“Quando os Europeus vieram para
a África nós tínhamos nossas terras
e eles suas bíblias Hoje nós temos
suas bíblias e eles têm nossas terras”
Dedan Kimathi, dirigente da rebelião Mau Mau
Por: Cesar Net
No dia 1 de julho de 1895, a Inglaterra ocupou oficialmente uma vasta região na África oriental e a declarou seu “protetorado”. Aqui começou uma longa história de usurpação de terras e minerais, assim como a prática de métodos de extermínio contra aquela população. Foram décadas de humilhações, torturas e assassinatos. Desde o início da colonização até o avançar dos anos, o imperialismo inglês endureceu cada vez mais no controle e repressão dos nativos, e por fim se utilizou dos mesmos métodos e forças que tinham sido utilizadas na II Guerra Mundial, depois que haviam acabado de sair desta. Simplificando o Imperialismo Inglês usou métodos de guerra civil contra a população do Quênia.
A ocupação das terras
Quando o imperialismo Inglês declarou o Quênia como seu protetorado, na verdade ele estava assumindo para si as terras e minerais que eram dos povos que viviam naquela região, em especial os Kikuyo, Meru e Embu. Em primeiro lugar, como medida apaziguadora, os ingleses ocuparam terras que não estavam sendo utilizadas pelas comunidades locais e depois passou a incentivar os moradores locais a trabalharem para eles. Inicialmente, como o ganho era superior ao que conseguiam com a agricultura de subsistência, os nativos aceitavam o emprego e abandonavam as terras nas quais habitavam. Esta terra abandonada passou a ser mais um alvo de ocupação pelos ingleses. Este processo combinado de assalariamento e ocupação das terras foi fundamentalmente a fórmula inicial dos ingleses para a conquista do território. Por volta de 1930, as duas principais reivindicações dos nativos eram: contra os baixos salários e a exigência de uso de um documento de identidade denominado de Kipande. O Kipande era uma espécie de passaporte interno o qual as pessoas eram obrigadas a apresentar para poderem se deslocar dentro do seu próprio país. Isso mesmo, os nativos foram obrigados a apresentar o Kipande ao estrangeiro que havia invadido suas terras.
A usurpação das terras dos nativos por parte dos colonos ingleses, na Província do Vale do Rift, em 1934 foi escandalosa. Para 1.029.442 nativos foram destinadas 18.340 km2. E para 17.000 europeus foram destinadas 17.700 km2. Em outro censo, de 1948, 1.250.000 Kikuyu foram autorizados a utilizarem 5.200 milhas quadradas de terras e enquanto que 30.000 colonos britânicos usufruíam de 12.000 milhas quadradas.
Os colonos ingleses seguiam contratando mão-de-obra cada vez mais barata. Os mecanismos de pressão sobre a população nativa eram enormes. O primeiro foi o Kipande (1918), que tinha o objetivo de controlar o movimento de pessoas e evitar as deserções. Ao mesmo tempo, foram implantadas medidas que começaram a cobrar diversos tipos de impostos, tais como pelo uso da terra, sobre a circulação de mercadorias, entre outros. As medidas cumpriam uma via de mão dupla: desencorajavam o pequeno produtor a seguir lavrando a sua própria terra e, ao mesmo tempo, o obrigava a aceitar os baixos salários.
Para os colonos brancos, os nativos “eram como crianças e deviam ser tratados com tal”, isto significava que as agressões, espancamentos e até mesmo a morte eram tidos como procedimentos naturais. Na Legislação trabalhista queniana, até 1950, eram descritas e aceitas as ações punitivas.
As diversas reações
A oposição dos nativos ao imperialismo britânico se deu desde o início da ocupação. A primeira grande luta ficou conhecida como Resistência Nandi (1895-1905), depois foi a Revolta de Giriama (1913-1914); Revolta das Mulheres de Muranga contra o trabalho forçado (1947), Revolta de Kolloa (1950). Todas estas revoltas foram sufocadas com extrema violência. Winston Churchill, em 1908, chama a repressão de carnificina e afirma que se a Câmara dos Comuns se inteirasse disso, pois os Planos para o Protetorado na África Oriental estariam em risco. Winston Churchill aconselhava que devessem evitar matar em uma escala tão grande. Ou seja, Churchill disse: “matem, mas não matem tanta gente”.
Surge o movimento Mau Mau
Para os nativos a situação se tornava a cada dia mais insuportável. Por volta de 1950 foi criado o KLFA (sigla para o Exército por Terra e Liberdade do Quênia), conhecido popularmente como Mau Mau. O KLFA sabia do poderio militar dos ingleses e sabia também de suas limitações para o combate. Por esse motivo, adotaram a tática da guerra de guerrilhas. As ações dos Mau Mau eram sempre à noite. Usavam armas roubadas, como os revolveres 32 e alguns poucos 38 e usavam também facões, arcos e flechas em seus ataques. Quando a repressão se intensificou contra os Mau Mau eles fugiram para a selva.
As mulheres com coragem e heroísmo cumpriram um papel muito importante na manutenção das linhas de abastecimento. Elas atravessavam as linhas de guerra das forças coloniais para fornecer alimentos, munições, cuidados médicos e informações. Um número importante de mulheres também lutou nas frentes de batalhas e uma delas, Muthoni Kirima, chegou ao mais alto escalão dos Mau Mau. Muthoni Kirima foi considerada uma “Field Marshal” ou marechal de campo. No dia 3 de outubro de 1952, os Mau Mau cometeram seu primeiro ato político-guerrilheiro, ao matar uma inglesa proprietária de grandes terras. Em decorrência disso, seis dias depois, em 9 de outubro, o Chefe Sênior Waruhiu foi morto a tiros em plena luz do dia em seu carro pelos ingleses. Foi um golpe importante contra o governo colonial, pois Waruhiu foi um dos mais fortes defensores da presença britânica no Quênia.
A reação do imperialismo inglês
Para os ingleses, o Quênia não era uma nação independente, era parte da Inglaterra. O ex-Governador do Protetorado, em 1946, dizia: “a maior parte da riqueza do pais está em nossas mãos. Este país nós construimos e a terra é nossa por direito, direito de construção”. Para os imperialistas ingleses não lhes importava o meio ambiente, as pessoas ou as vidas. Para eles, segundo a mesma autoridade colonial: “o principal item dos recursos naturais do Quênia é a terra, e neste termo incluímos os recursos minerais da colônia. Parece-nos que o nosso principal objetivo deve ser claramente a preservação e a utilização sensata desta ativo importante”.
A “preservação e a utilização sensata dos recursos” começou com o envio de um novo governador, Evelyn Baring, que talvez tenha sido o mais racista e cruel dos governadores ingleses. Seu pai havia sido governador, com mãos de ferro, no Egito. Baring filho foi governador da Rodésia do Sul (1942-44), Alto Comissário para a África Austral (1944-1951) e governador do Quênia (1952-59). A primeira iniciativa de Baring foi promover prisões em massa. Cerca de 180 presos em um dia, entre eles, Jomo Kenyata. Kenyata e outros foram condenados a longas penas, em processos fraudados. Nenhum dos grandes líderes Mau Mau foi preso nesta operação. Um dia após as prisões, a vingança veio através do assassinato do chefe legalista Nderi, capturado pelos Mau Mau e cortado em pedaços.
Nos meses seguintes a ofensiva dos Mau Mau prosseguiu e vários colonos ingleses foram assassinados. Evely Baring que acreditava que, com sua superioridade militar, derrotaria facilmente as forças insurgentes. A realidade mostrou que os insurgentes tinham apoio popular e um grande poder de fogo. Restou ao Baring ampliar suas forças. Assim, foram trazidos três batalhões da força conhecida por “Rifles Africanos do Rei”, estes atuavam em Uganda, Tanganica e Maurício. Com isso, no Quênia, haviam cinco batalhões, ao todo, e mais 3.000 soldados composto por quenianos nativos. Somando-se a aqueles foram trazidos também um batalhão de tropas britânicas, os “Fuzileiros de Lancashire”, que estavam no Egito. E em novembro de 1952, Baring solicitou assistência do MI5, o serviço secreto inglês.
Operação Anvil
A capital, cidade de Nairobi, em 1954, era o principal centro de operações dos Mau Mau. Naquele local ocorreu a “Operação Bigorna” que contou com a presença de 25.000 membros das forças repressivas britânicas, comandadas pelo General George Erskine. Erskine havia comandado, nada mais nada menos, a 7ª Divisão Blindada do Exército Inglês, no período de 1943 a 1944, na Segunda Guerra Mundial. Durante a operação a cidade de Nairobi foi isolada e submetida a uma varredura setor por setor. Todos os moradores foram levados para campos de concentração temporários, aqueles que não eram Kikuyu, Embu ou Meru foram libertados. Os membros destes três povos foram mantidos presos para triagem e verificação de ligação com os Mau Mau. Os homens foram separados para interrogatórios, principalmente no Campo de Concentração Langata, Screening Camp. As mulheres e crianças foram enviadas compulsoriamente para reservas criadas para “limpar” Nairobi de focos indesejáveis. Muitas destas mulheres jamais tinham saído de Nairóbi. A Operação Anvil (ou bigorna) durou duas semanas e nesse lapso 20.000 suspeitos foram enviados para Langata, e dentre estes 30.000 foram enviados para as reservas.
Força Aérea Britânica entra em ação
A mesma RAF (Real Força Aérea) britânica que cumpriu um papel de destaque na II Guerra Mundial, ao destruir 1.887 aviões e provocar a baixa de 25.000 soldados alemães, foi chamada para reprimir os Mau Mau. Entre junho de 1953 e outubro de 1955, a RAF bombardeou as densas florestas para aonde haviam fugido os insurretos. Os bombardeios ocorreram de forma aleatória, porém inicialmente circunscritos à região da floresta. Os relatos militares indicam que por volta de 900 insurgentes foram mortos ou feridos por ataques aéreos. E quanto ao número de civis mortos não encontramos informações. Foram usados aviões Avro Lincoln que espalharam 6 milhões de bombas. Estes mesmos aviões também foram usados para espalhar terror entre a população ao lançar panfletos com fotos de mulheres e crianças mortas. E durante a Operação Cogumelo foi ampliada a área a ser bombardeada para além da floresta, tendo o consentimento de Churchil, no dia 19 de janeiro de 1954. Assim, os bombardeios se estenderam às vilas e cidades, atingindo diretamente a população civil.
Campo de Concentração, Campo de Trabalho Forçado e Campo para Crianças
Tal qual na Alemanha nazista foram instituídos campos de concentração, de trabalhos forçados e para crianças. O modelo nazista que havia sido derrotado na II Guerra Mundial foi usado pelo imperialismo inglês contra os Mau Mau e a população civil. Os presos eram enviados para os campos de concentração, onde havia um sistema de triagem que estabelecia entre os prisioneiros aqueles que eram considerados como ‘recuperáveis’, que por sua vez eram enviados para as reservas, através dos chamados Pipeline. Uma viagem pelos pipeline poderia durar alguns dias. E durante o trânsito, havia frequentemente pouca ou nenhuma comida ou água, e raramente qualquer saneamento. Os presos nos campos de concentração eram proibidos de falar fora de suas cabanas.
Documentos militares da época relatam que nos campos havia: “pouca comida, excesso de trabalho, brutalidade, tratamento humilhante e nojento, flagelação. Violando em todos os aspectos a Declaração Universal dos Direitos Humanos”.Nesse sentido, outro informe, de 22/11/1954, do Chefe de Polícia Arthur Young ao Governador Baring, diz: “os campos apresentam um estado tão deplorável que eles devem ser investigados sem demora, para que as denúncias cada vez maiores de desumanidade e desconsideração dos direitos do cidadão africano sejam minorizadas e para que o Governo não tenha que se envergonhar dos atos que são feitos em seu próprio nome por seus próprios servidores”.Dessa forma, os campos de trabalho forçados eram ainda piores. Para onde iam os recalcitrantes, aqueles que não se dobravam, aqueles que não colaboravam com a repressão imperialista.
Um dos campos de trabalhos forçados, o de Embakasi, ficava próximo ao local onde estava sendo construído o atual aeroporto internacional, cuja construção deveria ficar pronta antes do final do Estado de Emergência. Por sua vez, o aeroporto era um grande projeto, com uma insaciável sede de mão-de-obra e um cronograma de obras apertado. O trabalho forçado, sob disciplina militar, faziam com que os detentos além de não serem remunerados ainda tinham jornadas extenuantes e condições de vida pior que a dos campos de concentração. Além dos campos de concentração e de campos de trabalhos forçados foram criados também para crianças, sendo o mais conhecido o Wamumu Camp.
Os crimes de guerra praticados pelo imperialismo inglês
A historiadora inglesa, Caroline Elkins, calcula que entre 130.000 e 300.000 foram mortos. Porém, seus dados são questionados pelo demógrafo John Blacker que afirma que morreram “apenas” 50.000. Uma coisa é certa, segundo os documentos militares 1.090 pessoas receberam a pena capital. E as torturas variavam do corte as orelhas, perfuração dos tímpanos, derramamento de parafina quente nos corpos, castração e espancamento até a morte.
Hussein Onyango Obama, avô do ex-presidente dos EUA, conta que enfiaram alfinetes em suas unhas e nádegas, além disso teve seus testículos apertados por duas hastes de metal em forma de alicate. Eric Griffith-Jones, procurador-geral dos Campos de Concentração, escreveu para o governador Baring e comparava com as “condições dos nazistas ou da União Soviética”. Este recomendou que os espancamentos não atingissem os rins, fígado e baço. E que os torturadores deveriam ser profissionais, equilibrados e sem paixão.
Derrota militar e vitória política
O ímpeto, o voluntarismo e as atitudes heroicas dos Mau Mau não foram suficientes para vencer. Eles foram derrotados. E foram derrotados pelas Forças Armadas do imperialismo inglês com longa tradição de repressão colonial, além disso, foi ela protagonista nas duas Guerras Mundiais. Uma derrota militar que abalou o movimento de massas. Desde a retirada das tropas inglesas, após a vitória, não houve um dia de sossego para o imperialismo.
Já não se tratava dos métodos guerrilheiros, agora entrava em cena o movimento de massas. Vivia-se a clássica expressão de Lenin: “quando os de cima já não podem governar como antes e os debaixo já não se deixam governar como antes”. No final dos anos 50 do século passado, os ingleses concluíram que já não poderiam governar como antes e começaram a cooptar antigos dirigentes nativos, alguns tinham sido membros ou apoiadores dos Mau Mau. Isso para a formação de um governo de reconciliação. Em dezembro, de 1960, a Inglaterra suspendeu o Estado de Emergência. Os dois partidos União Nacional Africana do Quênia e União Democrática do Quênia, pactuaram com os ingleses e exigiram que Jomo Kenyatta fosse libertado, fato que se deu em 21 de agosto de 1961. Em maio de 1963, a oposição conquistou 83 das 124 cadeiras no parlamento e Jomo foi eleito Primeiro Ministro. Durante aquele mandato foi orquestrada a independência e a reconciliação. A independência foi declarada em dezembro de 1963 e um ano depois o então Primeiro Ministro se tornou o primeiro Presidente do Quênia.
Um traidor no governo
Jomo Kenyata não só propôs a reconciliação, como também manteve diversos funcionários brancos ligados à guerra, contra os Mau Mau, em cargos chave em seu governo. Ele filiou o Quênia ao Commonwealth (Comunidade das Nações presidida pela Rainha da Inglaterra) e renegou completamente o seu passado como militante Mau Mau. Em abril de 1963 ele afirmava: “Estamos determinados a ter independência em paz e não permitiremos que vagabundos governem o Quênia. Não devemos ter ódio uns pelos outros. Mau Mau era uma doença que foi erradicada, e nunca mais deve ser lembrada”.
Luta por reparações obtém importantes vitórias parciais
Em 2011, quatro quenianos, abriram um processo contra a Inglaterra exigindo reparações pelas violências cometidas entre 1952-1956. Paulo Nzili, Ndiku Mutua, Wambugu Wa Nyingiy e Jane Muthori Mara, são octogenários que viveram o horror da repressão. Os dois, Nzili e Mutua, foram castrados depois de serem acusados de fazer parte da guerrilha dos Mau Mau. Eles afirmam que só ajudaram no fornecimento de água e comida. Já Wa Nyingiy foi preso em vários campos de concentração, foi torturado e nunca soube qual era a acusação contra ele. E Jane Muthori Mara foi presa aos 17 anos, violentada e dentre outras torturas sofrida por ela, a mesma relata que os militares introduziam garrafas com água quente em sua vagina.
Inicialmente, a Inglaterra negou os fatos e alegou falta de provas. Quando a luta pela reparação saiu dos Tribunais e ganhou as ruas, o governo inglês foi obrigado a abrir os arquivos secretos, Foreign Office, e lá se encontram 300 caixas com mais de 1.500 documentos que confirmam as atrocidades, relatavam os diversos episódios e fatos do processo repressivo.
Desde então, o Estado inglês se viu obrigado a reconhecer os crimes de Lesa Humanidade e começou a pagar as indenizações individuais. Em 2013, por exemplo, pagou £ 19.9 libras aos 5.228 quenianos. No entanto, há outros 41.000 reivindicando o mesmo direito. É uma importante vitória parcial e de caráter individual.
A próxima etapa deve seguir o curso de requerer a Reparação Coletiva com o julgamento e condenação dos torturadores e genocidas, devolução das terras e riquezas usurpadas pelos ingleses e mais que tudo, a reparação deve obrigatoriamente apontar para a luta por uma Segunda Independência do Quênia, esta no campo econômico e social.