Uma nova rebelião de massas sacode o Haiti
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O Haiti vive uma nova rebelião social de grande magnitude. Greves, barricadas, manifestações, saques e grupos criminosos se cruzam na enorme crise econômica, social e política que vive o país.
Por: David Espinoza
A crise atual avançou a partir do anúncio do aumento dos preços dos combustíveis realizado em 11 de setembro pelo primeiro ministro Ariel Henry. Dois dias depois, o governo anunciou que o preço do galão de gasolina passaria de 250 a 570 gourdes (de 2 a 4,7 dólares). A situação da maioria da população haitiana é dramática. A moeda haitiana, o gourde, foi fortemente desvalorizada nos últimos meses. A inflação aumentou drasticamente, alcançando um aumento de 30% ao ano em julho de 2022, principalmente com os alimentos (32%). Os produtos mais básicos consumidos pela enorme maioria da população tiveram uma variação de mais de 40%, como o arroz, carne de frango, azeite vegetal (91%), etc.[1] Isto já seria terrível em qualquer país do mundo, mas estamos falando de um país onde mais de 52% da população sobrevive com menos de 3 dólares por dia.[2]
Para entender os protestos atuais, devemos voltar um pouco no tempo, já que o Haiti viveu uma forte instabilidade social nos últimos anos.
O último ciclo de crise
Este último ciclo de crise e protestos no Haiti começou em março de 2018, também a partir do anúncio do aumento de preços dos combustíveis realizado pelo governo de Jovenel Moïse, então presidente do país, depois da paralisação das exportações venezuelanas de petróleo ao Haiti. Alguns meses antes, tinha sido revelado um enorme caso de corrupção com fundos do programa de importação de petróleo PetroCaribe, que envolvia personagens de vários governos, principalmente dos dois últimos, de Michel Martelly y Jovenel Moïse. Isto contribuiu ainda mais para o aumento da raiva do povo trabalhador.
Com a rápida piora das condições de vida da maioria da população, os protestos surgiram já em 2018, exigindo a renúncia de Moïse. Os protestos foram duramente reprimidos, mas continuaram e se massificaram em 2019, transformando-se em uma verdadeira rebelião popular que deixou um saldo de mais de 40 mortos. Em 2020, a crise do governo e do Estado se aprofundou ainda mais. O Parlamento, incapaz de convocar novas eleições, foi dissolvido. Moïse passou a governar através de decretos e a intervir diretamente na Justiça. Sua violenta repressão também teve apoio de setores paramilitares, como o G9, associação de milícias criminosas dirigida pelo ex policial Jimmy Chérizier, acusado de realizar o pior massacre do Haiti das últimas décadas, onde morreram mais de 50 pessoas. [3]
Em 2021, as manifestações voltaram a explodir com força. Foram realizadas enormes manifestações e greves gerais, o que aprofundou a crise do governo. Em julho, um grupo de mercenários invadiu e a casa de Moïse e o assassinou brutalmente. As investigações até agora demonstraram a participação de mais de 20 paramilitares colombianos, muitos deles ex militares, entretanto, a investigação ainda está aberta para determinar quem foram os mandantes do crime.
Com a morte de Moïse a crise se aprofundou ainda mais. O cargo de presidente ficou vago e depois de uma forte crise nos corredores do poder, Ariel Henry assumiu o governo, nomeado Primeiro Ministro por Moïse dois dias antes de sua morte.
Os novos protestos
A partir do anúncio de Ariel Henry de aumentar o preço dos combustíveis, a população haitiana começou a ir às ruas em várias cidades e a armar barricadas. No dia 13 de setembro, o jornal burguês mais antigo do país, Le Nouvelliste, anunciava que Puerto Principe estava completamente paralisada devido às barricadas e que uma rádio tinha sido atacada pelos manifestantes. As manifestações em outras cidades (algumas que já vinham mobilizadas) aumentaram. Em Gonaïve, uma grande manifestação com barricadas exige a renúncia de Ariel Henry e a diminuição do preço dos combustíveis. As sedes da Caritas e do Programa Mundial de Alimentação (PAM) foram saqueadas.[4] Na cidade de les Cayes, o PAM foi obrigado a abrir seus depósitos e a entregar a comida à população.
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Nos dias seguintes os protestos aumentaram, e se estenderam para todo o país, com saques aos comércios, bancos, supermercados e ataques a casas de políticos. Em Gonaïve a população incendiou edifícios do Ministério da Economia e Finanças.
Em Puerto Principe, a população saqueou o principal terminal de produtos petroleiros do país, o Terminal Varreaux, responsável pela distribuição de mais de 70% dos combustíveis que entram no Haiti. Alguns dias depois, o líder da principal milícia criminosa do país, o já citado Jimmy Chérizir, reivindicou o bloqueio do Terminal (que se mantém bloqueado até o momento em que escrevemos este texto). Com a escassez de combustíveis, quase todo o país vai paralisando. Em várias cidades os hospitais começam a ter problemas de abastecimento. Na cidade de Cabaret, grupos armados invadiram a prisão e libertaram um grande número de presos.
O principal centro industrial do país, na cidade de Caracol, fechou suas portas devido à falta de combustíveis.[5] Em 23 de setembro a ONU anunciou que todo seu pessoal não indispensável deveria voltar aos seus países e nisso foi seguida por diferentes Embaixadas.
No dia 26, se realizou uma reunião do Conselho de Segurança da ONU para discutir o Haiti. [6] Nessa reunião, o Ministro das Relações Exteriores do Haiti, Jean Victor Généus afirmou que “com exceção de casos isolados, o país se encontrava sob controle”. Tal afirmação gerou a indignação das organizações patronais, que publicaram uma carta em repúdio às declarações do Ministro, onde descreveram a caótica situação do país e exigiram do Ministro que dissesse a verdade sobre a situação do Haiti ao Conselho de Segurança da ONU.[7]
No dia 27, os sindicatos de Transporte de Puerto Principe convocaram uma greve geral, que novamente paralisou toda a cidade. No dia 29, os operários de CODEVI, um dos principais parques industriais do país, na cidade de Ouanaminthe, realizaram “distúrbios” no interior da empresa e obrigaram o fechamento do parque industrial. Enquanto escrevemos, as manifestações continuam fortes por todo o país, também com uma dura repressão por parte do governo e um saldo de vários mortos.
O que diz o imperialismo?
O Haiti esteve sob ocupação militar da ONU durante 13 anos. A MINUSTAH, dirigida pelo Brasil sob ordens dos Estados Unidos, esteve presente entre 2014 e 2017 (com o apoio de todos os governos “progressistas” da América Latina como Lula, Evo Morales, Bachelet, Mujica, etc). Terminada a MINUSTAH, outra missão da ONU ficou no país, a MINUJUSTH[8], com menor presença militar e com o objetivo principal de garantir a governabilidade e treinar a polícia haitiana. Esta última Missão terminou em 2019 e foi substituída pela BINUH[9], com presença apenas em Puerto Principe e os mesmos objetivos da MINUJUSTH: fortalecer o Estado haitiano, as polícias e o aparato judicial e penitenciário do país. Ao lado da BINUH atua o chamado “Core Group”, composto por representantes da ONU, OEA e as Embaixadas dos EUA, Alemanha, França, Brasil, Canadá, Espanha e União Europeia. O “Core Group” também intervém diretamente na política haitiana. [10]
Na última reunião do Conselho de Segurança da ONU, em 26 de setembro, foi lida uma carta da responsável da BINUH, Helen Meagher La Lime, onde descreve a complexa situação do país e seus esforços para buscar um caminho para a solução da crise com os diversos atores políticos e empresariais realizando novas eleições. Em sua carta, Lime também levanta a necessidade de fortalecer o “Basket Fund”, fundo de financiamento da Polícia Nacional para que esta possa controlar a situação. Por último, Lime exige que o Conselho de Segurança da ONU aja com urgência.
Por outro lado, várias vozes do imperialismo já começam a defender uma nova ocupação militar, sob uma linguagem disfarçada de garantir a segurança e combater os grupos criminosos, como é o caso de Pamela A.White, ex embaixadora dos Estados Unidos no Haiti entre 2012 e 2015.[11]
De maneira alguma podemos descartar uma nova intervenção da ONU ou diretamente de uma coalizão dirigida pelos Estados Unidos, como ocorreu na crise dos anos 2000 antes da formação da MINUSTAH. O aprofundamento da crise no Haiti colocaria em risco os interesses imperialistas no país (principalmente nas zonas francas industriais), aprofundaria a diáspora haitiana aos Estados Unidos e outros países e poderia contaminar toda a região, começando pela vizinha República Dominicana, uma semicolônia norte-americana. As Forças Armadas do Haiti são praticamente inexistentes, já que foram dissolvidas em 1994 e há poucos anos voltaram a ser reconstruídas, mas continuam muito debilitadas. A Polícia Haitiana, apesar de sua extrema violência, não pode controlar a situação, já que seus efetivos são pequenos, precários e corruptos. A decomposição do Estado haitiano é enorme, o que dificulta a dominação burguesa e coloca uma nova ocupação militar estrangeira como uma real alternativa ao imperialismo.
O Haiti hoje é um dos países mais pobres do mundo, mas também um dos mais rebeldes. O povo haitiano tem uma longa tradição de luta, desde a revolução da independência até os dias de hoje.
É preciso solidarizar-se com o povo haitiano
As trabalhadoras e trabalhadores de todo o mundo, principalmente da América Latina, têm o dever de se solidarizarem com a luta do povo haitiano. Enquanto sua situação de miséria se aprofunda, existe um verdadeiro bloqueio de comunicação sobre a situação haitiana, que quase não é noticiada em nenhuma parte do mundo. Por isso, é fundamental que as e os trabalhadores e as organizações operárias e populares divulguem notícias sobre a situação do país. A crise econômica também impõe às nossas organizações a necessidade de arrecadar dinheiro para fortalecer as organizações revolucionárias haitianas, como o Batay Ouvriyé, importante organização com presença nos setores industriais.
Além da violência estatal contra o povo, a decomposição do Estado haitiano abre espaço para que milícias criminosas como o G9 imponham sua agenda e ataquem os setores organizados da classe trabalhadora. A classe operária haitiana, fortemente concentrada nos parques industriais, é a única que pode dar uma saída organizada à profunda crise social do país. É fundamental que a classe operária forje uma aliança com os setores populares e camponeses que estão lutando contra Henry. A disputa da tropa das Forças Armadas e da Polícia sob a direção da classe operária é fundamental para enfrentar uma possível intervenção militar estrangeira e dos grupos armados como o G9 e construir um verdadeiro poder da classe trabalhadora e do povo.
Abaixo o governo de Ariel Henry!
Redução imediata dos preços dos combustíveis!
Pela estatização, sob controle dos trabalhadores e sem indenização, de todos os Bancos, dos parques industriais e das grandes empresas produtoras, exportadoras e importadoras de alimentos!
Pela expropriação dos grandes latifúndios e distribuição da terra aos camponeses pobres!
Fora ONU e o imperialismo do Haiti!
Pelo armamento geral da classe trabalhadora e do povo haitiano para enfrentar o Estado e as milícias criminosas!
Pela organização de conselhos operários, camponeses e populares para determinar os rumos da luta!
Todo poder à classe trabalhadora e ao povo haitiano!
[1] https://lenouvelliste.com/journal/lenouvelliste/2022-09-06/2561
[2] https://www.worldbank.org/en/country/haiti/overview
[3] https://insightcrime.org/caribbean-organized-crime-news/jimmy-cherizier-alias-barbecue/
[4] https://lenouvelliste.com/journal/lenouvelliste/2022-09-17/2575
[5] https://lenouvelliste.com/journal/lenouvelliste/2022-09-28/2583
[6] https://www.securitycouncilreport.org/whatsinblue/2022/09/haiti-briefing-and-consultations-3.php
[7] https://lenouvelliste.com/article/238323/des-associations-patronales-profondement-surprises-par-les-propos-irresponsables-du-ministre-geneus-a-lonu
[8] https://minujusth.unmissions.org/en
[9] https://binuh.unmissions.org/en/mandate
[10] https://binuh.unmissions.org/fr/communiqu%C3%A9-du-core-group-4
[11] https://lenouvelliste.com/article/238353/pamela-awhite-la-diplomatie-normale-ne-fonctionnera-pas-en-haiti-il-faut-des-bottes-sur-le-terrain-des-maintenant
Tradução: Lilian Enck