O atentado no aeroporto de Cabul é mais uma mostra da derrota americana no Afeganistão
O fracasso do projeto americano no Afeganistão ganha cores vivas nas cenas dramáticas no aeroporto de Cabul onde milhares de estrangeiros e afegãos se aglomeram para tentar sair do país desde o último dia 14.
Por Fábio Bosco
Para piorar, no dia 26, uma pequena organização salafista dissidente do próprio Talibã sem enraizamento social, o ISIS-K (Estado Islâmico do Khorasan – antiga denominação de parte do centro e sul asiático), conhecida por promover ataques terroristas contra a população civil hazara, promoveu duas explosões criminosas na área externa do aeroporto de Cabul que provocaram mais de 80 mortes – a ampla maioria de afegãos e 13 militares americanos, os primeiros americanos mortos desde o acordo com o Talibã em fevereiro de 2020.
O governo americano alertou que novos atentatos podem ocorrer até o fim de agosto quando encerra o prazo para a retirada de cidadãos estrangeiros e afegãos que queiram sair do país conforme o acordo negociado entre o governo americano e o Talibã.
A Liga Internacional dos Trabalhadores (Quarta Internacional) repudia esse atentado que vai na contramão da luta das massas e está voltado a atingir a população civil.
Uma primeira e breve avaliação mostra que esse atentado expõe por um lado a colaboração entre as forças americanas e o Talibã desde fevereiro de 2020 que tende a se fortalecer neste momento. Por outro lado, reafirma o que já é consenso entre os analistas políticos: a realidade da derrota americana que pode ter como consequencias o fortalecimento de movimentos anti-imperialistas e a ampliação do sentimento anti-guerra entre a população americana, algo como uma “síndrome de Cabul” em referência aos mesmos efeitos decorrentes da derrota no Vietnã.
Na contra-corrente da história e da realidade, a grande imprensa lamenta que essa derrota levará ao desrespeito aos direitos humanos no Afeganistão, alimentando a ilusão de que os direitos humanos foram de alguma forma garantidos durante os 20 anos de regime de ocupação americano.
O mito do imperialismo humanitário
Os Estados Unidos e seus aliados imperialistas não cumpriram qualquer papel humanitário no Afeganistão. Ao contrário, eles impuseram um regime de ocupação no país garantido por tropas que chegaram a ultrapassar a cifra de 100 mil soldados. Essas forças de ocupação promoveram bombardeios de aldeias e cidades além de massacres contra civis afegãos. Estima-se que 47 mil civis foram mortos em decorrência direta da ocupação americana. Além destes, outros 66 mil soldados e policiais afegãos e 51 mil combatentes do Talibã e outras organizações. Entre americanos as baixas superaram 6 mil entre soldados (2400) e terceirizados (3600). (I)
Em 20 anos foram gastos US$ 2,3 trilhões, o que equivale a cerca de US$ 300 milhões por dia. Esses recursos vultosos não foram aplicados em escolas, hospitais, moradia ou obras públicas para gerar empregos. Foram gastos principalmente em soldados e material bélico e posteriormente na formação das forças armadas e policiais do governo títere. Os poucos recursos destinados para o desenvolvimento do país foram parar nos bolsos da corrupta elite governante.
Além disso, a situação da mulher afegã não mudou de qualidade durante os 20 anos de ocupação. Apenas 25% das mulheres são alfabetizadas. Metade delas se casa antes dos 18 anos de idade. O pagamento de dote para a família da noiva e a imposição do uso da burca são generalizados particularmente nas áreas rurais onde mora 75% da população afegã. O regime de ocupação nunca se preocupou em aplicar de fato a lei contra a violência doméstica. Outra lei, a que garante a inclusão do nome da mãe nos documentos de identidade dos filhos só foi votada no final de 2020. Na verdade, o imperialismo não ocupou o Afeganistão para “salvar” as mulheres da opressão. Ao contrário, ele essencialmente se acomodou às práticas sociais machistas vigentes com algumas mudanças cosméticas (algum recurso para ONGs, a presença de mulheres no parlamento do regime títere entre outras).
Por fim a “guerra às drogas” não saiu do papel. O cultivo da papoula, da qual se produz o ópio e a heroína, cresceu 200% desde 2001 segundo o mais recente relatório da ONU, e seu processamento local se ampliou, beneficiando principalmente os senhores da guerra, parte da oligarquia rural além do próprio Talibã. O Afeganistão responde por mais de 80% da oferta mundial de ópio e heroína. (II)
Em resumo, atribuir à ocupação imperialista algum papel humanitário oculta a verdadeira violência terrorista contra a população e sua aliança com a oligarquia rural e os senhores da guerra.
A invasão soviética “emancipadora”
O mito civilizatório americano tem sua contraparte estalinista.
Setores neo-estalinistas defendem que a invasão soviética de 1979 e o regime que se seguiu tiveram como objetivo garantir importantes reformas modernizadores como a reforma agrária e o fim do pagamento a título de dote nupcial que é uma forma de mercantilização da mulher.
A verdade dos fatos está longe disso. Em 1973, Mohammed Daoud Khan dá um golpe militar, destitui seu primo, o rei Mohammed Zahir Shah, elimina a monarquia e assume o poder com apoio soviético e dos comunistas locais do Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA) que estão organizados em duas alas: o Parcham (A Bandeira) e o Khalk (O Povo). Apesar de empregar uma retórica de esquerda, nada mudou em relação ao poder da oligarquia rural. Isso não impediu o Parcham de apoiar o novo regime republicano.
Em abril de 1978, Daoud Khan manda assassinar um dirigente comunista – Mir Akbar Khyber – e as duas alas de comunistas e unem e promovem um golpe militar. Daoud Khan é executado e os comunistas assumem o poder. Este movimento é chamado de Revolução de Abril (Revolução do Saur) e dois decretos progressistas são assinados: o da reforma agrária e o fim do dote nupcial.
Sem apoio popular no campo, o novo regime enfrenta a oposição liderada pelos proprietários rurais e pelos líderes religiosos locais, os mulás ultra-conservadores.
Com o advento da revolução iraniana de fevereiro de 1979, a oposição ao novo regime se fortalece apesar da repressão intensa, e ameaça influenciar as massas dentro das repúblicas soviéticas cuja população vive sob a opressão do regime estalinista de Moscou.
Frente a este cenário, o regime soviético orienta os comunistas afegãos a abandonarem a política de reforma agrária e do fim do dote nupcial. A ala mais moderada, o Parcham liderado por Babrak Karmal, aceita as diretrizes soviéticas, mas são afastados do poder pelo Khalk liderado por Nur Mohammed Taraki e Hafizullah Amin. Karmal vai para o exílio e vários dos integrantes do Parcham são presos, uma notória prática de organizações estalinistas tratarem seus dissidentes. (III)
O regime soviético se aproxima de Taraki e a KGB trabalha para eliminar Amin, mas é este que elimina Taraki e assume o poder. Mesmo contrário à invasão soviética, esta ocorre em dezembro de 1979 na qual Amin é executado e Babrak Karmal retorna ao poder a bordo dos tanques soviéticos.
A invasão soviética ampliou qualitativamente a oposição popular apesar das concessões às elites agrárias e aos mulás ultra-conservadores ao retirar a proposta de reforma agrária e fim do dote nupcial. A ocupação soviética recorre à repressão brutal que levou à perda de algo ao redor de um milhão de vidas. Entre os assassinados está Martire Meena, fundadora da RAWA (Associação Revolucionária das Mulheres Afegãs), assassinada pelo serviço secreto do regime em 1987 por sua oposição à ocupação soviética e às concessões às elites rurais. (IV)
Finalmente vários grupos de guerrilheiros islâmicos conhecidos coletivamente como Mujahiddin liderados por senhores de guerra apoiados pelo regime paquistanês, pela CIA, pelo regime saudita, pela China e Reino Unido iniciam uma guerra de guerrilha que levará à saída das tropas soviéticas em 1989 e à derrubada do regime liderado pelos comunistas em 1992. Posteriormente o Talibã é formado em 1994 com o apoio do regime paquistanês, da CIA e da Arabia Saudita, e chega ao poder em 1996 de onde será derrubado pela ocupação americana cinco anos depois.
Ao contrário do que dizem esses setores estalinistas, a invasão soviética foi realizada para impedir que os ventos da revolução iraniana chegassem às repúblicas soviéticas oprimidas e não para promover a reforma agrária e o fim do dote nupcial, políticas as quais os estalinistas de Moscou sacrificaram para tentar garantir seu poder.
Talibã paz e amor?
Em suas primeiras declarações públicas, representantes do Talibã afirmaram que respeitarão a propriedade privada, o direito das mulheres dentro das normas islâmicas, a integridade de estrangeiros, representações diplomáticas e jornalistas, além de anunciar a anistia para os oficiais e funcionários do antigo regime de ocupação.
É interessante notar que o próprio presidente dos Estados Unidos isentou o Talibã do atentado no aeroporto e que as forças americanas estão trabalhando diretamente com o Talibã para garantir a segurança do aeroporto.
No entanto, parte dessas declarações estão em contradição com os cinco anos os quais o Talibã esteve a frente do Estado afegão e com os aliados que o Talibã se vinculou desde então. Vamos examinar algumas questões.
A primeira questão é a propriedade da terra. No Afeganistão, 75% da população vive no meio rural. A agricultura e o pastoreio são as principais atividades econômicas do país sendo o ópio e derivados o principal produto de exportação. De um lado estão os grandes proprietários de terra. E de outro estão os camponeses (pequenos proprietários) e uma massa de trabalhadores e trabalhadoras sem terra (meeiros e trabalhadores sazonais para épocas de plantio e colheita). Segundo o Banco Mundial cerca de 12% das terras são aráveis. Desta forma, a questão da reforma ou revolução agrária é uma questão chave. A política do Talibã nunca foi de promover qualquer reforma agrária, seja quando esteve a frente do governo (1996-2001) seja no processo de luta contra o antigo regime de ocupação. Ao contrário, ele buscou uma acomodação com as oligarquias rurais e tudo aponta que manterá essa orientação. Esta relação explica como o Talibã conseguiu tomar o país em apenas 11 dias. Além disso, há a questão da grilagem das terras de famílias camponesas, particularmente quando são lideradas por mulheres (há 2 milhões de viúvas no país). Ao se aliar à oligarquia, é razoável supor que o regime do talibã vá fechar os olhos à grilagem como fizeram os regimes anteriores. E frente às lutas e revoltas camponesas e de trabalhadores e trabalhadoras sem-terra que cedo ou tarde vão ocorrer, o Talibã vai recorrer à repressão brutal tal como governou o país por 5 anos.
Outra questão importante se relaciona com as empresas multinacionais que atuam no país. Há estudos que apontam que a exploração de riquezas minerais pode gerar US$ 1 trilhão. Hoje uma empresa chinesa explora cobre e uma indiana explora minério de ferro. Se o fim da guerra trouxer alguma estabilidade, com certeza virão novas mineradores além das petroleiras interessadas em construir oleodutos e explorar as reservas de gás. Tudo indica que o regime do Talibã se colocará a serviço dessas empresas. Não por acaso a China foi o primeiro país a reconhecer de fato o regime do talibã e sua agenda gira ao redor de atividades econômicas (entre as quais a nova rota da seda) e da repressão aos grupos que lutam pelos direitos dos Uighures em Xingiang.
Além da China, a questão da repressão a organizações dissidentes é de interesse de todos os regimes vizinhos (Paquistão, Irã, Usbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão), e próximos (Rússia e Índia). Alguns desses regimes apoiaram o Talibã antes de sua ascensão ao poder e todos os sinais são de integração à ordem capitalista regional ainda que o conflito entre Paquistão e Índia possa de alguma forma dificultar os entendimentos com o regime indiano.
Quanto aos direitos das mulheres de acesso à educação, ao trabalho, à manutenção de suas propriedades, de ir e vir sem qualquer guardião masculino, de decidir sua vestimenta sem imposições, do fim de punições cruéis como chibatadas e apedrejamento, do fim do casamento infantil e do dote nupcial, a trajetória do Talibã sempre consistiu em limitar ou negar esses direitos. Mesmo sendo uma sociedade conservadora, a ascensão do Talibã ao poder em 1996 representou um retrocesso quantos aos direitos das mulheres. Um exemplo é o uso da burqa, que era optativo e muito minoritário antes de 1996 mas se tornou obrigatório sob o regime do Talibã. Por esse motivo, é improvável que o novo regime vá reconhecer esses direitos, ainda que alguma mudança cosmética possa ser feita. Na verdade, estará nas mãos da classe trabalhadora, dos camponeses, da juventude e das mulheres a conquista de cada um desses direitos, e nessa luta enfrentarão o regime do Talibã aliado aos proprietários de terra e aos mulás ultra-conservadores.
Há ainda a questão das minorias étnicas oprimidas, particularmente os Hazaras, entre outras que o novo regime terá de lidar.
O que fica claro é que a tendência do regime do Talibã é de “paz e amor” apenas com a elite de proprietários rurais, os regimes capitalistas vizinhos e as multinacionais. E talvez se estenda aos próprios Estados Unidos. Quanto à sofrida classe trabalhadora rural e urbana, os camponeses, as mulheres e as nacionalidades oprimidas, a tendência não é de paz nem de amor, mas de exploração, opressão e muita repressão.
A maioria da classe trabalhadora afegã apoiou a luta contra a ocupação e este apoio foi decisivo para a derrota do imperialismo. Agora a classe trabalhadora terá que se aliar aos explorados e oprimidos dentro e fora do país para arrancar as liberdades democráticas, a reforma agrária, o direito a uma vida digna, luta que só terminará com a derrubada do regime do talibã e de toda a ordem capitalista no país e no mundo.
NOTAS:
(I) https://apnews.com/article/middle-east-business-afghanistan-43d8f53b35e80ec18c130cd683e1a38f
(III) https://jacobin.com.br/2021/08/relembrando-a-revolucao-saur/