qua jul 24, 2024
quarta-feira, julho 24, 2024

QUÊNIA: Três semanas de mobilizações contra o governo recém-eleito

A posse do presidente do Quênia William Ruto completou apenas dez meses e seu governo já está encarando o segundo ciclo de manifestações provocado pela ira das massas. Os efeitos da crise econômica mundial e da guerra na Ucrânia têm sido devastadores para o país. As primeiras manifestações começaram em março[1], e neste mês de julho se intensificaram.

Por: Cesar Neto

Assim, o Quênia entra na rota das fortes mobilizações que estão acontecendo na África neste primeiro semestre de 2023. Moçambique, Senegal, Angola e África do Sul são alguns exemplos de países onde ocorrem essas fortes mobilizações.

As razões imediatas das lutas na África

As massas nesses e em outros países africanos estão pagando um duro preço pela queda dos preços das commodities, aumento dos preços dos combustíveis e transporte e, finalmente, dos preços dos alimentos, sendo que em alguns países esses preços dobraram nos últimos meses.

As mobilizações explodem sem prévio aviso

As mobilizações explodem a partir de questões das mais variadas. Em Moçambique, por exemplo, o enterro de Azagaia[2], um cantor muito reivindicado pela juventude, alterou a pax imposta pela FRELIMO. Aparentemente, a FRELIMO conseguiu, à custa de muita repressão, controlar as manifestações que vieram à tona após a morte do cantor, autor da famosa música africana “Povo no Poder”. Porém, os médicos e funcionários públicos do país já estão anunciando mobilizações.

No Senegal[3], a explosão se deu a partir da tentativa de prisão de Ousmane Sonko, um candidato populista às eleições de 2024. Na verdade, o grande problema no país é o desemprego, a inflação e a falta de perspectiva para a juventude.

Em Angola, após o aumento dos preços dos combustíveis, e dos preços dos alimentos dobrarem em apenas uma semana, os taxistas e mototaxistas começaram uma pequena mobilização pela obtenção de prometidos bônus para a gasolina, e essa movimentação imediatamente se espalhou, se transformando em uma semana de mobilizações por todo o país.

No Quênia, depois das manifestações de março, neste mês de julho o povo sai às ruas pela terceira semana seguida. O candidato derrotado nas últimas eleições, Raila Odinga, chamou a população a uma manifestação e, antes que a cancelasse, o povo já tinha tomado as ruas. Vamos tentar explicar melhor os motivos das mobilizações no Quênia.

Quênia: Exporta commodities não processadas e importa produtos industrializados

O Quênia é um país historicamente sufocado pelo imperialismo inglês. Inclusive, a mesma Força Aérea que lutou na II Guerra Mundial foi utilizada no início dos anos 1950 para sufocar a luta dos camponeses quenianos. Esses camponeses lutavam pela preservação de suas terras, usurpadas por colonos ingleses a serviço do grupo Lever – terras utilizadas para a produção de chá. Há setenta anos, o principal produto de exportação da região é o chá, que hoje é distribuído mundialmente pela Unilever.

As exportações quenianas são fundamentalmente de produtos não industrializados, destacando-se: chá (US$ 1,2 bilhão), flores (US$ 766 milhões), café (US$ 262 milhões), petróleo refinado (US$ 247 milhões) e minério de titânio (US$ 194 milhões). Essas poucas exportações não garantem uma balança comercial minimamente equilibrada. As importações desequilibram a balança comercial na aquisição de: petróleo refinado (US$ 3,53 bilhões), óleo de palma (US$ 1,26 bilhão), medicamentos embalados (US$ 554 milhões), carros (US$ 549 milhões) e ferro laminado a quente (US$ 508 milhões). Dessas exportações, 30% vão para países africanos que também estão em crise.             Quanto às importações, 70% vêm da China e da Índia, o que explica parte do endividamento com esses países.

Esse desequilíbrio comercial determinou que, em 2021, o Quênia fosse a 59ª economia do mundo em termos de PIB, a 109ª em exportações totais, a 81ª em importações totais, a 142ª economia em termos de PIB per capita. O IDH do país, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é classificado como baixo, ocupando o 152º° lugar entre 191 países.

Quênia: um país sufocado pela dívida pública

Em 2021, durante a pandemia, sua dívida externa estava em US$ 71 bilhões; oito anos antes estava em US$ 16 bilhões. 30% de sua receita é destinada ao pagamento do serviço da dívida, isto é, somente aos juros. 69,1% do PIB corresponde à dívida. Entre as 50 economias com maior risco de incapacidade de pagar as dívidas, o Quênia está em 6º lugar, segundo a agência de investimento Bloomberg.

Os efeitos da guerra na Ucrânia

Os efeitos da guerra na Ucrânia foram imediatamente sentidos pelos trabalhadores quenianos. A inflação atual no país está na casa dos 10%, porém esse percentual não expressam exatamente o aumento dos preços na mesa das famílias quenianas. O preço dos alimentos disparou. O açúcar, por exemplo, aumentou 58% em um ano.

A tempestade perfeita que assola a economia

Além dos problemas estruturais típicos de uma economia semicolonial, o país tem que enfrentar sucessivos anos de déficit da balança comercial, recessão e aumento das taxas de juros, que fazem crescer em disparada a dívida externa. Não há saída para esse país caso não suspenda o pagamento da dívida, nacionalize a terra e tenha um forte plano de obras públicas para gerar emprego. Nesse caso, nem Wiliam Rutto, atual presidente, nem o candidato derrotado nas últimas eleições, Raila Odinga, estão dispostos a encarar o FMI, o Banco Mundial e as transnacionais.

A ira começou em março

Em março deste ano, com apenas seis meses de governo de William Rutto, começaram as mobilizações. Raila Odinga, o candidato derrotado no último pleito, tentou capitalizar o descontentamento popular, chamou a mobilização e perdeu o controle sobre ela.

No primeiro dia de manifestações, uma imensidão de pessoas saiu às ruas protestando contra o governo. As manifestações foram gigantescas, para o que é a tradição de um país mergulhado em um regime bonapartista há quase 50 anos. Milhares de pessoas marcharam na mobilização nacional contra os preços dos alimentos e custo de vida. Para o governo, “as manifestações são inconstitucionais e atrapalham a paz e os negócios no país”.

Com bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e armas letais, as manifestações foram momentaneamente controladas. Foi possível controlar as manifestações graças aos acordos militares de contrainsurgência assinados entre EUA e Israel e a polícia e as Forças Armadas quenianas.

As mobilizações de julho

Uma jornada de três dias de protestos começou na segunda feira (17/07). Rapidamente, ganhou extensão nacional e as principais cidades do país estiveram envolvidas. Rios de pessoas tomavam as ruas. Nos bairros mais afetados pela repressão, os moradores saíam de suas casas para distribuir água para que os manifestantes lavassem o rosto e amenizassem os efeitos do gás lacrimogêneo.

As reivindicações estavam relacionadas ao aumento dos combustíveis, ao imposto de 3% sobre os salários para um suposto fundo para construir casas populares, e, acima de tudo, à inflação que atingia o preço dos alimentos. Um cartaz dizia: “Rutto deve reduzir o custo do unga [farinha de milho] ou deve simplesmente desistir”. A farinha de milho é fundamental para a alimentação da população queniana.

“Ruto, acabe com a inflação ou seguiremos nas ruas!” Esse é o grito de guerra nas mobilizações, ou seja: ou resolve a questão dos preços dos alimentos ou vá embora. 

Apesar da repressão, foram três dias de mobilizações, mesmo com a oposição tentando marcar distância das ruas. O líder opositor, Odinga, não foi visto em nenhum local público, e segundo seus seguidores estava em local “muito seguro.” Através das redes sociais, afirmou: “Este é um movimento popular e não requer que alguém os lidere”.

O traço comum das mobilizações africanas

As principais mobilizações africanas dos últimos meses têm como traço comum o modelo repressivo de extrema violência utilizado pelos governos. Antes, os governos e seus aparatos repressivos já atuavam com muita violência, com o emprego de gás lacrimogêneo, balas de borracha e em alguns casos com veículos especiais. Porém, nas últimas mobilizações tem sido reportado o uso de armas letais contra os manifestantes. Isso é o que explica que em Angola tenham ocorrido 13 mortes até o momento, entre elas a de um menino de 12 anos; no Senegal foram 23 mortos e mais de 500 feridos; no Quênia são mais de 30 mortes, somadas as manifestações de março e julho.

Por outro lado, a ira e radicalização das massas têm levado a que se incendeiem veículos policiais, delegacias de polícia e órgãos públicos. Em Angola, até mesmo a sede do partido do governo foi incendiada. Essas ações, embora isoladas, mostram o grau de explosividade do movimento.

A barbárie da fome e da miséria se soma à barbárie repressiva, e tudo isso sem que os trabalhadores tenham desenvolvido mecanismos de autodefesa e, para piorar, sem que haja organizações que defendam a criação desses mecanismos.

A ira das massas e a crise de direção

As massas proletárias têm feito sua parte e, além disso, têm arrastado setores médios para os enfrentamentos. Há muita radicalidade e heroísmo nessas mobilizações, mas falta a direção política independente dos trabalhadores. Essa é a maior tragédia de todas. Em Angola, a cara visível da oposição é a UNITA, um partido que é parte do regime; no Senegal, a oposição é liderada por um pequeno-burguês populista, Ousmane Sonko, que tem um projeto político que é apoiado pelos EUA; no Quênia, as mobilizações são chamadas por Raila Odinga, candidato derrotado nas últimas eleições por pequena margem de votos (50,49 x 48,85%) e que, junto ao candidato vencedor, William Ruto, fez parte dos últimos dois governos.

A tarefa central hoje para a vanguarda queniana é construir um programa anti-imperialista, anticapitalista, independente dos patrões e assentado nas organizações dos trabalhadores, dos jovens e do povo pobre. Nós, da Liga Internacional dos Trabalhadores, apoiamos incondicionalmente esse esforço político.


[1] Quênia: As massas superam o medo do regime bonapartista e se levantam – <https://litci.org/pt/2023/03/27/quenia-as-massas-superam-o-medo-do-regime-bonapartista-e-se-levantam/>.

[2] Moçambique: A morte do rapper Azagaia e a ditadura do FRELIMO https://litci.org/pt/2023/03/21/mocambique-a-morte-do-rapper-azagaia-e-a-ditadura-do-frelimo/>.

[3] Senegal: Uma nova onda de mobilizações contra o governo bonapartista de Macky Sall – <https://litci.org/pt/2023/06/23/senegal-uma-nova-onda-de-mobilizacoes-contra-o-governo-bonapartista-de-macky-sall/>.

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