para o conjunto da população e em especial para as mulheres. Sabemos que no dia a dia já existe sempre a questão da dupla jornada, a sobrecarga doméstica para as mulheres. Como isso se intensifica no contexto da guerra? Como estão sendo para as mulheres as consequências da guerra do ponto de vista do cuidado da família, do cuidado dos filhos, se os serviços ainda estão funcionando, as creches, as escolas?

Ludmila – A respeito da questão das crianças, a ajuda humanitária dos comboios que vocês enviaram incluía “Pumpers” – fraldas descartáveis, uma grande marca de fraldas descartáveis – porque aqui não havia, há déficit. E nós, as filiadas ao sindicato, distribuímos isso, e as companheiras muito agradecidas nos diziam: Bem, quanto te devo, quanto é? Não nada, é ajuda solidária de outras companheiras! Oh! [respondiam], surpreendidas de que alguma coisa pudesse ser grátis nesta situação onde cobram tudo, até os uniformes dos soldados. Há negócios da guerra, também. E então, o sindicato, com esta ajuda, mostrou uma utilidade para a necessidade das mães que têm filhos.  Spaziba, spaziba (obrigada, obrigada), minha querida!, diziam. Todas as companheiras transmitem a vocês, a todos os que organizaram o comboio, um enorme agradecimento, muito grande, das companheiras de base. Eu, por exemplo, tenho minha mãe doente, e recebi a nível da cidade uma pequena ajuda humanitária que distribuíram. Agora está muito mais pesado porque com os bombardeios estão cortando a água a cada quatro horas, então temos que juntar a água; a luz é cortada, e se torna muito mais pesado organizar a vida da casa e da família. Minha mãe vive comigo e, então, tenho que atendê-la. Minha mãe tem 74 anos e não sai de casa, está em uma situação de grande dependência e alguém tem que vir permanentemente para ajudar. Também há um problema muito grande com as crianças que estão em casa e não estão podendo ir à escola. Há muitos problemas com a educação, porque as crianças querem ir à escola, porém, com os bombardeios não é possível…

Marisa – Aqui no Brasil temos conhecimento dessa guerra absurda que ocorre aí na Ucrânia, que a Rússia invadiu a Ucrânia, e algumas notícias que chegaram aqui e gostaria que comentasse, sobre a violência contra as mulheres na guerra, porque temos um exemplo aqui – que não era bem uma guerra, mas era como se fosse, uma guerra contra os pobres -, na qual o Brasil invadiu o Haiti para garantir (entre aspas) “a paz no Haiti” e houve mais de 2.000 denúncias de estupro de mulheres no Haiti, e sabemos que essa prática é uma tática de guerra, uma tática militar, a violência contra as mulheres. Queria saber se na Ucrânia tem sido assim, se essa prática é também de violência contra as mulheres aí.

Ludmila – Isso é verdade. Isso da estupro e do abuso como arma de guerra é absolutamente verdadeiro; isso existe e sabemos [disso]. Aqui não é uma zona ocupada pelas tropas, mas também é uma situação muito tensa para nós sair de casa, devido à escuridão que há. Além disso, no inverno há uma escuridão muito mais prolongada aqui, e agora há cortes de luz, e as acendem um pouco às 5 da manhã, porque é o movimento das pessoas para sair para o trabalho e depois novamente a cortam. E é isso, mais ou menos. Eu sempre digo: não abra a ninguém, fecho tudo, saio com meu spray, com meu taser, como garantia, mas realmente é a escuridão e uma situação de tensão que a gente vive até chegar ao trabalho e, como lhes expliquei, no trabalho também há essa sensação de vulnerabilidade. E há muitas pessoas adictas, não só alcóolatras, mas também dependentes de drogas de todo tipo. Entre os ocupantes russos também há muitos que se drogam e não estão em seu juízo normal.

Florence Muito obrigada Ludmila, vamos continuar a campanha de solidariedade operária com a classe trabalhadora ucraniana. A solidariedade material é hoje mais importante do que nunca, com a chegada do inverno e os efeitos destrutivos dos bombardeios sobre a infraestrutura de água e energia na Ucrânia.

Ludmila – A única coisa que lhes digo meninas, é que lhes agradeço muito, muitíssimo, toda esta campanha de solidariedade que estão fazendo, e que nos reforça muito aqui. Também compartilho com vocês que espero ansiosamente o momento em que a guerra termine e que possamos nos encontrar em tempos de paz e possamos continuar a discutir estas questões.

Créditos da imagem: Katya Gritseva

Tradução: Lilian Enck

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