sex mar 29, 2024
sexta-feira, março 29, 2024

Hong Kong: um processo de mobilização democrática que não dá trégua

Sobre as mobilizações em Hong Kong

Um importante processo de mobilização eclodiu em Hong Kong contra a chamada “lei de extradição” proposta pelas autoridades que dependem do governo de Pequim. “O polêmico projeto de lei permitirá que suspeitos de crimes penais, como assassinato e estupro, sejam extraditados para a China continental e outros países e assim julgados”. [1] A lei foi vista como uma nova tentativa de avanço, pelo regime de Pequim, sobre a relativa autonomia que desfruta o território. Dada à magnitude e a continuidade das mobilizações, Carrie Lam, chefe de governo desta região administrativa, decidiu recuar “temporariamente”.

Por Alejandro Iturbe

Não é a primeira mobilização que acontece em Hong Kong por reivindicações democráticas desde que esta região foi incorporada a China continental, em 1997. Em 2014, presenciamos a chamada “revolução dos guarda-chuvas” (com uma série de protestos que no seu auge reuniram 250.000 pessoas), em resposta ao fato do governo central anunciar medidas que descumpriam a sua promessa de realizar eleições livres em 2017 para eleger as autoridades locais, como previsto no acordo de incorporação assinado entre a China e a Grã-Bretanha [2]. A mobilização refluiu, em parte devido à repressão, mas a chama continuou viva, vide as manifestações de 10.000 estudantes em 2015 e 2018.

Hong Kong representa uma profunda contradição política para o regime chinês que só faz aumentar e muito nos últimos anos. Para entender essa contradição é necessário analisar um pouco sua história e suas características atuais.

Um pouco de história

O território de Hong Kong é um excelente porto natural no Mar da China Meridional e está separado do continente (a província de Guangdong) pelo Rio das Pérolas. Após a Guerra do Ópio (1839-1842), transformou-se em uma colônia/enclave do império Britânico (junto com outros territórios próximos), um ponto-chave para o domínio desse setor do oceano Pacífico na navegação comercial e militar. O Japão ocupou-o durante a Segunda Guerra Mundial; logo os britânicos retomaram o controle até o acordo de 1997.

A principal atividade do território era o comércio marítimo. A partir de 1950, viveu um período de desenvolvimento industrial impulsionado pela burguesia oriunda de Xangai, que fugiam da revolução no continente e buscavam mão de obra livre para explorar. Surgiu assim um grande número de empresas têxteis pequenas e médias e depois se estenderam para outros setores (plásticos e eletrônicos) cujos produtos eram exportados para a Europa e os Estados Unidos [3].

Esta situação começou a mudar com a restauração do capitalismo na China, a partir de 1978, e a abertura para os investimentos estrangeiros. A indústria de Hong Kong começou a se deslocar para as “zonas especiais” de Guangdong: no final de 1997, os investimentos provenientes de Hong Kong representavam 80% dos IEDs [Investimentos Estrangeiros Diretos] recebidos por essa província. A mudança do modelo de acumulação da economia acentuou-se a partir de 1997: a indústria diminuiu sua participação no PIB de 31% em 1980 para 8% em 2008, enquanto os serviços cresceram de 68 para 92% no mesmo período (não existe agricultura no território).

Desde 1997, Hong Kong tornou-se um polo de serviços especializados: finanças, administração, logística, consultoria empresarial, transporte e comércio, etc. Podemos caracterizá-lo como uma ponte para os investimentos e negócios para a China continental (e outras regiões da Ásia) feita pela burguesia imperialista (intermediada pela Grã-Bretanha) e de burgueses de origem chinesa que estavam fora da China continental.

No setor finanças, se destacam três bancos do território, o HSBC (Hong Kong e Shangai Bank Coorporation, privado), o Banco da China (estatal) e o Standard Chartered (privado com sede em Londres, mas com a maioria de seus clientes em Hong Kong e Ásia). Outro dado é que a HKE (Bolsa de Valores de Hong Kong) é considerada a sétima maior Bolsa do mundo pelo valor de capitalização de mercado de ações, acima das bolsas de Xangai, Frankfurt e Zurique.

O acordo de reintegração de 1997

O território foi reintegrado a China em 1997. Esta “devolução de soberania” foi preparada desde 1984 pela “Declaração conjunta sino-britânica sobre a questão de Hong Kong”, assinada entre a rainha Elisabeth (Margaret Thatcher era primeira-ministra) e o presidente chinês Li Xiannian (com Deng Xiaoping como o homem forte do regime).

A causa formal do acordo foi o vencimento do “arrendamento” do território, em 1997, após um período de 99 anos, desde1898, pelo qual se disfarçou o domínio colonial britânico. O argumento que Thatcher usou para defender o acordo era que a Grã-Bretanha não estava em condições de defender militarmente o território caso o regime chinês decidisse invadi-lo. A questão de fundo foi uma “jogada de mestre de xadrez” pelo imperialismo britânico que, dessa maneira, colocou uma cunha no incipiente desenvolvimento capitalista da China e nas grandes oportunidades de negócios que começavam a se abrir, pra servir de “ponte”, para os investimentos que utilizassem em Hong Kong sem o obstáculo de ser “território estrangeiro”.

O acordo incluía o conceito de “um país, dois sistemas”. Isso significava, por um lado, o respeito ao sistema capitalista de Hong Kong e seus investidores (o regime chinês já havia restaurado o capitalismo, mas ainda se identificava como “socialista”). O território conservaria sua própria moeda (o dólar de Hong Kong) e sua Autoridade Monetária (o Banco Central). Por outro lado, o sistema jurídico e legal de Hong Kong, seria mantido com maiores liberdades democráticas do que no continente, e se convocaria as eleições de autoridades locais próprias para 2017.

Como já dito, a jogada do imperialismo britânico foi muito bem-sucedida no terreno do papel econômico-financeiro que o território podia desempenhar (ele também foi usado pelo regime chinês para atrair investimentos estrangeiros). Mas, em seu aspecto político, foi uma fonte de contradições e protestos de massas, como as que estamos presenciando.

Alguns dados atuais

Hong Kong tem um território de 1.100 km2 e quase 7.500.000 de habitantes. A população vive em um quarto dessa superfície: o resto é inabitável ou são áreas preservadas. É considerada a área urbana mais densa do mundo. Basicamente, é uma grande cidade “vertical”. Em 2017, seu PIB nominal foi estimado em 340 bilhões de dólares, o equivalente a mais de 45.000 de dólares per capita, acima de países como Alemanha, França, Japão e Itália. E sua economia é baseada em finanças, serviços e transporte.

Em 2011, estimava-se uma força de trabalho de 3.700.000 pessoas [4], cujo setor principal de trabalhadores está concentrado, em serviços. O HSBC tem cerca de 30.000 funcionários; o Standard Chartered, 20.000; o Banco da China 10.000 funcionários, o Hang Sen Bank (subsidiária do HSBC), 10.000. Isto em contar sedes menores de grandes bancos internacionais como o Citibank, JP Morgan, Lloyds, etc.

Outro setor de peso são os trabalhadores do transporte. O setor portuário e a logística de transporte de e para os terminais de contêineres são dominados por quatro grandes empresas. Existem, além disso, umas 20 empresas operando o serviço mid-streamy (carga e descarga de navios diretamente da baía sem entrar no porto), e um serviço de balsas que se conecta com Guangdong. A mais importante das grandes empresas (China Merchants International, propriedade de Li Ka-shing, um dos homens mais ricos do mundo) emprega cerca de 30.000 trabalhadores [5].

No setor de passageiros, o transporte urbano em massa é garantido essencialmente por um metrô moderno e eficiente, operado pela MTR Corporation (Mass Transit Railway, que também opera trens de outras cidades: Pequim, Hangzhou, Shenzhen, Londres e a totalidade das redes subterrâneas de Melbourne e Estocolmo). O sistema metro-ferroviário de Hong Kong possui uma rede de 221 km de extensão. Para se ter uma ideia, na cidade de São Paulo e suas periferias (com quase o triplo de população e cerca de 8.000 km2), as redes do metrô e da CPTM (trens metropolitanos) totalizam cerca de 350 km. A MTR emprega ao redor de 12.000 trabalhadores [6].  Além disso, a rede ferroviária KCRC (Kowloon-Canton Railway Corporation, também opera pela MTR) liga o território com a cidade de Cantão com serviços de passageiros e conta com cerca de 2.500 trabalhadores.

Dissemos que a indústria e o proletariado industrial foram bastante reduzidos, mas cabe mencionar que o setor da construção é muito numeroso devido ao crescimento permanente de novos arranha-céus, e obras públicas. Um exemplo é a ponte que liga a cidade de Zhuhai, na província de Cantão, com Macau e Hong Kong. Terá 55 km (com um trecho de 6 km de túnel submerso) e é considera uma das maiores construções offshore (afastada da costa, ndt) do mundo [7]. No setor industrial propriamente dito, existem empresas de reparo de navios e balsas, e fábricas que lhes fornecem máquinas-ferramentas.

Salários e condições de trabalho

Em 2019, o salário médio em Hong Kong foi estimado em 2.450 dólares mensais (quase 2,5 vezes o da China continental) [8]. Mas o custo de vida é muito alto: o aluguel de um apartamento de um quarto na periferia custa em média 1.450 dólares e pode chegar a 2.400 no centro da cidade. Em 2017, estimava-se que os aluguéis no território fossem 4,5 vezes maiores que os de Buenos Aires e o dobro dos de Barcelona [9].

O preço dos terrenos e da construção por metro quadrado é um dos mais altos do mundo, e continua crescendo [10]. O preço dos alimentos, em sua grande maioria importada, também é alto: se olharmos para a lista de preços médios de produtos básicos (alface, cebolas, batata-doce, frango, leite, etc.), eles são duas ou quatro vezes mais caros do que em um supermercado de São Paulo [11]. Isto é o que explica que, apesar desse salário médio, 20% da população estejam abaixo da linha de pobreza [12].

As jornadas e semanas de trabalho são muito extensas: a média é de 10 horas diárias e mais de 50 horas semanais. No extremo, muitos trabalhadores aceitam o sistema de 12 horas diárias x 6 dias por semana [13]. Em Hong Kong o desenvolvimento capitalista muito avançado se combina com altíssimos níveis de superexploração, que o artigo citado acima denomina “capitalismo selvagem”.

O ritmo intenso de trabalho, as tendências e pressões ao consumismo, e a extrema concorrência entre os trabalhadores incentivada pelas empresas provocam um elevado número de casos de karoshi (stress por excesso de trabalho e tensão trabalhista que pode levar à depressão, ao colapso e inclusive à morte): “Muitos consideram que Hong Kong é uma cidade estressante e estressada. Essa tensão faz com que uma em cada nove pessoas sofra de ansiedade, distúrbios alimentares ou transtornos obsessivo-compulsivos, e um estudo da Associação de Saúde Mental mostra que quase 12% da população está deprimida”. [14].

Uma greve importante

Em minha pesquisa encontrei poucas informações sobre greves ou conflitos sobre reivindicações trabalhistas. Mas uma me chamou a atenção: em 2013, os trabalhadores portuários realizaram uma greve de 40 dias por aumento salarial e melhorias nas condições de trabalho. Nela se viam métodos radicalizados (com piquetes que ocupavam os navios para evitar que atracassem no porto) e a solidariedade de muitos setores que contribuíam ao fundo de greve [15]. A greve conseguiu um aumento salarial e o compromisso das empresas de abrir uma negociação sobre questões de segurança e saúde no trabalho.

Manifestantes avançam contra o Parlamento

No entanto, ao mesmo tempo, a Suprema Corte do território emitiu uma medida restringindo o direito de greve e a ordem ao sindicato a se limitar a “mobilizações lícitas e razoáveis”. A decisão foi acatada, mas esta luta se tornou um precedente importante para os trabalhadores de Hong Kong.

As organizações sindicais

Ao contrário da China continental, em Hong Kong se exerce o direito à existência de várias centrais sindicais. A maior delas é a HKFTU (Hong Kong Federation of Trade Unions) com 410.000 membros e 251 sindicatos de base, fundada em 1948. É o braço local da federação sindical oficial chinesa e se opõe às reivindicações democráticas de autonomia.

A mais ativa é a HKCTU (Confederação de Sindicatos de Hong Kong), fundada em 1999, com 160.000 filiados e 61 sindicatos. Está ligada à CIOSL e aos sindicatos ocidentais dos países imperialistas. Tem peso nos portuários, professores, trabalhadores domésticos e de serviços sociais. O sindicato de portuários encabeçou a greve de 2013 e apoia e participa das reivindicações democráticas e populares do atual processo de mobilizações.

Outra organização que participou das reivindicações populares é o Sindicato de Trabalhadores da Construção e de Planta Geral (CSGWU, em sua sigla em inglês).  Em outubro do ano passado convocou e participou (ao lado de ambientalistas e moradores) de um protesto de 8.000 pessoas contra a construção de várias ilhas artificiais: o Projeto East Landau Metropolis, impulsionado pela governadora Carrie Lam.

Eles o consideraram como um “elefante branco” a serviço dos negócios das grandes construtoras e não um plano para resolver o agudo problema habitacional popular no território superpovoado [16]. Esta central está intimamente ligada à China Labour Bulletin e a diversas ONGs que atuam na China continental (às que nos referimos na parte principal deste trabalho).

A terceira central sindical é HKTUC, historicamente ligada ao Kuomitang e a Taiwan, com 60.000 filiados. Finalmente uma pequena central (a FLU), com uns 20.000 filiados, está diretamente liga a Pequim e ao PC local.

As instituições e os partidos políticos

O atual sistema político-institucional de Hong Kong é uma herança daquele que imperou nas últimas décadas do período colonial inglês. Está definido pela Lei Básica (uma espécie de Constituição), vigente desde 1997. Combina a garantia a direitos democráticos (liberdade de imprensa, formação de partidos políticos e sindicatos, direito de entrar e sair do território para outros países, etc.) com um sistema eleitoral e legislativo muito restritivo. Hong Kong também elege deputados ao Congresso do Povo Chinês.

O cabeça das instituições regionais é o Chefe de Governo. É eleito por sufrágio indireto por um seleto Colégio de Eleitores, composto por 1.200 membros representando os interesses dos “quatro setores funcionais”: indústria, comércio e finanças; associações de profissionais; trabalho e setores sociais; e membros do Conselho Legislativo. É um mecanismo profundamente antidemocrático e, além disso, o eleito deve ser aprovado pelo Conselho de Estado da República Popular da China.

O Chefe de Governo tem o poder de apresentar as “leis especiais” ao Conselho Legislativo, e também de aprová-las ou vetá-las. O Poder Executivo também dirige a Polícia de Hong Kong e a Autoridade Monetária. Desde março de 2017, o cargo é ocupado por Carrie Lam, de 62 anos, formada em universidades locais e britânicas (Cambridge), que desenvolveu uma extensa carreira burocrática desde a época do domínio britânico.

O Conselho Legislativo de Hong Kong é composto por 35 membros eleitos por voto direto e 35 por voto indireto (com um sistema semelhante ao já descrito). Pode aprovar a “legislação comum” por maioria simples, mas a “legislação especial” (aquela que afeta as relações com o regime chinês, as liberdades democráticas e o sistema econômico) requer 60% e deve também ser aprovada pelo Chefe de Governo.

O sistema combinado de eleição de seus membros faz com que sua composição possa ser controlada e manipulada pelo regime chinês. Nas eleições de 2016, foi eleito um bloco pró-Pequim de 40 deputados (encabeçados pela chamada Aliança Democrática para o Progresso de Hong Kong), 23 da “oposição democrática” (liderada pelo Partido Democrata, fundado em 1994, estritamente vinculado a partidos dos países imperialistas), e 7 legisladores “regionais” (autonomistas) ou “independentes”. Alguns desses últimos partidos, como Demosistó e Aspiração Jovem estiveram intimamente ligados ao processo de 2014. Seis desses legisladores foram impedidos de assumir o cargo por uso, em seu juramento, de expressões que “foram consideradas ofensivas à República Popular da China”.

Mesmo assim, essa configuração determinava um impasse legislativo, já que o bloco pró-regime chinês não tinha a maioria necessária para aprovar as “leis especiais”. Em março de 2018, realizaram-se eleições complementares para preencher os assentos vagos: o bloco pró-Pequim conseguiu aumentar em dois legisladores, atingir a “maioria qualificada”, e assim, impedir que a “oposição democrática” exercesse seu poder de veto em medidas como a “lei de extradição”.

Ao mesmo tempo, aumentou seu descrédito (e do sistema judicial) entre a população. Não apenas entre os jovens, mas também nos setores médios, como comerciantes e profissionais liberais. Algo que já vinha acontecendo desde 2014: no final de 2016, 2.000 advogados fizeram uma marcha silenciosa contra os ataques à legislação e ao sistema judicial promovidos por Pequim. “É como um tanque atropelando o sistema legal de Hong Kong” expressou Martin Lee, um dos fundadores do Partido Democrata, que participou da comissão que redigiu a Lei Básica [17].

Por fim, o território conta com uma força policial própria de 35.000 membros, com uma unidade tática (PTU) especializada na “repressão de distúrbios”, que desempenha um papel cada vez mais importante desde 2014.

Da revolução dos guarda-chuvas até hoje

O ponto de inflexão para o processo de ascenso foi à constatação de que o regime chinês não cumpriria com o compromisso de eleição direta do Chefe de Governo, que estava prevista para 2017. Foi isso que levou a “revolução dos guarda-chuvas” com os estudantes no papel de protagonistas, exigindo a renúncia do então Chefe de Governo Leung Chun-ying [18].

O processo foi controlado e refluiu, mas continuou vivo durante esses anos com mobilizações menores de estudantes, mas importantes. Por outro lado, além da rejeição ao cargo de Chefe de Governo eleito por voto indireto, também avançou a experiência com a força policial que até então era apresentada como “a melhor Polícia da Ásia” [19], por sua ação repressiva.

Desde então, só se agregaram elementos que atiçaram fogo na caldeira. As eleições legislativas de 2016 (e as complementares de 2018) mostraram que também o Conselho Legislativo é uma instituição antidemocrática, e esta visão começa a se estender ao próprio sistema judicial (até agora apresentado como uma das “justiças mais independentes do mundo”) [20], como aponta a mobilização dos advogados.

A “lei de extradição” foi o gatilho para detonar essa nova onda de mobilizações com índices superiores a anterior: estima-se que as maiores manifestações chegaram a um milhão de participantes. Os estudantes secundaristas e universitários, e suas organizações (e a juventude em geral) continuam na vanguarda [21]. Mas se incorporaram também trabalhadores e setores médios: a HKFTU e seus sindicatos participaram e convocaram a uma greve, com chamado aos proprietários de muitas empresas e comércios [22].

Ao mesmo tempo, seus métodos se radicalizam. Diante do risco de repressão e prisão que representava a identificação “dos rostos dos participantes” – como foi Joshua Wong em 2014, então um estudante de 17 anos do ensino médio (acaba de sair da prisão) – as mobilizações são organizadas por “grupos sociais” difíceis de detectar, e muitos jovens usam máscaras cirúrgicas e outros tipos de máscaras para se proteger das nuvens de gás lacrimogêneo e evitar sua identificação.

Além disso, setores de manifestantes bloquearam a área em torno do Conselho Legislativo e tentaram entrar, romperam as cercas policiais e começaram a atirar paus, tijolos e garrafas. Em resposta, a polícia aumentou a repressão e a prisão de manifestantes. Mas isso só provocou mais indignação e combatividade [23]. No dia seguinte, cercaram o edifício central da Polícia durante todo o dia.

Dada a força da mobilização e a dificuldade de aplicar o nível de repressão necessário para derrotá-la, a Chefe do Governo Carrie Lam, optou por recuar e anunciou o adiamento da proposta, para “restaurar a paz e a ordem” [24]. Foi uma vitória da mobilização, parcial, mas importante, que coloca o governo local (e o regime chinês na região) diante de uma situação mais desfavorável, e às massas em melhores condições para continuar a luta por suas reivindicações democráticas.

Algumas conclusões

Por sua tradição histórica e das características de sua sociedade, Hong Kong representa uma grande contradição para o regime chinês. Esta contradição não existe entre o capitalismo e o “socialismo chinês” (que há décadas já não existe). Neste aspecto, o território complementa-se perfeitamente e é muito útil para o capitalismo, a burguesia e o regime chinês. A principal contradição surge entre o regime político chinês (uma ditadura) e as aspirações democráticas da população de Hong Kong (trabalhadores, setores médios e a baixa burguesia). O poder de Pequim precisa “domesticar” Hong Kong, mas não consegue, e isso gera uma situação de crise do governo local, e um desafio para o regime chinês como um todo.

Aqui é necessário considerar duas questões. No plano internacional, as potências imperialistas apoiam o regime de Pequim, do qual obtêm grandes benefícios econômicos. Mas, ao mesmo tempo, querem evitar um crescimento qualitativo do capitalismo chinês. Por esta razão, entre outras coisas, pressionam o regime, muito moderadamente, pelas questões democráticas. Hong Kong faz parte desse jogo: ali tentam evitar uma consolidação absoluta do controle chinês e salvaguardar a independência de seus investimentos. Nesse sentido, eles dão apoio formal à luta democrática.

No plano local, por um lado, o regime chinês não pode reprimir as lutas democráticas com os mesmos métodos que o faz no continente (embora vá endurecendo gradualmente). Por outro, essas lutas continuam e estabelecem uma correlação de forças local totalmente diferente do conjunto da China, muito mais favorável às massas.

A contradição não se limita a Hong Kong: na medida em que as lutas democráticas no território continuam e se aprofundam, essa situação pode atuar como um “estopim” que acenda outros incêndios na China, através dos muitos vasos comunicantes, especialmente com a região do sul mais próxima do território. Portanto, a necessidade do regime chinês de “domesticá-las” está aumentando, assim como a de conseguir o pleno controle das instituições do território, embora mantenha seus aspectos formais.

É evidente que as reivindicações democráticas são o eixo do estágio atual da mobilização, com epicentro na eleição do Chefe de Governo por voto direto. Acredito que a este epicentro é necessário acrescentar imediatamente a reivindicação da eleição do Conselho Legislativo pelo mesmo sistema. E se faz necessário rechaçar que o comando da Polícia esteja nas mãos do Poder Executivo. Tudo isso leva a se chocar com a Lei Básica e a exigir sua revogação.

Dentro do próprio plano das reivindicações democráticas existe uma questão de fundo sobre qual delas é o eixo: a luta é pela autonomia de Hong Kong dentro da China ou pela independência do território? É um debate que está se desenvolvendo no interior das organizações que surgiram ou se fortaleceram a partir do processo de 2014: “Aspiração Jovem” defende a independência enquanto “Demosistó” promove a autonomia plena dentro da China (um pouco mais à esquerda que a “oposição democrática” encabeçada pelo Partido Democrata) [25].

Devemos reivindicar para o povo de Hong Kong o direito à autodeterminação, como se fosse uma nacionalidade oprimida, ou a consideramos parte da China? Nossa opinião é que Hong Kong não representa uma nacionalidade, mas, com suas características específicas, faz parte da China e sua luta deve ser integrada na luta do conjunto dos trabalhadores e do povo chinês contra o regime ditatorial de Pequim.

Mas, de fato o regime chinês não aceita nenhuma dessas alternativas e ataca permanentemente a autonomia relativa do território; quanto mais uma saída independente. Portanto, essa luta democrática, deve necessariamente buscar solidariedade e estender-se a China continental. Qualquer que seja a alternativa considerada correta (autonomia ou independência), ela só poderá ser concretizada se, junto com os trabalhadores e as massas da China continental, avançar para derrubar o regime chinês (“Abaixo a ditadura”).

Esta realidade faz com que essas aspirações democráticas assumam um caráter de consigna de transição. Algo que entra em profunda contradição com os desejos dos setores centrais da burguesia de Hong Kong, e de muitos setores médios, de negociar apenas uma autonomia limitada, mantendo a Lei Básica.

É impossível, a partir de nossa localização, ter certeza de como a mobilização evoluirá em seus métodos de luta e em sua organização. E tampouco podemos prever como a luta de Hong Kong incidirá nos processos da China continental, e por quais caminhos. Mas há um ponto em que temos total clareza: é essencial a entrada da classe operária com sua força, sua organização e seus métodos (algo que já começa a acontecer), para que ela encabece a luta.

Está claro que há momentos de unidade de ação com esses setores burgueses, como o que acabamos de viver. Mas vale a formulação estratégica que Trotsky expressou na Revolução Permanente: “A teoria da revolução permanente significa que a resolução íntegra e efetiva de seus objetivos democráticos e de sua emancipação nacional só pode ser concebida por meio da ditadura do proletariado…”.

É imprescindível apoiar, promover e, na medida de nossas possibilidades, participar dessas lutas por reivindicações democráticas, entendendo sua especificidade e seu peso na consciência dos trabalhadores e das massas, bem como suas ilusões na democracia burguesa. Mas só poderemos fazê-lo corretamente com essa perspectiva estratégica que aponta Trotsky e, como já dissemos, impulsionando a participação protagonista da classe operária.

Notas:

[1] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-48645373

[2] https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/manifestantes-piden-la-renuncia-del-jefe-ejecutivo-de-hong-kong/ y https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/estudiantes-de-hong-kong-desafian-a-la-dictadura-china/

[3] https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1804

[4] https://www.indexmundi.com/g/g.aspx?c=hk&v=72&l=es

[5] https://logisticaportuariacbn.wordpress.com/puerto-de-hong-kong/

[6] http://www.mtr.com.hk/

[7] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-44033853

[8] https://pt.preciosmundi.com/hong-kong/preco-casa-salarios

[9] https://es.quora.com/Cu%C3%A1l-es-el-costo-de-vida-en-Hong-Kong

[10] https://pt.preciosmundi.com/hong-kong/preco-casa-salarios

[11] https://pt.preciosmundi.com/hong-kong/precos-supermercado

[12] https://www.elmundo.es/economia/2016/10/22/57fd0f0ae2704ea60a8b46ef.html

[13] Idem.

[14] Idem.

[15] https://www.itfglobal.org/es/news/finaliza-la-huelga-de-los-portuarios-de-hong-kong-despues-de-40-dias

[16] https://www.bwint.org/es_ES/cms/trabajadores-y-comunidades-en-hong-kong-se-unen-contra-el-proyecto-de-reclamo-de-tierras-1203

[17] https://www.scmp.com/news/hong-kong/politics/article/2044122/hundreds-hong-kong-lawyers-silent-march-against-beijing-oath

[18] https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/estudiantes-de-hong-kong-desafian-a-la-dictadura-china/  y  https://litci.org/es/menu/mundo/asia/china/manifestantes-piden-la-renuncia-del-jefe-ejecutivo-de-hong-kong/

[19] https://www.elmundo.es/internacional/2014/10/06/54315fd9e2704e0a5f8b4579.html

[20] https://www.infobae.com/2014/06/21/1574793-los-10-paises-la-justicia-mas-independiente-del-mundo/

[21] https://www.nytimes.com/es/2019/06/20/protestas-hong-kong-extradicion/?te=1&nl=boletin&emc=edit_bn_20190621?campaign_id=42&instance_id=10374&segment_id=14524&user_id=00d43cf2b74587eee8cd749aa535ec7f&regi_id=7524510220190621

[22] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2019/06/11/comerciantes-de-hong-kong-se-unem-a-movimento-de-protesto.htm

[23] Ver nytimes de nota 21.

[24] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-48645373

[25] https://vientosur.info/spip.php?article13502

Tradução: Rosângela Botelho

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