qua maio 15, 2024
quarta-feira, maio 15, 2024

A China vive dias turbulentos de desafio ao governo

Protestos contra confinamentos forçados e contra o governo espalham-se pela China após incêndio que matou 10 pessoas em Urumqi.

Por Marcos Margarido

O incêndio começou no 15º andar de um prédio de apartamentos na capital da região autônoma Uigur de Xinjiang, no extremo oeste da China. A região é palco de lutas pela independência, protagonizadas pelos uigures, que preferem chamá-la de Turquestão Oriental ou Uiguristão. A demora dos bombeiros para apagar o fogo levou a população a relacioná-la com as dificuldades criadas pelas inúmeras barreiras instaladas nas ruas para controlar a passagem das pessoas em regiões sob confinamento devido à pandemia de COVID e também à possibilidade de as vítimas estarem trancadas em suas casas.

Apesar das negativas oficiais, tais comentários inundaram as redes sociais e os moradores tomaram as ruas da cidade para protestar, que depois alcançaram cidades importantes como Xangai e Pequim. E isso é totalmente compreensível. Depois de quase três anos de restrições, a experiência de ficar em quarentena em casa, com portas trancadas, ou até soldadas, e saídas de emergência de edifícios bloqueadas, é comum a muitos chineses por todo o país.

No fim de semana de 26-27 de novembro, milhares se reuniram com velas e flores para homenagear as vítimas do incêndio em locais preparados como altares, que eram anunciados pelas redes sociais, muitas vezes de forma dissimulada para tentar enganar a repressão policial, como a pergunta: “Alguém está planejando sair para um passeio mais tarde?” Nas universidades, os estudantes organizaram vigílias, onde seguravam pedaços de papel branco, como um protesto contra a falta das liberdades de expressão e de imprensa. Essa foi, também, uma forma de identificar se as pessoas reunidas eram manifestantes ou policiais à paisana.

Protesto em universidade. As imagens com manifestantes segurando folhas de papel em branco viralizaram pelo mundo.

De Xangai a Pequim

Os protestos atingiram várias cidades, como Korla e Urumqi (Xinjiang), Lanzhou, capital da província de Gansu (oeste do país), Nanquim, capital da província de Jiangsu (leste), Hancheu, capital da província de Chequião (leste, a sudeste de Xangai), Wuhan, capital da província de Hubei (China central), Chengdu, capital da província de Sichuan (sudoeste), Cantão, capital da província de Cantão (ou Guangdong, sudeste da China), Xangai, município de administração autônoma (25 milhões de habitantes, a mais populosa do país, ao leste) e Pequim, capital do país (nordeste).

Cidades onde foram registrados protestos.

Xangai foi, provavelmente, a cidade onde os protestos foram mais radicalizados politicamente. Enquanto, as palavras de ordem dos manifestantes giravam em torno às restrições devido à política de combate à pandemia, como “Não aos testes PCR, queremos liberdade” ou  ‘Não aos códigos de saúde”, os manifestantes foram além em Xangai e pediam que o Partido Comunista e seu líder, Xi Jinping, entregassem o poder. A vigília na rua Urimqi, nome da cidade onde ocorreu o incêndio, transformou-se em protesto de centenas de pessoas que diziam “Fora!” quando alguém gritava “Xi Jinping!”. 

Em outras cidades, como Wuhan, a cidade onde a pandemia teve origem no final de 2019, centenas derrubaram as barreiras que haviam sido colocadas para impedir a movimentação das pessoas durante os confinamentos.

Na Universidade de Tsinghua, no noroeste de Pequim, onde os estudantes foram proibidos de sair durante semanas devido às restrições da Covid, a manifestação exigia “Democracia e Estado de Direito” e “Liberdade de expressão”. Para impedir que os protestos aumentassem, a reitoria da Universidade anunciou que ofereceria viagens aéreas e ferroviárias gratuitas para que os estudantes fossem passar as férias do Ano Novo Lunar em casa, mas com grande antecipação, pois o feriado será em 22 de janeiro de 2023.

Em Pequim também ocorreu um protesto na noite de domingo, mas de menor dimensão, com cerca de 100 pessoas, que se reuniram para acender velas e segurar folhas de papel branco.

Protesto em Pequim à beira do rio Liangma.

Repressão seletiva

Até segunda-feira, dia 28, o governo ainda não tinha se manifestado sobre os protestos, que aconteceram apenas um mês depois da realização do 20º Congresso do Partido Comunista da China, que garantiu a Xi Jinping a continuidade de seu poder ditatorial, que já durava 10 anos, com a nomeação de pessoas de sua absoluta confiança para os postos-chave do partido.

Durante seus dois mandatos, Jinping prendeu dissidentes, colocou empresários acusados de corrupção na cadeia, censurou as redes sociais, e proibiu o funcionamento de grupos independentes de direitos humanos. Mas, principalmente, identificou e eliminou, de diversas formas, os líderes de protestos de trabalhadores, camponeses, e outros profissionais, que lutavam contra pagamentos atrasados, a perda de empregos, ou a perda de terras.

Como sempre acontece quando há manifestações de massas na China, a polícia observa e fotografa todos os que consideram ser líderes, os órgãos de vigilância rastreiam e censuram as redes sociais para identificar os possíveis organizadores, apagam fotos e filmagens dos protestos para, então, exercer uma repressão seletiva, em silêncio, onde as pessoas atingidas nunca vão a julgamento por alguma falta cometida, mesmo que hipotética.

A grande dúvida, inclusive do governo, é se as manifestações vão continuar. Afinal, a pandemia não pode ser reprimida pela força da polícia e, se as restrições continuarem, bem como o aumento das infecções e mortes que já está ocorrendo, a raiva acumulada contra a política burocrática e ditatorial de combate à COVID, baseada em confinamentos sem nenhuma discussão com a população; em delações de vizinhos, supostamente com a doença, por membros do partido; em fechamento dos negócios locais, sem nenhuma compensação financeira aos pequenos proprietários; podem levar a novas e mais amplas manifestações.

Mas a política de combate à pandemia não é o único motivo dos protestos, embora seja o mais aparente. Os efeitos dessa política, como a falência de pequenos negócios, as demissões, a falta de alimentos, combinam-se com a redução do crescimento da economia, aprofundada pelas medidas de restrição em vigor, inclusive no setor de tecnologia, gerando demissões em massa, atrasos de pagamentos e todos os males de uma crise econômica em um país capitalista, sob o governo da ditadura de um partido que de comunista só tem o nome.

A crise econômica e a pandemia

Na maioria dos países, a pandemia causou uma redução do crescimento econômico. Na China não foi diferente. Depois de uma queda do PIB para 2,2% em 2020, ocorreu um forte crescimento em 2021, para 8,1%, apenas para registrar nova queda de crescimento para 3,2% em 2022, que pode ser ainda menor devido à queda acentuada da atividade econômica no último trimestre do ano, que ainda não foi computada.

Na verdade, o crescimento do PIB para 8,1% foi apenas um respiro em meio a uma tendência de queda geral do PIB que já vinha ocorrendo antes do início da pandemia, causada principalmente pela redução de investimentos na economia produtiva (todo o investimento ia para o mercado financeiro), devido à queda da lucratividade na chamada economia real.

A China, por exemplo, passou de taxas de crescimento de 10% em média por toda uma década, chegando a 14,2% em 2007, para experimentar um crescimento abaixo de 7% a partir de 2015 que, embora bem acima da média mundial, é insuficiente para sustentar as necessidades da economia chinesa, baseada em investimentos externos diretos e na exportação intensiva.

Apenas o chamado setor big tech (empresas de alta tecnologia, como as 5 maiores: Amazon, Google, Facebook, Microsoft e Apple) teve um crescimento sustentado nestes últimos anos, mas agora também enfrenta uma crise econômica – ainda inexplicável para os economistas burgueses. Houve uma queda de lucratividade de 50% nos últimos 5 anos, uma queda da bolsa NASDAQ de 30% no último ano e à demissão de mais de 45 mil trabalhadores neste período. Apenas a Alphabet (Google), Amazon, Apple e Microsoft perderam juntas US$ 2 trilhões em valor de mercado no último ano.

Esta situação também afeta a China, cujo setor de alta tecnologia é formado principalmente por multinacionais, como as mencionadas acima, que deslocam sua produção para aproveitar o preço mais baixo da força de trabalho chinesa. Este setor está promovendo demissões devido à queda de produção, algo impensável há alguns anos. Mas também está, simultaneamente, e com a colaboração do governo, aumentando o ritmo de trabalho dos que ficam empregados, mesmo durante as restrições da pandemia.

O governo chinês arrumou uma solução simples para o problema. Quando é detectado uma infecção em uma fábrica, ela é submetida a confinamento, com todos os empregados dentro, e proibidos de deixar o local, inclusive os infectados, que continuam trabalhando normalmente. Foi o que aconteceu em uma fábrica da Foxconn em Zhengzhou, província de Honã, na semana anterior aos protestos relatados.

Rebelião na Foxconn

Segue um relato baseado no site do China Labour Bulletin (clb.org.hk). O crescimento dos casos de COVID em Zhengzhou (12,5 milhões de habitantes, na China central), onde a fábrica da Foxconn está instalada, levou a empresa a aplicar um confinamento em 13 de outubro, com todos os empregados proibidos de sair, a não ser para seus dormitórios, que ficam na própria fábrica. O objetivo era manter a produção do iPhone 14 neste período de pico de produção.

São realizados testes repetidamente, mas mesmo os empregados infectados são obrigados a continuar trabalhando. Os trabalhadores expressam a vontade de deixar a fábrica a partir de 28 de outubro, mas não conseguem utilizar o transporte coletivo, devido às restrições do confinamento. Na verdade, são mantidos em cárcere privado, em situação análoga à escravidão. Mesmo assim, milhares resolvem fugir a pé, no que são ajudados por trabalhadores das fazendas próximas.

Após a fuga, a Foxconn anuncia a retomada gradual da produção (e também um atraso na entrega das encomendas). Para isso, promete pagar um bônus diário de 400 yuan para os que ficarem, além de um bônus de 15.000 yuan para quem não faltar ao trabalho durante o mês de novembro. O governo de Henan aprova as medidas e lança uma campanha de recrutamento. Atraídos pelos bônus, cerca de 100 mil trabalhadores se apresentam.

https://www.facebook.com/litci.cuartainternacional/videos/1205603599992578
Protestos na Foxconn

No entanto, a política de confinamento forçado e de trabalhar infectado continua e o pagamento do bônus não ocorre como prometido, levando os trabalhadores a se revoltarem em 23 de novembro. São feitas filmagens que mostram os trabalhadores entrarem em choque com a polícia usando roupas brancas de proteção contra a COVID, que dispara granadas de gás lacrimogênio, canhões de água e promove a repressão física, causando feridos e fazendo prisões.

Para acabar com os protestos, a fábrica promete uma indenização de 10 mil yuan para quem pedisse demissão.

Esta é a forma utilizada pelo governo capitalista da China para apoiar a produção das multinacionais a qualquer custo, isto é, ao custo de mortes, doenças, e prisões de trabalhadores. É claro que aquela que realmente manda, a Apple, fez uma declaração. Em meio a protestos, demissões, infecções, trabalho forçado, repressão, etc., ela declarou que “garantiria tanto a saúde do trabalhador quanto a produção em segurança”. Cara-de-pau não tem limites. 

Os protestos e o futuro da China

A política da ditadura chinesa de combate à pandemia está em uma encruzilhada. Se continuar com a orientação atual, certamente aumentará a raiva da população que, como os trabalhadores da Foxconn, são mantidos em cárcere privado em suas próprias casas. Se reduzir as restrições, ocorrerá um aumento vertiginoso de casos, em um país onde a vacinação não é obrigatória e o sistema hospitalar não suporta uma taxa de infectados semelhante à ocorrida no Brasil, por exemplo, que causou mais de 600 mil mortes. Lembremos que a população da China é de cerca de 1,3 bilhão de habitantes, 6 vezes a população do Brasil. A não obrigatoriedade de vacinação na China é uma política inexplicável por qualquer ângulo que se avalie, com exceção do ângulo do absoluto desprezo pela população.

A esta encruzilhada, soma-se a redução da atividade econômica, com a possibilidade de uma crise econômica importante. Estas duas questões combinadas, se forem potencializadas, podem levar o país à recessão, a primeira importante desde a restauração do capitalismo na China.

Isso mostra que mesmo a mais arraigada ditadura, cujos apoiadores – espalhados pelo mundo na figura dos partidos stalinistas e castro-chavistas – gabam-se de seu poder de controle da economia, não consegue domar as crises cíclicas do sistema capitalista. E muito menos poderá controlar a ação da mais numerosa classe operária do mundo quando ela decidir que chegou a hora final destes bilionários travestidos de comunistas.

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares