Há cem anos, em 6 de dezembro de 1921, o colonialismo britânico e uma parte dos republicanos nacionalistas irlandeses assinaram o Tratado Anglo-Irlandês. Ao invés da independência, a Irlanda foi dividida entre o sul com 26 condados e os 6 condados do norte.
Por Fabio Bosco e Martin Ralph
O Tratado foi precedido por uma feroz resistência anticolonial. Em 1916, os republicanos nacionalistas irlandeses realizaram o Levante da Páscoa liderado por Padraig Pearse e James Connolly. Pearse representava a pequena burguesia revolucionária e Connolly representava o setor mais avançado da classe trabalhadora irlandesa. Em 1918, o partido republicano nacionalista irlandês Sinn Fein obteve uma vitória esmagadora nas eleições gerais irlandesas. A recusa das autoridades britânicas em aceitar a liberdade da Irlanda levou à Guerra da Independência da Irlanda de 1919-1921.
Diante desse levante irlandês, as autoridades britânicas concluíram que não era mais possível continuar a governar a Irlanda como antes e levantaram uma proposta que visava manter seus principais interesses coloniais e dividir e derrotar os republicanos irlandeses.
Assim, o Tratado Anglo-Irlandês criou um “domínio” auto-governado sob o império britânico envolvendo os 26 condados do sul, mas mantendo os 6 condados do norte como parte do Reino Unido, território que viria a se constituir a Irlanda do Norte. Esses seis condados eram a maior porção do território irlandês com uma população majoritariamente unionista (a favor da União com o Reino Unido) e protestante – o que foi resultado da colonização britânica organizada das terras agrícolas do norte irlandês no século XVII.
O Tratado foi seguido por uma guerra civil de um ano. De um lado, estava o governo provisório irlandês, favorável ao tratado, apoiado pela burguesia irlandesa e o campesinato – ambos interessados em manter conexões econômicas com a Grã-Bretanha – e também apoiado pela Igreja Católica Romana. Do outro lado, os republicanos nacionalistas irlandeses contrários ao tratado que recusaram o status de “domínio” britânico e a partição do país. Depois que as forças favoráveis ao tratado, apoiadas pelos britânicos, derrotaram a oposição, nasceu o Estado Livre Irlandês baseado nos 26 condados e com status de “domínio” britânico.
A constituição de 1937 mudou o status de “domínio” do Estado Livre Irlandês e em 1949 a Irlanda foi declarada república. Embora esta decisão tenha retirado a Irlanda da Comunidade Britânica, ela não mudou o status semicolonial da República da Irlanda, já que sua economia é dominada por corporações transnacionais britânicas, europeias e americanas até os nossos dias.
A luta na Irlanda do Norte
A partição, inicialmente um arranjo temporário, estabeleceu um governo local unionista protestante com um consequente establishment unionista (um “parlamento protestante e um estado protestante”) que deu continuidade às políticas sectárias que discriminavam a população nacionalista católica irlandesa em todas as áreas de suas vidas para manter o controle unionista.
Inspirado por movimentos internacionais pelos direitos civis tanto nos Estados Unidos por afro-americanos como na África do Sul, o movimento pelos direitos civis irlandês surgiu em 1964 exigindo o fim da discriminação no emprego e na alocação de moradias públicas; eleições livres; o fim dos poderes arbitrários da Lei de Poderes Especiais (1922) e a reforma das forças policiais locais – a Royal Ulster Constabulary (RUC) e a dissolução das forças armadas sectárias – os notoriouos B-Specials, que perseguiam, humilhavam e atacavam as comunidades nacionalistas irlandesas. O movimento pelos direitos civis foi confrontado com forte violência sectária levada a cabo primeiro pelo RUC, os B-Specials e outras forças paramilitares unionistas e, posteriormente, pelas próprias tropas britânicas, dando origem a uma guerra contra a Grã-Bretanha e a sua ocupação do norte da Irlanda chamada de “troubles”.
O Exército Republicano Irlandês (IRA) ligado ao partido nacionalista irlandês Sinn Fein ressurgiu neste período, primeiro como uma força de autodefesa, depois como uma organização guerrilheira autônoma que passou por várias cisões. Em geral, as múltiplas facções do IRA eram organizações nacionalistas irlandesas pequeno-burguesas em luta por uma Irlanda Unida e Independente com alguns tons socialistas e conexões com outras organizações igualmente guerrilheiras, como o ETA do país Basco, as FARC colombianas, facções da OLP, alguns regimes árabes além da forte comunidade irlandesa nos EUA.
Em 10 de abril de 1998, o Sinn Fein e o IRA Provisório (que era o grupo guerrilheiro nacionalista dominante) capitularam e o Acordo da Sexta-feira Santa (GFA) foi assinado em Belfast. O GFA foi, na realidade, um acordo duplo: primeiro entre oito partidos da Irlanda do Norte (tanto os partidos unionistas, exceto o DUP, como os republicanos nacionalistas irlandeses) e, em segundo lugar, entre o Reino Unido e a República da Irlanda. A GFA implicou no reconhecimento da partição do país pela República da Irlanda e todos os partidos republicanos, e estabeleceu o direito exclusivo à população da Irlanda do Norte, cuja maioria é composta por protestantes unionistas, de qualquer decisão sobre a partição. O acordo obrigou a República da Irlanda a mudar sua constituição para legitimar a partição, e o IRA a depor as armas. Ao mesmo tempo, foram formados o governo e a Assembleia da Irlanda do Norte, projetados para serem “equilibrados”, ou seja, não para eliminar o sectarismo mas para administrar suas manifestações. Inevitavelmente, as atitudes sectárias se tornaram mais enraizadas na cultura política dominante da Irlanda do Norte.
Nas mãos da classe trabalhadora
A luta por uma Irlanda Unida e Independente foi abandonada tanto pela burguesia irlandesa quanto pelo partido pequeno-burguês Sinn Fein e o IRA.
Somente a classe trabalhadora do norte e do sul tem interesse econômico e político para cumprir esta tarefa histórica. No norte, os trabalhadores precisam lutar para acabar com toda a discriminação sectária que desaparecerá com a reunificação da Irlanda. No sul, os trabalhadores precisam libertar seu país das transnacionais e do capitalismo para ter empregos para todos, moradia acessível, educação pública de alta qualidade e saúde.
Para alcançar essas demandas, é necessário unir as lutas dos trabalhadores ao norte e ao sul da fronteira e buscar solidariedade operária em todo o mundo, em primeiro lugar com a classe trabalhadora britânica.
A luta democrática pela autodeterminação irlandesa anda de mãos dadas com a luta por uma Irlanda Socialista pois tendo derrotado o imperialismo e seus aliados locais, a classe trabalhadora irlandesa necessariamente abordará as relações de propriedade e trabalhará por uma Irlanda Unida e Socialista como parte da futura Federação dos Estados Socialistas da Europa.
Marx e Engels contra o Império
Os revolucionários solidarizaram-se com o povo irlandês na sua luta pela autodeterminação que significa o direito da totalidade do povo irlandês, do norte e do sul, de decidir se querem uma Irlanda unida e independente das potências coloniais ou não.
Karl Marx e Friederich Engels têm pelo menos 258 artigos, cartas ou discursos com referências à Irlanda (I). Eles defenderam o auto-governo irlandês e a independência da Inglaterra. Eles também entenderam que defender a emancipação nacional irlandesa era uma condição para a unidade da classe trabalhadora britânica para levar a cabo a revolução social em casa.
“A Irlanda é o baluarte da aristocracia latifundiária inglesa. A exploração daquele país não é apenas uma das principais fontes de sua riqueza material; é sua maior força moral. Eles, de fato, representam o domínio sobre a Irlanda. A Irlanda é, portanto, o meio cardeal pelo qual a aristocracia inglesa mantém seu domínio na própria Inglaterra.”
“E o mais importante de tudo! Cada centro industrial e comercial na Inglaterra possui agora uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis, os proletários ingleses e os proletários irlandeses ”.
“Esse antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de sua organização. É o segredo pelo qual a classe capitalista mantém seu poder. E está bem ciente disso.”
“É tarefa especial do Conselho Central de Londres fazer com que os trabalhadores ingleses percebam que para eles a emancipação nacional da Irlanda não é uma questão de justiça abstrata ou sentimento humanitário, mas a primeira condição de sua própria emancipação social.” (II)
Esta posição para ficar do lado dos trabalhadores irlandeses foi disputada e conquistada no Conselho Geral da Primeira Internacional embora a questão irlandesa tenha criado um conflito profundo com alguns líderes sindicais.
O líder da oposição a esta política no Conselho Geral foi John Hales, um líder dos tecelões, que foi membro do Conselho Geral de 1866-72, e seu secretário de maio de 1881 a julho de 1882.
O Conselho Geral expressou em muitas ocasiões sua solidariedade pelo movimento de libertação nacional irlandês liderado pelos fenianos irlandeses. Embora Marx fosse crítico de suas táticas de conspiração, ele lutou para convencer a classe trabalhadora britânica a apoiar a liberdade para a Irlanda. Os membros do Conselho Geral iniciaram e organizaram a campanha pela anistia para os prisioneiros fenianos em 1869 e um protesto com quase 100.000 trabalhadores foi realizado em Londres em outubro do mesmo ano.
A Primeira Internacional organizou filiais entre os trabalhadores irlandeses em 1871 e 1872. Havia várias filiais na Inglaterra. Na Irlanda, havia apoiadores ou filiais em Limerick, Tipperary, Belfast, Dublin e Cork. Policiais, patrões e padres perseguiram os membros da Internacional. Em uma reunião do Conselho Geral em 9 de abril de 1872, McDonnell, o secretário correspondente para a Irlanda, relatou o “terrível estado de terrorismo” contra a Internacional em Cork.
O Conselho Geral emitiu uma declaração contra o terrorismo policial na Irlanda, afirmando que o governo britânico buscava cortar pela raiz o estabelecimento da Primeira Internacional porque o antagonismo nacional entre os trabalhadores ingleses e irlandeses, na Inglaterra, tem sido até agora um dos os principais entraves no caminho de todos os esforços pela emancipação da classe trabalhadora e, portanto, um dos esteios da dominação de classe na Inglaterra, bem como na Irlanda.
Hale retomou sua oposição à luta irlandesa um mês depois. Em 14 de maio de 1872, ele propôs uma resolução contra a formação de filiais irlandesas na Inglaterra, que era o mesmo modelo organizacional de outros grupos nacionais, declarando que isso só levaria a manter vivos os antagonismos nacionais.
McDonnell comentou que parecia “muito estranho que o Secretário-Geral, no momento em que havia perigos e dificuldades no trabalho de propaganda na Irlanda, apresentasse uma moção que virtualmente destruiria o que havia sido feito”.
Engels declarou que Hale estava pedindo a um povo conquistado que esquecesse sua nacionalidade. “As seções irlandesas, portanto, não apenas se justificavam, mas tinham mesmo a necessidade de declarar no preâmbulo de suas regras que seu primeiro e mais urgente dever como irlandeses era estabelecer sua própria independência nacional.”
Lenin e Trotsky seguiram o exemplo
Lenin manteve a tradição de Marx e Engels sobre a Irlanda. Ele apoiou fortemente o levante da Páscoa irlandesa de 1916, bem como o direito das nacionalidades oprimidas à autodeterminação. Em julho de 1920, ele recebeu calorosamente Roddy Connolly, filho do líder socialista irlandês James Connolly, no segundo congresso do Komintern. Em seu livro de 1914 “O Direito das Nações à Autodeterminação”, Lenin aponta:
“Marx questiona um socialista pertencente a uma nação opressora sobre sua atitude para com a nação oprimida e imediatamente revela um defeito comum aos socialistas das nações dominantes (os ingleses e os russos): o fracasso em compreender seus deveres socialistas para com as nações oprimidas, seu eco aos preconceitos adquiridos da burguesia da “nação dominante”. ”
“A política de Marx e Engels sobre a questão irlandesa é um exemplo esplêndido da atitude que o proletariado das nações opressoras deve adotar em relação aos movimentos nacionais, um exemplo que não perdeu nada de sua imensa importância prática. É um alerta contra aquela “pressa servil” com que os filisteus de todos os países, cores e línguas se apressam em rotular de “utópica” a ideia de alterar as fronteiras dos Estados que foram estabelecidas pela violência para privilegiar os latifundiários e a burguesia de uma nação. ”
“Se os proletariados irlandês e inglês não tivessem aceito a política de Marx e não tivessem feito da secessão da Irlanda seu slogan, este teria sido o pior tipo de oportunismo, uma negligência de seus deveres como democratas e socialistas, e uma concessão à reação e à burguesia inglesa.”(III)
Trotsky também escreveu sobre o levante irlandês da Páscoa, em seu artigo de 1916 “On the Events in Dublin“ (IV) e sobre o direito dos povos oprimidos à autodeterminação.
“Desde os meus primeiros dias tenho, através de Marx e Engels, a maior simpatia e estima pela luta heróica dos irlandeses pela sua independência.” (V)
“A autodeterminação nacional é a fórmula democrática fundamental para as nações oprimidas. Onde quer que a opressão de classe seja complicada pela opressão nacional, as demandas democráticas assumem, antes de tudo, a forma de demandas por igualdade nacional de direitos – por autonomia ou independência”. (VI)
A posição de Marx, Engels, Lenin e Trotsky é de grande importância até os nossos dias. Os nomes e as situações mudam, mas a Grã-Bretanha continua sendo uma nação opressora contra a unidade da Irlanda.
Infelizmente, algumas organizações de esquerda se colocam ao lado do colonialismo britânico quando defendem o “direito” da comunidade unionista protestante de manter a Irlanda dividida, o que significa na realidade apoiar o direito dos opressores contra o direito dos oprimidos.
A Liga Internacional dos Trabalhadores (Quarta Internacional) se mantém fiel à perspectiva de Marx, Engels, Lenin e Trotsky em defesa do direito dos irlandeses à autodeterminação contra o imperialismo britânico.
Notas:
(I) https://arrow.tudublin.ie/cserrep/21/
(II) https://www.marxists.org/archive/marx/works/1870/letters/70_04_09.htm#ireland
(III) https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1914/self-det/ch08.htm
(IV) https://www.marxists.org/archive/trotsky/1916/07/dublin.htm
(V) Trotsky reply to Nora Connolly O’Brien, James Connoly’s daughter, on June 6, 1936
(VI) https://www.marxists.org/archive/trotsky/1922/red-white/ch09.htm