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Senegal  e a  rebelião de março: heroicas mobilizações  e seus limites

abril 24, 2021

Do rio que tudo arrasta se

diz que é violento.

Mas ninguém diz violentas as

margens que o comprimem.

 Bertolt Brecht

Por: Ligue Populaire Sénégalaise

Introdução:

No começo do mês de março, com suas lutas e heroísmo, os trabalhadores, a juventude e o povo pobre do Senegal, se colocaram no mesmo nível dos que lutaram nos últimos meses em Zimbábue, Nigéria, Angola, Sudão, Mali e em outras centenas de lutas pelo continente. Essas lutas estão dando um novo olhar sobre a África.  De repente, um vento fresco de ideias invade o continente em forma de rebeldia, lutas e resistência. A ideia deste balanço é para juntos com os ativistas senegaleses e da diáspora africana buscar entender as razões das heroicas mobilizações e seus limites. Podemos tirar lições importantes que, sem dúvidas, nos ajudarão a melhor compreender as lutas que virão.

O mês de março começou quente

O mês de março começou com a os senegaleses nas ruas. Estavam os khalifists seguidores de Khalifa Sall do Partido Socialista, os milhares de desempregados, a juventude desesperada pela falta de perspectiva, os rappers do Y’em Marre, as mulheres oprimidas e sem renda, e também os seguidores de Ousmane Sonko, do partido Pastef. A classe média e a pequena burguesia, sempre bem-comportadas, desta vez também saíram às ruas. Foi a maior manifestação desde 2011. Desde o começo do ano a temperatura já vinha subindo.

Na verdade, as mobilizações de março foram um desdobramento das mobilizações iniciados nos meses anteriores. Em janeiro o governo decretou o toque de recolher por conta do COVID 19. Fiquem em casa, dizia o governo. Mas como ficar em casa sem renda, sem auxílio econômico e sem alternativas. Aqueles que saiam às ruas nos bairros pobres sofriam a violência policial. Nos bairros de Ngor, Medina e Yoff, além dos subúrbios de Pikine, Guediawaye e Thiaroye a população queimou pneus, ergueu barricadas e a Polícia respondeu com muita violência e gás lacrimogêneo. Foi o primeiro round.

Em fevereiro houveram novas manifestações em Dakar contra as medidas bonapartistas e autoritárias de Macky Sall, em especial, pela tentativa de mais uma vez criminalizar um oposicionista para limpar o caminho rumo as suas pretensões de um terceiro mandato. Os partidários de Sonko impediram sua prisão cercando sua casa e enfrentando-se com a polícia.

A luta é justa. Basta de fome e pobreza

Em pouco mais de trinta anos a qualidade de vida do povo senegalês caiu espantosamente. Em 1990 o Índice de Desenvolvimento Humano do Senegal o colocava na 126ª posição. Em 2019, em um processo de queda constante, o país se encontra na 168ª posição desse índice calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Organização das Nações Unidas (ONU). Quase 80% da população não tem acesso a médicos, a expectativa de vida é de 60 anos e a grande causa das mortes são: a malária, doenças gastrointestinais e partos prematuros.

O salto na consciência. Da raiva à luta.

As pessoas começaram a despertar pouco a pouco num lento processo de passar da impotência frente ao sofrimento imposto pelo capitalismo imperialista para sair às ruas e lutar por direitos. Em outubro do ano passado 140 migrantes morreram afogados nas águas do Atlântico quando tentavam chegar as Ilhas Canárias.  Outros chegaram a Europa e mesmo com qualificação só conseguiam empregos de baixa remuneração. Na Espanha muitos foram enviados à força nos aviões e devolvidos ao país. Assim a cada dia os jovens viam que a migração não era a saída.

“Altos índices de desemprego entre os jovens, desigualdade crescente, escândalos de corrupção, agravados por medidas repressivas em meio à pandemia COVID-19, estão na raiz da crescente ira pública. Estamos vendo uma população farta sair às ruas para rejeitar a classe política dominante do país.”[1]

Os que conseguiram trabalho precário no turismo e comercio viram seus empregos terminarem quando do lockdown e para piorar foram obrigados a se trancarem nas casas sem nenhuma forma de renda.

O poder do capital imperialista foi ficando cada vez mais claro. Ao visitar um supermercado, o desempregado vê os produtos que eles e seus amigos vendiam antes e que agora não conseguem fazê-lo por conta da competição desleal com o gigante Auchan.

A raiva foi crescendo e se transformou em luta social.

Em defesa da rebelião. Em defesa dos trabalhadores

A rebelião do povo senegalês é parte da resistência dos trabalhadores e do povo pobre de todo o mundo contra o empobrecimento das últimas décadas.  É parte das lutas dos jovens de Hong Kong, dos Jalecos Amarelos franceses, dos negros norte-americanos contra o racismo, dos chilenos, dos paraguaios, colombianos, etc. Mas é parte também das importantes lutas africanas que vemos no Zimbábue, Nigéria, Sudão, Mali, dos jovens da África do Sul e dos trabalhadores da saúde de diversos países.

A melhor defesa dos trabalhadores é o apoio incondicional as suas lutas.

Contra Macky e o imperialismo francês: apoiamos a continuidade da luta

Macky Sall é a expressão maior do moderno administrador colonial. Estudou geologia na Universidade de Dakar e depois no Instituto Francês de Petróleo (IFP) do Colégio Nacional de Petróleo e Motores (ENSPM) em Paris. O IFP é financiado por diversas empresas, entre elas a petroleira francesa Total. Com Macky o mar territorial foi entregue as empresas pesqueiras europeias que destruíram a pesca artesanal local que era a fonte de trabalho de milhares de pessoas e encareceu o custo do peixe na mesa do senegalês. E como se fosse pouco, permitiu a entrada de redes supermercados empresas (Carrefour e Auchan) que destruíram os pequenos negócios e monopolizaram a distribuição de alimentos e passaram a impor preços exorbitantes.

Nas últimas eleições, Macky utilizou o Judiciário para perseguir adversários e ser praticamente o único candidato com condições de vencer. Com relação aos lutadores sociais, o governo Macky segue a tradição da repressão dos tempos coloniais, Khadidiatou Ndiouck Faye, diretora da prisão de Cape Manuel, afirmou que prisioneiros políticos não cooperativos estavam sendo mantidos em celas punitivas onde “a regra é que o detido se suicide”.

Macky não reprime em seu nome pessoal, reprime para defender os interesses das empresas francesas com a Orange (telecomunicações), Total (petroleira), Carrefour e Auchan (supermercados) e a dependência financeira via o Franco CFA (Communauté Financière Africaine /Comunidade Financeira Africana).

A ordem capitalista é a responsável pela pobreza, pela raiva e pela luta

Toda vez que os trabalhadores e o povo pobre saí à luta de forma contundente, imediatamente surgem os políticos tradicionais, os jornalistas, religiosos, etc. chamando ao fim da violência contra os bens públicos e privados. Pedem aos manifestantes que expressem seus sentimentos de forma pacífica e ordeira. Na verdade, para eles, parafraseando Bertold Brecht: “ao rio que tudo arrasta o chamam de violento, mas não chamam de violentas as margens que o oprime”.

Esses críticos da violência dos lutadores sempre defendem a ordem capitalista baseada na fome, na miséria e no colonialismo. A burguesia sempre tenta neutralizar a ação direta dos trabalhadores para que os conflitos da luta de classes sejam mediados pelas instituições da democracia burguesa, instituições essas que se apresentam com aparência de justiça e neutralidade, mas na verdade são controladas pela burguesia nacional e internacional para defender os seus interesses. Tudo que passa por fora dessas instituições como o parlamento ou do judiciário, é um sinal de alerta pois é quando os trabalhadores percebem toda a injustiça e se auto-organiza para mudar a sua realidade.

Chamar a paz é chamar para que tudo fique como está:

Uma importante autoridade religiosa do Senegal, Califa Geral dos Mourides, Serigne Mountakha fez um veemente chamado a paz social. Inclusive, enviou uma delegação para conversar com os dirigentes do movimento para que suspendessem as mobilizações que estavam marcadas para prosseguir no sábado, dia 13 de março.

Segundo seu porta-voz, o Califa Geral dos Mourides[2] reiterou seu apelo à calma e serenidade e mais, reafirmou que está sempre ao lado do povo, sempre que necessário.”

Além de pedir o fim das mobilizações, o Califa Geral negociou com o governo Macky Sall algumas medidas paliativas para justificar a suspensão das mobilizações, e como se fosse pouco, para aqueles que insistissem em seguir mobilizando, Serigne Mountakha afirmou que “Deus não gosta daqueles que agitam socialmente o país”.

Ao Califa Geral, não podemos perder a oportunidade de perguntar se o Deus que ele reivindica: “gosta da pobreza, da migração, das mortes em alto mar, e de todo o sofrimento de um povo?”

Uma comparação necessária

Embora as comparações nem sempre sejam justas, mas é necessário comparar, eliminar os abusos e ver quais elementos de uma situação estão presentes na outra situação.  Ao comparar a Revolução de Fevereiro da Rússia de 1917 com as mobilizações de março de 2021 no Senegal vemos que ambas tiveram uma característica explosiva. Na Rússia tudo começou quando as mulheres das fábricas têxteis começaram a parar a produção e sair se manifestando pelas ruas, milhares de famílias tinham sido destruídas pela guerra. No Senegal a explosão se deu pelo acúmulo de raiva e vontade de lutar que expressamos acima e que a fagulha foi a prisão de Sonko. Mas tal qual na Rússia, milhares de família foram destruídas pela migração ou em consequência da migração, como os imigrantes senegaleses que morreram nas águas do Atlântico. Em ambos os processos, o desemprego, a fome e a falta de esperança também ajudaram na composição da raiva e da vontade lutar e tudo mudar.

Além de ver os elementos comuns, há os elementos que não estavam nesta ou naquela situação. E maior ausência de uma organização de luta que dirige o processo antes, durante e depois da luta. Na Rússia, havia uma importante forma organizativa que vinha se desenvolvendo que eram os sovietes. A outra forma organizativa era o Partido Bolchevique que embora fosse uma pequena organização de vanguarda soube dar aos trabalhadores as orientações políticas necessárias para a luta se desenvolver e caminhar para as mudanças que a classe trabalhadora necessitava.

Mouvement pour la Défense de la Démocratie (M2D): direção pequeno burguesa e oportunista

Nós analisamos uma organização por três elementos: o seu programa de luta, seus dirigentes e sua base social.

A direção do M2D (Mouvement pour la Défense de la Démocratie) é uma direção assentada em diversas organizações políticas e sociais. Entre os mais importantes estão o Pastef de Ousmane Sonko, Front for a Popular Anti-imperialist and Pan-African Revolution Movement (FRAPP), coletivo Y’en a Marre (“farto”), que em 2011 mobilizou os jovens para derrubar o ex-presidente Abdoulaye Wade e abriu passo para a eleição de Macky Sall.

Voltando à Revolução de Fevereiro na Rússia, onde as organizações de base composta por operários de fábrica e moradores dos bairros pobres, no caso Senegalês, a direção do M2D é composta por uma organização eleitoral (Pastef), por organização da classe média radicalizada o Y’en a Marre e outra organizações que não tem como centro do seu programa a ruptura com o imperialismo e a luta pela segunda independência.

Analisando as reivindicações do M2D em nenhum momento propõe o fora Macky Sall, ao contrário não se opõe que siga governando e quer eleições limpas dentro de 3 anos. Também não diz nada sobre a necessidade de ruptura com os laços econômicos e financeiros com o imperialismo em geral e com o Francês em particular. Não são reivindicações que defendam a luta pela segunda independência. É um programa para a manutenção da ordem capitalista e pequenas reformas cosméticas, ainda que algumas delas sejam justas e necessárias, conforme vemos na Declaração que apresentaram no dia 13.03[3]

* Liberdade imediata e incondicionalmente de todos os presos políticos e anulação de todos os processos contra eles;
* Estabelecer uma Comissão Nacional independente, inclusiva e aberta à sociedade civil, oposição e líderes religiosos, entre outros, para avaliar as reparações e indenizações a serem concedidas às famílias das vítimas e avaliar sua adequada execução;
* Pôr imediatamente termo à conspiração político-judicial fomentada contra Ousmane Sonko e abster-se de quaisquer novas acusações contra ele: restabelecer a imunidade parlamentar;
* Abrir uma investigação independente para encontrar e levar a tribunais nacionais e / ou internacionais todos aqueles que, tanto na polícia como entre os bandidos e milicianos recrutados pelas autoridades, são culpados de crimes nas manifestações, bem como seus patrocinadores;
* Parar imediatamente a perseguição, ameaças e intimidação aos opositores, inclusive por meio de escuta telefônica e espionagem;
* Restaurar os direitos dos atores políticos despojados ilegalmente de seus direitos para impedi-los de concorrer às eleições ”.
* Os outros pontos são articulados da seguinte forma: “Assumir o compromisso público de organizar as eleições locais em 2021, as legislativas em 2022 e as eleições presidenciais em 2024 em condições livres, democráticas e transparentes;
* Reconhecer publicamente a impossibilidade constitucional e moral de concorrer a um terceiro mandato; Exigir a auditoria da gestão de setores sociais estratégicos como água, especialmente rural, bem como saúde e educação; O fim imediato da grilagem, a auditoria do patrimônio fundiário nacional.

 Enquanto o M2D negociava um programa rebaixado para o tamanho das mobilizações, “as queixas que desencadearam manifestações em todo o país – da capital Dakar à região de Casamance, no extremo sul – vão muito além do caso de Sonko. Nas ruas e nas redes sociais, gritos de “Free Senegal” e “Macky out” quase abafaram os de “Free Sonko”.[4]

 A Santa Aliança para acabar com a luta do povo senegalês

A revolta das massas extrapolou os limites aceitáveis para uma direção pequeno burguesa e eleitoral como a do M2D.  Ao aceitar as recomendações do Califa Geral Serigne Mountakha Mbacké, encontraram uma saída honrosa para poder colocar fim à revolta.

Em uma declaração aos meios de comunicação, Aliou Sané, coordenador do movimento Y’en a Marre, disse:

É muito difícil para nós tomar certas decisões, mas quando é Serigne Mountakha Mbacké quem nos envia uma delegação e nos pede todas essas preocupações, e quando a delegação é tão importante, liderada por Serigne Bassirou Mbacké Porokhane, só podemos ir na direção de sua vontade”[5]

A declaração final do M2D é patética. Primeiro porque não ouviu as reivindicações de “Free Senegal” e Macky out”. Segundo por que não se importou com o heroísmo das massas que tiveram 11 mortos e mais de 500 feridos dos quais mais de 100 tiveram que hospitalizados conforme informam os organismos de direitos humanos.

Contrário à vontade popular a direção do M2D declarou que “deposita toda a sua confiança na autoridade moral dos veneráveis ​​califas de todas as irmandades e da Igreja” e, se ainda fosse, pouco chama a confiar no governo de Macky Sall quando dizem que “desejam encontrar um ouvido atento do Presidente Macky Sall para uma paz duradoura no país”[6].

Assim, aceitando as chantagens do Califa Geral, negociando uma trégua com Macky Sall, retirando as denúncias contra Sonko (e as denúncias de violação? Serão investigadas por organismos independentes ou a culpa será da suposta vítima?) e garantindo que Macky não concorrerá ao terceiro mandato, “o Movimento pela Defesa da Democracia baixou as armas para cumprir a recomendação de Serigne Mountakha Mbacké. Na presença de Ousmane Sonko, Aïda Mbodj e Mamadou Diop de Croix, o M2D decidiu adiar qualquer manifestação antes de submeter um memorando ao califa geral dos Mourides”.[7]

Unidade dos trabalhadores africanos contra a França capitalista

Passados 60 anos dos processos de independência, os países da África Ocidental seguem com uma odiosa dependência colonial através do franco CFA e outras imposições financeiras como a dívida externa. O sofrimento do povo senegalês é o mesmo dos povos do Benim, Burkina Faso, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Mali, Niger eTogo. Todos esses países, de distintas maneiras, viveram lutas de resistência. Desde mobilizações locais, greves gerais, insurreições que derrubaram presidentes etc. Cabe ao movimento sindical senegalês com a autoridade de quem acaba de sair de uma insurreição que deixou grogue ao governo de Macky Sall organizar um encontro internacional de sindicalistas e do movimento popular e juntos construir um processo de resistência comum ao inimigo comum que é o imperialismo, em especial, ao francês.

Ao mesmo tempo buscar apoio dos sindicalistas e trabalhadores franceses, dos seus irmãos africanos, para que dentro de suas fronteiras defendam a unidade internacional dos trabalhadores.

 Construir uma alternativa operária e socialista

A classe trabalhadora necessita construir sua própria alternativa. É preciso construir uma organização enraizada na classe trabalhadora, nos desempregados, nos pescadores e no povo pobre. Precisamos de uma organização proletária.  Mas não basta que seja proletária é preciso que tenha um programa e uma direção que caminhe rumo à nacionalização das riquezas naturais, expropriação da burguesia comercial, financeira de origem nacional e estrangeira. Ou seja, um programa e uma direção que tenha como horizonte a construção de uma sociedade socialista, sem patrões nacionais ou estrangeiros.

* Fora Macky Sall e seu grupo de agentes do imperialismo francês!

* Fim da perseguição a Sonko e investigação independente das acusações de estupro

* Nenhuma demissão nos supermercados queimados. Pagamento integral de salários aos trabalhadores afetados. Que os ricos paguem pela crise.

* Fora Auchan. Fora Total. Ruptura do Acordo da Pesca. Senegal para os trabalhadores senegaleses!

* Preparar a greve geral para derrubar Macky Sall

* Construir a unidade dos trabalhadores franceses com os trabalhadores da África Ocidental

* Por um governo dos trabalhadores e do povo pobre!

[1]https://roape.net/2021/03/11/senegal-uprising-end-impunity-for-macky-salls-regime/

[2]https://www.sudonline.sn/serigne-mountakha-degage-50-millions-et-sermonne-l-%C3%89tat-et-les-politiques_a_51240.html

[3]http://www.sudonline.sn/serigne-mountakha-plombe-le-m2d_a_51221.html

[4]https://roape.net/2021/03/11/senegal-uprising-end-impunity-for-macky-salls-regime/

[5]https://www.sudonline.sn/serigne-mountakha-plombe-le-m2d_a_51221.html

[6] idem

[7]www.seneweb.com/news/Societe/le-m2d-annule-sa-manif-de-samedi-sur-ins_n_342667.html

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