O que as intervenções russas na Síria e na Ucrânia nos dizem sobre a relação entre Putin e o Ocidente
Desde que o exército russo cruzou a fronteira ucraniana em 24 de fevereiro – iniciando uma invasão não provocada que a maioria dos analistas considerava altamente improvável – os ucranianos receberam simpatia de todo o mundo. Os atos de solidariedade são muitos: milhares de voluntários viajaram para a fronteira polaco-ucraniana para ajudar os refugiados que fogem da guerra, doações continuam a ser feitas às ONGs que prestam ajuda humanitária ao país devastado e até combatentes internacionais juntaram-se ao exército ucraniano na defesa das cidades sob ataque do exército russo.
Por: Gabriel Huland
Uma das demonstrações de solidariedade com o povo ucraniano mais comoventes veio da Defesa Civil Síria (Syrian Civil Defense, em inglês, também conhecida como Capacetes Brancos), a organização que desde 2014 trabalha incansavelmente para resgatar, evacuar e fornecer atendimento de emergência aos sírios atacados pelo regime de Assad e seus aliados russos durante a guerra civil síria. O grupo produziu vídeos explicando como resgatar sobreviventes de prédios danificados e o que esperar do exército russo após um ataque aéreo. Os Capacetes Brancos também se ofereceram para enviar equipes de resgate à Ucrânia para ajudar as equipes locais de defesa civil.
Os sírios sabem muito bem como é ser atacado pela Rússia. Desde setembro de 2015, quando o presidente Vladimir Putin ordenou que o exército russo interviesse no conflito sírio, a população civil que vive em áreas controladas pelos rebeldes foi submetida a milhares de ataques aéreos realizados por aviões russos. A Rússia executou mais de 4.000 ataques aéreos na Síria, causando a morte e o deslocamento de centenas de milhares de pessoas, a maioria civis.[1]
Putin decidiu intervir na Síria depois que seu amigo, o ditador sírio Bashar al-Assad, pediu ajuda em 2015. O regime sírio estava passando por reveses importantes e a moral de suas tropas estava baixa. As brigadas rebeldes, ao contrário, estavam se unificando em grupos maiores e ganhando território considerável. Em março de 2015, uma coalizão de grupos que incluía brigadas seculares e islâmicas moderadas, tomou a cidade de Idlib do controle do governo. Em maio, o ISIS (Estado Islâmico no Iraque e na Síria) tomou a cidade de Palmyra e, mais ou menos na mesma época, o Exército Sírio Livre expulsou as forças de Assad de posições importantes no sul da Síria.
Como resultado dessas vitórias militares dos rebeldes, vários analistas previram que a queda de Assad era iminente. Não foi a primeira vez que o ditador sírio precisou de ajuda externa para se manter no poder e conter a insurreição iniciada em seu país em março de 2011: em 2013, o Hezbollah libanês enviou milhares de combatentes para lutar ao lado do exército sírio contra os rebeldes.
Um aspecto das ações da Rússia na Síria, e que estamos vendo hoje na Ucrânia, é que o exército russo não diferencia combatentes armados de civis. Na Síria, ataques aéreos russos atingiram indiscriminadamente mercados, prédios residenciais e hospitais. Apesar da retórica de Putin de que a intervenção russa no país do Oriente Médio visava conter o ISIS, a maioria dos relatos de jornalistas e ativistas sírios revelam uma história diferente. Bombas russas estavam atingindo civis em áreas controladas por facções rebeldes diferentes, não o Estado islâmico, já que esses grupos mais moderados representavam uma ameaça maior ao regime de Assad do que a organização salafista radical.
As alegações de que a Rússia atacou deliberadamente infraestruturas civis na Síria são confirmadas por centenas de vídeos e relatos de diferentes fontes. Por exemplo, Forensic Architecture, um grupo de pesquisa multidisciplinar com sede em Goldsmiths, Universidade de Londres, mostrou como aviões russos realizaram um ataque em fevereiro de 2016 em al-Hamidiyah, na Síria, que destruiu um hospital e matou dezenas de pessoas.[2] A Rússia continua atacando áreas controladas pelos rebeldes hoje, especialmente na província de Idlib, onde a maioria dos grupos rebeldes ainda ativos estão agora concentrados. Um dos mais recentes ocorreu em janeiro de 2022, atingindo uma estação de purificação de água, entre outras instalações.[3]
O caso sírio oferece exemplos valiosos sobre como o Ocidente está respondendo à agressiva política externa russa. À medida que a invasão da Ucrânia completa um mês e meio, o mundo assiste incrédulo à destruição das cidades ucranianas e à fuga de refugiados desesperados para a Polônia e outros países. Poucos analistas acreditavam que o presidente russo ordenaria uma invasão em grande escala. Embora seja extremamente difícil entender a mente de um ditador, a maioria dos analistas achava que Putin estava blefando e jamais atacaria um país com tantos laços culturais e históricos com a Rússia.
Como aconteceu quando a Rússia interveio na Síria em 2015, os líderes ocidentais estão respondendo com hesitação à invasão ucraniana. Em 2015, a resposta “ocidental” consistiu em algumas sanções limitadas contra entidades e indivíduos russos. A forte retórica usada então pelas autoridades americanas para condenar a Rússia não se traduziu em medidas enérgicas para obrigar Putin a desistir de intervir na Síria. Essas medidas poderiam incluir um pacote abrangente de sanções contra o setor de energia da Rússia e a implementação de políticas não apenas para reduzir a dependência da União Europeia do petróleo e gás russos, mas também (e mais importante) para acelerar a transição para energias renováveis. Também poderia incluir um aumento substancial no apoio militar aos rebeldes sírios.
Os cálculos do governo Obama eram simples: a Síria não é um país de interesse estratégico para os Estados Unidos. Não é um parceiro comercial relevante dos EUA nem um país rico em recursos naturais que são fundamentais para a economia dos EUA. Os Estados Unidos não estavam dispostos a pagar o preço de uma operação militar em larga escala no Oriente Médio no momento em que se retiravam da região. O presidente Obama estava pronto para “permitir” que a Rússia mantivesse a Síria sob sua influência para que seu governo pudesse se concentrar em outras questões.
A situação agora é diferente. Em maio de 2014, foi assinado o Acordo de Associação UE-Ucrânia; desde então, a União Europeia tornou-se o maior parceiro comercial da Ucrânia. O acordo, que surgiu após a queda do presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych, marcou a reorientação econômica da Ucrânia para a UE e seu gradual afastamento da Rússia. No entanto, mesmo que a escala das sanções aplicadas contra a Rússia seja maior agora, nem os Estados Unidos nem a União Europeia estão dispostos a ir até o fim para sancionar a Rússia ou fornecer apoio militar significativo à resistência ucraniana. O medo de ter de entrar em guerra com a Rússia, por um lado, e a dependência da UE da energia russa, por outro, explicam em grande medida esta decisão.
A atual estratégia russa na Ucrânia não é clara, assim como se o governo russo mudou ou não seus objetivos desde o início da invasão. O certo é que a invasão não está indo como planejado. Na Síria, o objetivo era evidente: manter um governo subserviente no poder. A Rússia precisava ajudar o regime de Assad a derrotar uma insurreição que começou como uma revolução democrática e evoluiu para uma guerra civil brutal, principalmente como resultado da violência empregada pelo regime sírio contra manifestantes pacíficos.
Na Ucrânia, o plano inicial de Putin era estabelecer um governo fantoche. As declarações do presidente russo de que o “reconhecimento” da Ucrânia como nação soberana foi um erro e que o atual governo ucraniano é fascista testemunham a ideia de que ele planejava mudar o governo em Kiev. Agora, é impossível prever se Putin atingirá ou não esse objetivo. No entanto, o presidente russo provavelmente avançará com a anexação de Donetsk e Luhansk, seja como novas províncias russas ou como repúblicas “autônomas” subservientes. O governo russo também pode optar por infligir o máximo de dano possível às infraestruturas econômicas e militares ucranianas para forçar o presidente ucraniano a assinar um “acordo de paz” no qual a Ucrânia renuncia a qualquer autonomia real em um futuro próximo.
O argumento de Putin de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) representa uma ameaça existencial à segurança da Rússia também é questionável. Embora a Ucrânia tenha estabelecido uma parceria com a OTAN no início da década de 1990, a integração do país na aliança militar do Atlântico Norte não está na pauta da OTAN. O sociólogo ucraniano Volodimir Artiukh afirmou em uma entrevista à Folha de São Paulo, “A maior parte da expansão da Otan ocorreu depois dos anos 2000, já durante o mandato de Putin. E os primeiros movimentos dessa expansão não ensejaram nenhuma resposta violenta da Rússia. Nos anos recentes, não houve expansão significativa da Otan. E a Ucrânia não estava, sob nenhum ponto de vista, perto de se tornar um Estado-membro. Todas as lideranças políticas expressam claramente: a Ucrânia não será admitida na OTAN num futuro próximo. Então, é claro que essa expansão contribuiu para aumentar a tensão na região, mas não foi uma causa imediata para a deflagração do conflito.”[4]
Além disso, algumas das missões recentes da OTAN, como a intervenção na Líbia em 2011 e a operação Ocean Field – criada em 2009 para combater piratas na costa da Somália – indicam que a Aliança atua preferencialmente em países periféricos do capitalismo que vivem conflitos que representam uma ameaça à estabilidade da ordem neoliberal. Por exemplo, a costa da Somália, localizada em uma importante rota marítima, tem importância estratégica para o comércio global. Os países ocidentais não vão tolerar a interrupção do comércio que passa pelo Canal de Suez. Na Líbia, a guerra civil foi vista como uma potencial ameaça ao fornecimento de petróleo e gás para a Europa. Além disso, o papel da Líbia na contenção do fluxo de migrantes para os países europeus preocupou os líderes da UE, que pressionaram por uma intervenção contra Gaddafi. Apesar da narrativa antiocidental de Putin e dos ataques cibernéticos da Rússia contra os Estados Unidos, o governo russo não era visto como uma ameaça existencial à estabilidade mundial até agora.
A destruição humana e material causada pela invasão da Ucrânia será incalculável. O número de mortos já está na casa das dezenas de milhares, e alguns economistas estimam que a economia ucraniana cairá mais de 50% em 2022. A destruição na Síria também é irreversível. Levará décadas para a Síria se recuperar de um conflito que persiste há mais de 11 anos. Com quase um milhão de mortos, milhões de cidadãos deslocados interna e externamente e centenas de milhares de pessoas desaparecidas, a Síria é agora uma caricatura do país que um dia foi. Centenas de milhares de crianças sírias perderam a infância, as famílias e a educação e agora estão traumatizadas por uma terrível guerra.
O destino da Ucrânia será semelhante, embora haja uma diferença entre como os Estados Unidos, a União Europeia e a maioria das organizações internacionais lidam com uma guerra travada no Oriente Médio em um país de maioria muçulmana e uma travada na Europa. Apesar dessas diferenças, que podem ser vistas na quantidade de cobertura midiática recebida pelo conflito ucraniano e na mobilização dos países da OTAN para proteger suas fronteiras, a chamada comunidade internacional novamente falhou em evitar uma guerra. Como é o caso da Síria, o futuro da Ucrânia depende em grande medida da resiliência de seu povo.
[1] https://airwars.org/news-and-investigations/after-six-years-of-russian-airstrikes-in-syria-still-no-accountability-for-civilian-deaths/.
[2] https://forensic-architecture.org/investigation/airstrikes-on-al-hamidiah-hospital.
[3] https://www.reuters.com/world/middle-east/russian-jets-bomb-rebel-held-idlib-syria-witnesses-say-2022-01-02/.
[4] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/03/putin-quer-aumentar-area-de-influencia-nao-impedir-avanco-da-otan-diz-analista-ucraniano.shtml.