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China

O despertar do proletariado chinês?

dezembro 20, 2022

Às vésperas do congresso do partido comunista, na manhã do dia 13 de outubro, Peng Zaizhou, cujo nome real é Peng Lifa, um trabalhador da área de tecnologia, estendeu duas faixas com reivindicações na ponte Sitong em Pequim, nas quais se lia:

“Queremos comida, não testes PCR! Queremos liberdade, não lockdowns! Queremos reforma, não uma revolução cultural! Queremos voto, não um líder! Queremos ser cidadãos, não escravos! Boicotes estudantis e greves para derrubar o ditador traidor Xi Jinping! 16 de outubro – Dia de Protesto!”

Por: Fábio Bosco

Algumas horas antes deste protesto, ele postou um manifesto de 23 páginas num site acadêmico defendendo que a China deveria ser livre e democrática e que os chineses deveriam impedir Xi Jinping de obter um terceiro mandato. Para isso seria necessária uma revolução colorida pacífica e popular para impor a democracia dentro do partido comunista permitindo a eleição livre de seus dirigentes, o sufrágio universal no país, limitação de poderes governamentais, liberdade de organização partidária, transparência dos bens dos dirigentes e proteção à economia de mercado. Ou seja, uma combinação de ideais democráticos e liberais, mas com um interessante chamado à mobilização operária e popular para conquistá-los.

Como acontece com todo dissidente, Peng Zaizhou foi preso e seu paradeiro é desconhecido. Mas seu programa democrático e seu chamado à ação de massas encontraram eco na classe trabalhadora chinesa, em particular na juventude, esgotada pela ditadura e sua política de Covid Zero e desesperançados pela queda do crescimento econômico e pela falta de perspectiva de dias melhores.

Ele ganhou a alcunha de “homem ponte” e há uma campanha em curso por sua libertação.

Mesmo antes da ação do “homem ponte”, a enorme insatisfação contra a ditadura e a situação econômica já havia se expressado na revolta contra a política de Covid Zero em Haizhou, um distrito industrial nas cercanias de Cantão, nas mídias sociais com casos de crianças que morreram impedidas de chegar a um hospital pelos “lockdowns”, e mesmo pela resistência passiva da juventude contra as jornadas de trabalho extenuantes 996 (das 9h da manhã às 9h da noite, seis dias por semana). (I)

Depois do “homem ponte”, houve uma semana de protestos multifacetados em várias cidades entre 22 e 27 de novembro, considerados os maiores desde o massacre da praça da paz celestial (Tiananmen) em 1989, sendo que em alguns dos quais se gritou “Liberdade ou Morte” (palavra de ordem de Tiananmen) e na Universidade Tsinghua em Pequim foi cantada a Internacional.  (II)

A ditadura chinesa seguiu o modus operandi tradicional: concessões para a massa através da flexibilização da política de Covid Zero (III) e repressão/prisão da vanguarda. Esta política desencadeou, na semana seguinte, vários protestos da diáspora chinesa que vive no exterior. O maior foi em frente ao consulado chinês de Nova Iorque onde mil pessoas fizeram uma vigília. Também houve protestos em Londres, Toronto, Tóquio, Hong Kong, Taipei, e várias universidade como Yale, Stanford e Oxford. (IV)

No dia 10 dezembro, houve novos protestos no exterior, desta vez chamados por setores de esquerda contrários à ditadura chinesa. Eles organizaram atos em frente às lojas da Apple em Nova Iorque, Seattle, Cupertino, Londres, Nottingham, Sydney e Tóquio para protestar contra as condições aviltantes de trabalho no complexo industrial da FoxConn em Zhenzhou na China e contra a ditadura chinesa. (V) Revolucionários brasileiros enviaram fotos em apoio aos protestos. (VI)

A política de Covid Zero

Esta é a principal política do regime chinês de enfrentamento à pandemia. Ela consiste em reiterada testagem em massa da população e, em caso de teste positivo, na imposição de lockdown total, e no isolamento das pessoas contaminadas em centros de detenção sem acesso regular a alimentos e remédios. Em alguns complexos industriais, a política de Covid Zero se expressou através do “closed-loop” (circuito fechado em português) na qual os trabalhadores passavam a viver no local de trabalho sem qualquer contato físico com o exterior e, se algum trabalhador testar positivo, isolamento dele e de seus colegas em condições aviltantes.

A julgar pelo número de mortes em decorrência da Covid, apenas 5 mil, a política de Covid Zero é um sucesso. Mas este sucesso esconde uma série de fracassos. O primeiro deles tem a ver com a qualidade das vacinas chinesas cuja eficácia é inferior às vacinas mais modernas produzidas no exterior. A única vacina similar produzida na China é totalmente destinada à exportação para a Indonésia. O segundo é a não obrigatoriedade de tomar vacina. A adesão entre idosos é particularmente baixa. O terceiro é a baixa oferta de leitos em UTI, cerca de um terço do preconizado pela OMS (10 leitos em UTI para 100 mil habitantes). O quarto é a baixa imunidade coletiva já que grande parte da população nunca teve contato com qualquer vírus Covid. Nesta situação, o fim da política de Covid Zero tem que ser precedida da produção em massa de vacinas eficientes, campanhas de vacinação compulsória e triplicação do número de leitos em UTI, medidas que podem ser efetivadas em pouco espaço de tempo se houver o investimento público necessário.

Mas há outros fatores por trás da política de Covid Zero. Um deles é que a pandemia possibilitou ao regime chinês implementar um sistema de vigilância e controle social sobre toda a população, e o fim da política de Covid Zero abrirá espaço para protestos contra a manutenção desse sistema de controle social. Há também setores da burguesia comercial que têm lucrado muitíssimo com o provimento de alimentos básicos para a população confinada.

Rumo a um novo Tiananmen?

Os protestos da juventude em várias cidades e universidades chinesas, a movimentação do proletariado industrial, e as manifestações de nacionalidades oprimidas como os Uigures apontam para um despertar dos explorados e oprimidos chineses empurrados pela desaceleração econômica e pelas políticas ditatoriais do regime chinês, entre as quais se destaca a de Covid Zero. (VII)

Esse despertar enfrenta um inimigo poderoso: o capitalismo e a ditadura chinesa que atuam para suprimir qualquer forma de dissidência ou organização alternativa como já fizeram em Hong Kong.

Em Hong Kong houve um levante de “dois milhões de pessoas pelo sufrágio universal e pela defesa da autonomia de Hong Kong. A heroica luta do povo de Hong Kong, liderada pela juventude, foi derrotada. Pequim impôs sua Lei de Segurança Nacional, enterrou a autonomia e não apenas acabou com a oposição liberal, mas com todas as oposições e muitos sindicatos anteriormente fortes, impondo uma agenda de censura e controle de pensamento. A fim de nos posicionarmos corretamente não apenas sobre Hong Kong ou Taiwan, mas também sobre a disputa entre Estados Unidos e China, precisamos discutir a natureza do Estado chinês: a China não adota apenas o capitalismo, mas também um capitalismo Orwelliano, ainda pior que o capitalismo liberal. Como socialistas, escolher o mal menor não é nosso objetivo programático.” (Au Loong-Yu, marxista chinês no prefácio à edição brasileira de Hong Kong em revolta. A batalha nas ruas e o futuro da China).

No levante democrático de Hong Kong (2019-2021) havia limitações objetivas – a principal delas reside na desigual correlação de forças entre uma cidade sublevada e um Estado nacional – e subjetivas: a perspectiva política dos setores “localistas” impediu a construção de solidariedade com a classe operária e a juventude da China continental, aliados necessários para romper com o isolamento de Hong Kong. Por outro lado, a hegemonia política da oposição liberal criou ilusões no imperialismo (que fala em democracia, mas trabalha pela manutenção do status quo) e impediu uma política socialista o que alienou setores da classe trabalhadora e dos pobres em HK e em toda a China.

Para fazer frente à ditadura capitalista chinesa, é necessária a mobilização da classe operária e dos setores oprimidos dentro de uma perspectiva socialista e internacionalista. Para sustentar essa mobilização de forma coordenada, são necessárias organizações nacionais e uma plataforma que una a luta contra a ditadura, por liberdades democráticas, com a luta contra o capitalismo.

Se o despertar do proletariado chinês prosseguir, existe o potencial de levantes com grande participação da classe operária em nível nacional, mais semelhantes à segunda revolução chinesa (1925-1927) que à Tiananmen. Um levante dessa qualidade social com uma política socialista e internacionalista pode se constituir em uma quarta revolução chinesa, com impacto em todo o globo. Para isso é necessária a formação de um partido revolucionário, marxista e internacionalista em toda a China.

Notas:

(I) A rejeição à competição desmedida, ao trabalho extenuante e à imobilidade social levou à filosofia de vida Tang Ping (“Lie flat” em inglês que significa ater-se ao básico) e

Bai Lan (“Let it rot” ou deixar declinar) adotada por uma minoria crescente de jovens nas universidades e empresas. https://www.channelnewsasia.com/cna-insider/996-bai-lan-china-youths-workers-rot-work-slacker-2917476

(II) https://litci.org/pt/2022/11/28/protestos-operarios-e-populares-desafiam-a-ditadura-na-china/

(III) https://litci.org/pt/2022/12/12/ditadura-chinesa-retrocede-em-sua-politica-de-combate-a-covid-19/ 

(IV) https://www.washingtonpost.com/world/2022/11/28/china-protests-global-solidarity-vigils/

(V) https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid02SRwsZWQ7z2wr4mdNc4Eta8A77sjgAKu2CTcjVoXbrqYcVwrH5SUwQXvowq3f7xv6l&id=100063999131725

(VI) https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=pfbid0zobYijBFCAvKHQRhYP9rajC51jZ11knwPcvGLNdv81z2Mkuf2dv2rVBq417HDvTzl&id=100063999131725

(VII) ¿Adónde va China? – Alejandro Iturbe

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