Copa no Qatar: Quando o esporte é usado para tentar encobrir a exploração e a opressão
No domingo, dia 20, o emir Tamim Bin Al Thani discursou na abertura da Copa do Mundo, saudando a diversidade. “Que beleza juntar essas diferenças todas, essa diversidade toda para reunir todos aqui”, disse o líder máximo e, literalmente, “absoluto” do Qatar.
Por: Wilson Honório da Silva
Seria uma “beleza”, de fato, se a fala não fosse uma deslavada expressão da mais pura hipocrisia e parte da cortina de fumaça que o governo do país que sedia a Copa e a Federação Internacional de Futebol (FIFA) tem tentado usar para encobrir os muitos e graves problemas que cercam esta edição do torneio.
Problemas que, de forma alguma, se resumem à proibição do consumo de cerveja nos arredores dos estádios, anunciado às vésperas do evento e, muito menos, ao fato da Copa estar acontecendo no Oriente Médio, num país muçulmano, como os mais afoitos tentam apontar, já que também atravessam, de ponta a ponta, os países do Ocidente, como a corrupção, a exploração dos trabalhadores, e, principalmente, no caso, a opressão machista, LGBTIfóbica, xenófoba e racista.
Questões que, contudo, tomaram proporções absurdas devido ao caráter ditatorial, fundamentalista e absolutista do governo qatari e, também, a forma criminosa e irresponsável como a Fifa tem lidado com tudo isto, desde a escolha do país, em 2010, para sediar os jogos.
Tão absurdas que não só geraram protestos nos últimos dez anos, como também, contra o planejado, invadiram os campos no dia seguinte à abertura, com demonstrações em favor da comunidade LGBTI e a luta das mulheres (do Irã e de todo mundo) que, diga-se de passagem, ficaram ainda mais evidentes em função da censura que lhes foi imposta.
E exatamente pelos problemas serem muitos, iremos abordá-los em dois artigos. Neste, iremos tomar alguns temas gerais, como as denúncias de corrupção e suborno que envolveram a escolha do Qatar e superexploração que provocou a morte de, no mínimo, 6,5 mil imigrantes durante a construção da infraestrutura para a Copa. No seguinte, iremos nos deter nas questões referentes ao machismo e à LGBTIfobia.
Ah, se fosse só a cerveja!!! Muita sujeira varrida para debaixo do gramado
Na sexta, dia 18, agências e portais de notícias, programas de TV e emissoras de rádio deram enorme destaque à súbita decisão do governo do Qatar de proibir a venda de cerveja nos arredores dos estádios, rompendo um acordo previamente assinado com a Fifa e, por tabela, com a multinacional de bebidas AB Inbev (fabricante da Budweiser).
Evidentemente, não demorou muito para que a “Lei Seca” virasse um dos temas quentes nas rodas de conversas e nas redes sociais. Um alarde que poderia até fazer sentido, considerando-se o clima de festividade e descontração que geralmente caracteriza uma Copa do Mundo, já restrito pelas proibições a vários tipos de vestimentas e às demonstrações públicas de afeto.
No entanto, toda indignação diante do que foi chamado de medida “autoritária” e “alheia ao espírito desportivo” soou particularmente hipócrita diante do silêncio cúmplice ou, no máximo, o tímido murmúrio que têm cercado temas realmente escandalosos e inaceitáveis em relação à Copa no Qatar, a começar pelo caráter do regime local e, particularmente, à forma deplorável como mulheres, LGBTIs e imigrantes são tratados no país.
Aliás, o simples fato de que a proibição do consumo de cerveja tenha ganhado mais espaço na mídia que as muitas barbaridades que correm soltas no Qatar já diz muito sobre o mundo em que vivemos e, inevitavelmente, se reflete em tudo que cerca um evento como a Copa.
É evidente que a “Lei Seca” provocou muita insatisfação dentre os quase 1,2 milhão torcedores que se deslocaram para o Qatar, um número impressionante, considerando-se que o país tem pouco mais que 3 milhões de habitantes. Mas sequer foi isto que motivou o alarido. A razão é a mesma de sempre: o comprometimento dos lucros.
A fabricante da Budweiser há 36 anos monopoliza a venda de bebidas nos eventos da Fifa (num acordo que rende US$ 75 milhões, ou R$ 406 milhões, por ano) e contava com altos lucros, principalmente sabendo-se do preço estipulado pelo governo (que controla a distribuição): 50 riais (R$ 75) por 500 mml. Lucros que seriam multiplicados pelo patrocínio das empresas de comunicação e outras ações que, agora, ficaram mais complicadas.
Mas, como também é típico neste sistema, a “garganta seca” não será um problema para todos. Sabemos que acompanhar a Copa “in loco” não é pra todo mundo, principalmente no Qatar, mas, mesmo dentre os muito endinheirados, há os que são considerados VIP’s (sigla em inglês para “pessoas muito importantes”) e estes continuarão tendo acesso às bebidas alcoólicas em tendas especiais e até mesmo em áreas dentro das arenas do Mundial.
Além disso, qualquer declaração de surpresa diante da decisão unilateral e autoritária do Supremo Comitê formado para organizar a Copa no país do Oriente Médio chega a ser ridícula. Todo mundo sabe muitíssimo bem com quem está lidando. E desde muito antes de 2010.
Afinal, o Qatar vive sob a ditadura de um emirado absolutista hereditário (sob o domínio de uma mesma família, a dinastia Al Thani, desde 1825) e sob um rígido regime teocrático, ou seja, no qual as leis são baseadas em preceitos religiosos decorrentes da interpretação extrema, intolerante e fundamentalista da “sharia” islâmica, com a qual muitos muçulmanos não concordam.
Um país onde as últimas eleições ocorreram em 1970 e no qual os partidos políticos são pura e simplesmente proibidos. E, como não poderia deixar de ser, onde a opulência, riqueza e “modernidade” (que têm sido alvos de sucessivas reportagens na TV) só refletem a situação da elite local, já que a enorme maioria da população (82% da qual é formada por migrantes não árabes, como veremos abaixo) vive literalmente nas margens da sociedade.
Por estas e umas tantas outras, só podemos concordar com o colunista do portal UOL Chico Alves que, no dia 18, destacou que, até o momento, “em nome da maior festa do futebol, a Copa do Mundo, e dos negócios bilionários motivados por ela, o Qatar recebeu uma espécie de salvo conduto planetário”.
Uma postura adotada inclusive pela mídia, como também foi destacado pelo jornalista, já que, “há meses, o espaço dedicado ao país no noticiário internacional trata na maior parte da construção de estádios, preparação do evento e atrações turísticas do território”, menosprezando por completo a infinidade de bárbaras violações de direitos humanos que correm soltas no país e têm sido “tratadas apenas de passagem, de forma protocolar, uma espécie de pé de página que acompanha as informações esportivas”.
“Sportwashing”: o gramado usado para encobrir muitos podres
Um passar de pano que, na verdade, tem ocorrido desde a indicação do Qatar. Na época, houve protestos generalizados, principalmente depois de que a Anistia Internacional revelou que além de inúmeros exemplos de violências e discriminações machistas, somente entre janeiro e dezembro de 2009, pelo menos 18 pessoas, a maioria estrangeira, haviam sido condenadas a algo entre 40 e 100 chicotadas, principalmente por delitos relacionados a “relações sexuais ilícitas” ou consumo de álcool.
Os protestos acusavam, não sem razão, a insistência do Qatar em receber o evento como exemplo da prática de “sportswashing”; ou seja, a tentativa de usar o esporte como uma forma de “relações públicas”, para, ao mesmo tempo, encobrir altos níveis de exploração e opressão e melhorar a imagem internacional de um país.
Objetivos que sequer foram disfarçados pelo emirado que incluiu a Copa como parte de um megaprojeto de ‘modernização”, transformando o torneio no eixo de projetos arquitetônicos, de infraestrutura, transporte e serviços. O que, inclusive, ajuda a explicar o porquê desta ser a Copa mais cara da história, com um custo de US$ 220 bilhões (cerca de R$ 1,2 trilhão), quase 19 vezes a mais do que a da Rússia (2018), e 14 vezes que a do Brasil (2014).
Gastos que também visam incrementar o Turismo como alternativa para uma economia na qual o petróleo e o gás representam mais de 50% do Produto Interno Bruto (PIB), cerca de 85% das exportações e 70% das rendas do governo, mas cujas reservas, segundo estimativas, poderão manter os níveis atuais de produção por apenas 40 anos.
E, como se sabe, há fortes indícios de que parte dos “esforços” que o governo fez para conquistar a vaga incluiu corrupção e suborno. Basta lembrar que, na época, uma ex-assessora da Comissão pró-Copa do próprio Qatar denunciou que pelo menos três dirigentes africanos do Comitê Executivo da Fifa haviam vendido seus votos. Cada um deles por US$ 1,5 milhão (R$ 8 milhões).
Além disso, também houve suspeitas da venda de votos pelos representantes do Brasil, da França e da Confederação de Futebol da América do Norte, Central e do Caribe. Maracutaias que, como sempre, “acabaram em pizza”.
Para além da Copa: a “modernização” cimentada com suor e sangue de imigrantes
Para que se entenda qualquer coisa no Qatar é preciso conhecer algumas características da população local, como ela foi afetada pelo “projeto Copa” e, também, como a superexploração e as opressões se relacionam com tudo isto.
O projeto implicou não só na construção de setes novos estádios, mas também de um novo aeroporto, estradas, sistemas de transporte, hotéis e, ainda, um cidade inteira pra sediar a final do campeonato. Tudo isto levantado exclusivamente pelas mãos de trabalhadores imigrantes, algo que tem a ver com a particularidade da composição populacional do país.
Pra começar, não é um acaso que a população tenha dado saltos desde 2010. Na época, o Qatar tinha cerca de 1,8 milhão habitantes. Em 2020, eram 2,8 milhões. E, agora, pouco mais de 3 milhões. Contudo, o que faz do Qatar um caso excepcional é a composição desta população.
De acordo com o último Censo (2020), o país tinha apenas 12% (313 mil) de cidadãos qataris e 82% (2,3 milhões) de estrangeiros migrantes da Índia (uma maioria, com 545 mil), Nepal (341 mil), Filipinas (185 mil), Bangadlesh (137 mil), Sri Lanka (100 mil) e Paquistão (90 mil), dentre muitas outras nacionalidades, várias delas africanas, como o Quênia.
Evidentemente, estes números têm relação direta com a Copa e para compreender o impacto deles sobre as opressões, particularmente a xenofobia, o racismo e o machismo, é preciso saber que a gigantesca maioria dos migrantes é de não-árabes e, além disso, o rápido afluxo de trabalhadores do sexo masculino faz com que, atualmente, as mulheres correspondam a menos de 25% da população (concentradas em grande número dentre os considerados “cidadãos” locais).
O fato é que tudo que diz respeito à população migrante beira a barbárie, como ficou particularmente evidente em uma reportagem publicada pelo jornal britânico “The Guardian”, em fevereiro de 2021, comprovando que quase sete mil trabalhadores migrantes haviam morrido no Qatar entre 2010 e o ano passado, todos eles em situações diretamente relacionadas às construções da Copa ou, no mínimo, irregulares e suspeitas.
Dados levantados nas embaixadas locais e junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) encontraram 5.927 destes casos na Índia, Bangladesh, Nepal e Sri Lanka, e mais 824, somente no Paquistão. O que significa que uma média de 12 trabalhadores migrantes, somente destes cinco países do Sul Asiático, morreu a cada semana.
Números que podem ser extremamente maiores, já que não incluem países como a Filipinas e o Quênia, de onde saíram muitos migrantes, e, também, não cobrem os últimos dois anos, caracterizados pelo aceleramento das construções, o que, evidentemente, implicou em maiores níveis de exploração e trabalho ainda mais extenuante sob uma temperatura média de 50 graus Celsius.
A oficialização da escravidão moderna
O descaso do governo com esta situação começa pelo fato de que, oficialmente, há o reconhecimento de apenas 37 mortos trabalhadores nestes 12 anos. O que dispensa comentários (basta lembrar, inclusive, o número de casos registrados aqui no Brasil). Além disso, a reportagem descobriu que não foram feitas autópsias (como a legislação internacional exige) na maioria dos mortos.
E, ainda, segundo a Anistia Internacional, o governo emitiu milhares de atestados de óbito sem nenhuma indicação da causa da morte ou informações vagas, ou literalmente fraudulentas, como “causa natural” ou “falha cardíaca”. Algo esdrúxulo, principalmente considerando-se que a média de idade dos trabalhadores mortos era de 30 anos.
Tão absurdo quanto ao sistema de trabalho ao qual os imigrantes são submetidos. O nome é “kafala” (que significa “patrocinador”, em árabe), mas poderia ser facilmente traduzido como “análogo à escravidão”, já que consiste, basicamente, em atrelar o visto de um trabalhador estrangeiro ao seu empregador, impedindo, dentre outras coisas, que ele mude de emprego, ficando completamente dependente do empregador.
Além disso, a maioria teve que pagar uma “taxa de recrutamento”, no valor de cerca de US$ 2 mil (ou R$ 11 mil), o que, como é comum na “escravidão moderna”, gera uma dívida que, na prática, nunca consegue ser paga; teve seus passaportes retidos pelas empresas; e, ainda, acabou cumprindo funções completamente distintas daquelas para as quais foram contratados, recebendo salários de fome.
E, se não bastasse, em 2016, um relatório publicado pela Anistia Internacional, a partir de entrevistas com 132 trabalhadores empregados na construção de estádios, revelou que absolutamente todos eles “sofreram abusos sistemáticos, em alguns casos com trabalho forçado”, além de algum tipo de ameaça.
Todas estas questões já eram de conhecimento público mesmo antes da indicação do Qatar como sede da Copa. Mas nem mesmo as inúmeras denúncias feitas no decorrer da última década fizeram com que o Fifa fizesse esforços reais para que houvesse mudanças (numa atitude bastante diferente dos poderes imperiais que assumiu nas copas anteriores, diga-se de passagem).
Como também se calou diante da postura igualmente criminosa do Qatar diante das mulheres e LGBTIs. Aliás, mais do que isto: tem sido cúmplice mais do que ativa, como veremos no próximo artigo.