‘Gota Go Home!’ : o levante no Sri Lanka em uma encruzilhada
O Sri Lanka está passando pela maior greve na história do país desde 1980. Worker’s Voice é solidária com os trabalhadores, a juventude e as massas em movimento no Sri Lanka e apoia suas reivindicações pela saída da quadrilha Rajakpasa do governo, a dissolução do parlamento, a devolução da verba pública roubada pelos Rajakpasas, assistência médica internacional para o Sri Lanka, subsídios para os fertilizantes – que o governo revogou para pagar a dívida a credores internacionais – e o fim da sonegação fiscal que é uma das características centrais do regime.
Por: A. Al Tariqi
Porque os protestos cresceram
Os protestos, que estão acontecendo a mais de um mês, se tornaram um levante de massas, concentrado na região sul, de maioria cingalesa/Sinhala. Eles são a expressão da ira popular contra a péssima condução, por parte do governo, da pior crise financeira do país em quase oito décadas.
Em 6 de maio, milhões de trabalhadores dos setores público e privado cruzaram os braços. Bancos, empresas, e o transporte em cidades grandes como Colombo estiveram fechados. Médicos e enfermeiros se juntaram aos protestos em seus intervalos de almoço. Durante o fim de semana, o presidente Gotabaya Rajapaksa, “Gota,” declarou estado de emergência pela segunda vez desde que os protestos começaram.
A incompetência do governo, eventos mundiais como a guerra da Rússia contra a Ucrânia e uma inflação fora de controle geraram uma crise profunda, que levou à escassez de alimentos, de combustível e de remédios, junto com repetidos episódios de falta de energia elétrica. Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, em uma região que é o celeiro de boa parte da Ásia e África, os preços da comida foram catapultados. No Sri Lanka, o preço do arroz mais do que dobrou no ano passado.
O governo, no último mês, anunciou que não tinha como pagar $51 bilhões em dívidas externas depois que se esgotaram suas reservas de dólar estadunidense. Os juros da dívida agora são mais altos que o PIB. A inflação está em dois dígitos há dois anos e, para produtos essenciais como alimentos, chega a 50%. O ministro das finanças recentemente anunciou que as dificuldades econômicas provavelmente durarão mais dois anos. Os habitantes do Sri Lanka suportam 13 horas por dia sem eletricidade e filas de mais de um dia para comprar gasolina ou GNV.
Em 16 de maio, o primeiro-ministro anunciou que o país ficaria sem nenhum petróleo em um dia a menos que pudesse adquirir $75 milhões no câmbio internacional para comprar mais. Navios com contêineres esperavam fora dos portos, se recusando a entregar sua carga enquanto não fossem pagos.
A greve foi convocada por sindicatos e outras organizações da sociedade civil. Os grevistas exigiam a renúncia do presidente, denunciando a corrupção da família Rajapaksa, que controla o governo do Sri Lanka há quase duas décadas e o levou à falência durante os últimos dois anos e meio. Antes da atual crise, eles tinham consolidado uma base na maioria étnica de cingaleses budistas, utilizando de um discurso nacionalista chauvinista (sobre o qual falaremos mais abaixo), mas essa base parece estar se esgarçando.
Embora tenha derrotado seu irmão, o primeiro-ministro, ao forçar sua renúncia – um aceno patético para tentar parar o levante, – Gota não dá nenhum sinal de que vai entregar o cargo. O substituto que indicou, Ranil Wickremesinghe, é também um aliado próximo de Rajapaksa e vai ajudá-lo a manter o controle da presidência. E ainda há o estado de emergência, que dá aos militares poderes maiores para prender e deter pessoas.
“Gotta go home”
No meio de abril, Don Samantha, um revolucionário do Sri Lanka exilado e membro do conselho editorial da revista socialista pan-asiática Asia Commune, nos disse que:
“O governo não tem soluções. Se forem ao FMI, serão forçados a obedecer a algumas condições, como transparência do governo. Então preferem ir a mercados privados. O Estado está quase falido. O governo vendeu muitos ativos para a Índia e a China, como os principais portos. A exploração das florestas foi vendida a preço de banana para grandes multinacionais.
Os eventos da segunda-feira, 9 de maio, como noticiado no The Guardian, são um ponto de virada que levou à remoção do agora ex-primeiro ministro, Mahinda Rajapaksa, irmão do presidente. Apoiadores do governo agrediram brutalmente manifestantes que se concentravam em frente à residência do primeiro-ministro na capital. Esses capangas pró-governo depois atacaram outro grupo de manifestantes, enquanto a polícia olhava sem fazer nada.
Isso levou a batalhas enormes, com o incêndio de casas de vários deputados, assim como a casa do primeiro-ministro na cidade de Kurunegala. Também houve relatos de deputados abrindo fogo contra manifestantes antigoverno. Pouco antes da renúncia, o presidente aceitou devolver o poder, que até recentemente estava concentrado em suas mãos, para o parlamento. Outros membros da família Rajapaksa pediram exoneração do gabinete, deixando Gota como único membro da família no poder. Ele que formar um “governo de união nacional” com todos os partidos. Apesar da pauta dos manifestantes ser “Gota go home”(“Gota, vá para casa”), ele segue se recusando a entregar o cargo.
A questão da direção revolucionária
As mobilizações foram espontâneas e auto-organizadas na base, com manifestantes bloqueando estradas e acampando em frente à residência presidencial. “Muitas pessoas são hostis a partidos políticos”, diz Samantha. Isso é o oposto da última situação revolucionária que estourou no Sri Lanka, a greve geral ou “hartal” de 1953, liderada pelo partido trotskista Lanka Sama Samaja Party (LSSP). O Hartal de 1953 aconteceu num contexto de fermentação revolucionária, acenos do Sri Lanka para a China revolucionária, e sabotagem econômica a mando do governo dos EUA. A combatividade e organização do Hartal forçaram o governo a fugir da capital! Infelizmente, nos anos 60 o LSSP foi parte de uma coalização para governar o país com o Sri Lanka Freedom Party (SLFP), um partido capitalista centrista com tendências supremacistas cingalesas. Isso afastou as grandes minorias Tâmil e muçulmana, bases sociais importantes para o movimento revolucionário. A degeneração do LSSP, em outras palavras, feriu gravemente o socialismo revolucionário no Sri Lanka.
A última greve geral na ilha foi em 1980, quando sindicatos se juntaram para ajudar a liderar o processo revolucionário, como fazem hoje. As reivindicações de então incluíam aumento salarial, retorno dos subsídios para os alimentos, e a retirada da legislação antidemocrática e antissindical aplicada pelo governo na época. O presidente, JR Jayawardene, da mesma forma que agora Rajapaksa e qualquer outro político capitalista, reprimiu esses protestos com o Exército, declarou estado de emergência e criminalizou a greve.
Numa entrevista para a Al Jazeera, o venerável Tampitiye Sugatananda, um monge budista de 32 anos e secretário-geral da União Geral dos Trabalhadores da Saúde, disse que “Jayawardene esmagou a greve de 1980, mas hoje os sindicatos consertaram seus erros e estão prontos para o futuro. Desde então, muitos sindicatos foram criados por partidos políticos, mas nos últimos anos essa tendência mudou. As lutas da classe trabalhadora se tornaram o central, e a greve de hoje só reforça isso.” Milhões de trabalhadores em todo o sul do Sri Lanka responderam de forma rápida e unitária ao chamado da greve.
Essa hostilidade a partidos políticos não deve ser entendida necessariamente como uma hostilidade a partidos políticos socialistas revolucionários. Novamente enfatizamos que o LSSP, quando era uma organização marxista principista, dirigiu uma greve geral que chegou às portas da revolução socialista em 1953. O que o destruiu foi o que veio depois: oportunismo, a adoção do reformismo, e a recusa em combater as políticas supremacistas cingalesas do SLFP. Durante as últimas eleições presidenciais e parlamentares, em 2019 e 2020, o LSSP estava coligado com partidos socialdemocratas, stalinistas e capitalistas centristas na base de Rajapaksa! Evidentemente todos esses perderam a confiança do povo.
Outros partidos socialistas e comunistas também mostram tendências reformistas, de acordo com Samantha. Conversando com Workers’ Voice, ele apontou que o Janatha Vimukthi Peramuna (JVP, ou Frente de Libertação Popular), que se diz um partido “marxista-leninista”, cumpriu um papel relevante nos protestos nos últimos dois anos. Recentemente eles organizaram um ato de massas em Colombo que foi surpreendentemente grande. No entanto, o que eles reivindicam é que o povo vote neles, se apresentando como mais eficientes que Gota para resolver a crise. Sua outra proposta, pasmem, é pedir um empréstimo ao FMI!
Numa encruzilhada
É preocupante a timidez da atual greve em procurar os grupos minoritários do Sri Lanka, principalmente os tâmeis e os muçulmanos. Até muito recentemente, muitos da maioria cingalesa festejavam a vitória parlamentar de Rajapaksa, culminação de uma campanha que se utilizou de racismo contra os tâmeis e os muçulmanos. “A vitória de Rajapaksa foi quase absoluta”, escreve o comentarista local Mario Arulthas, “com a ampla maioria dos cingaleses votando no partido do presidente, o Sri Lanka Podujana Peramuna, que concorreu com um programa populista e racista, prometendo prosperidade, esplendor e a manutenção da supremacia cingalesa-budista.”
As crueldades do regime Rajapaksa nos últimos anos incluem uma crescente militarização das áreas de maioria tâmil, perseguição a jornalistas e ONGs tâmeis, a cremação forçada de vítimas muçulmanas da COVID, e a criação de um ambiente em que os tâmeis e muçulmanos são tratados como cidadãos de segunda classe. E tudo isso é a continuação das políticas econômicas centradas nos cingaleses que estão sendo aplicadas desde a independência, no início dos anos 50.
A atual rebelião é marcada por uma contradição central. Os manifestantes, em sua maioria cingaleses, agora reconhecem que o regime não é aliado da classe trabalhadora. Esse regime, ao falhar em cumprir as promessas de “esplendor econômico” que fez à sua base, provocou ódio do maior grupo de eleitores do país. Eles sempre foram odiados pelos tâmeis e pelos muçulmanos pelo seu chauvinismo, mas agora há um colapso geral da legitimidade do governo. No entanto, a “inclusão limitada” das reivindicações dos tâmeis por “direitos políticos, desmilitarização do nordeste majoritariamente tâmil, e responsabilização pelos crimes de guerra, cumpre um papel na participação relativamente pequena dos tâmeis” (Arulthas).
O dia 18 de maio é, para as comunidades tâmeis, o Dia da Memória do Genocídio Tâmil. Em áreas de maioria cingalesa no sul, há comemorações da “vitória” nesse dia. Como os manifestantes anti-Gota vão agir agora? Esse será um momento crucial. Os trabalhadores que agora se movem conseguirão ir além de suas questões econômicas para uma análise política geral que conecte a exploração capitalista por parte dos governos Rajapaksa (e da burguesia internacional) e a divisão racista que central para esses governos? Essa é uma questão política central que irá determinar se o levante irá definhar em mero reformismo ou florescer em um movimento revolucionário.