África do Sul: As rodas estão se soltando
Há alguns anos atrás um importante dirigente do CNA disse: “I fear the wheels are coming off” (temo que as rodas estejam saindo) ao se referir a situação econômica e política da África do Sul. Ele não só tinha razão como as rodas continuam se soltando.
Por: Cesar Quiximba
Nesses anos, em linhas gerais, podemos dizer que houve um violento processo de desindustrialização e com ele o aumento do desemprego, e os BRICS tem sido mais uma porta aberta contra os interesses nacionais. Ao mesmo tempo o movimento de massas vem mostrando sua força. As lutas dos estudantes universitários (#Fees must fall e #Rhodes Must Fall), mobilizações contra o Massacre de Marikana, luta pelo fim do governo de Zuma e a greve geral no último mês de abril.
Uma economia em acelerado processo de decadência
Há alguns anos a África do Sul vem sofrendo um acelerado processo de decadência econômica que se expressa no declínio da taxa de crescimento econômico, nos déficits da balança de pagamentos e no baixo aumento na taxa de emprego, particularmente para trabalhadores menos qualificados e jovens. A chave para entender essa decadência passa pelo processo de desindustrialização. Em 1994 a produção industrial representava 21% do PIB e em 2016 estava em 13,3%. A mineração caiu de 13% para 7%.
Desde a crise mundial de 2008 a situação vem agravando-se e o crescimento anual da mineração e da indústria tem sido insignificante. Economistas afirmam que considerando-se o estágio de desenvolvimento da África do Sul, a contribuição da indústria na formação do PIB deveria hoje estar entre 28 e 32%. Isso, teoricamente falando, teria criado entre 800 mil e 1,1 milhão de empregos.
De 1995 a 2016, a população cresceu de 45 milhões para 55 milhões, mas o desemprego cresceu de 3,7 milhões para 7,7 milhões. Desde 2008, apenas meio milhão de empregos foram criados, a maioria dos quais no setor de serviços e a maior parte em trabalhos precários lançados pelo governo.
BRICS: peixe pequeno em rio de peixes grandes
Os sucessivos govenos do CNA comemoram o ingresso da África do Sul ao Bloco dos BRICS. Num rio de grandes peixes como Brasil, Rússia, Índia e China, a África do Sul é o peixe pequeno a ser devorado pelos grandes. Um exemplo é a cadeia produtiva do frango. Esse setor emprega entre trabalhadores diretos e indiretos, aproximadamente 100.000 postos de trabalho. Agora com o acordo dos BRICS, em funcionamento, começaram a entrar frango brasileiro subsidiado e com taxas de importação extremamente reduzidas.
O resultado é que o frango brasileiro, mais barato, está levando a quebra esse setor e provocando mais desemprego. O exemplo do frango é o mais emblemático, mas de conjunto o setor manufatureiro está se desestruturando. O açúcar sul africano antes altamente competitivo também entra na roda da desindustrilização. No último 25 de junho houve uma importante marcha de produtores em KwaZulu-Natal contra a importação de açúcar com preços reduzidos. O próprio governo reconheceu que “muito açúcar entra no país e a indústria está sangrando”.
BRICS: a serviço da desnacionalização da economia
Duas importantes empresas estatais da Africa do Sul, devastadas pela crise econômica e pelos processo de corrupção, precisaram de injeção de capitais. A Eskrom (empresa de energia elétrica) recebeu US$ 5 bilhões de dólares da China e outros, US$ 2,4 bilhões dos países membros do Brics; a Transnet (trens, terminais portuários e oleodutos) recebeu outros US$ 4 bilhões do Banco Industrial e Comercial da China.
Até o momento, o Tesouro e o governo têm sido extremamente relutantes em divulgar detalhes relacionados a esses empréstimos. O PSA (Public Servants Association/Associação dos Servidores Públicos) apresentou moção a Alta Corte para descobrir os detalhes dos empréstimos.
Há um crescente clamor social em conhecer os detalhes dos empréstimos chineses, especialmente à luz da recente experiência do Sri Lanka. Em 2010, essa nação insular recebeu empréstimos da China para construir um novo porto em Hambantota, no sudeste do país. Quando os empréstimos não puderam ser atendidos, o governo foi obrigado a aceitar um arrendamento por 99 anos do porto a uma empresa chinesa. O PSA já antevê desnacionalização da Eskron e da Transnet.
A desesperante situação da classe trabalhadora
A taxa de desemprego na ordem de 26,7%, sendo que entre os jovens entre 15 a 24 anos, mais de 3 milhões. Cerca de um em cada três jovens trabalhadores não está trabalhando. É uma tragédia para os trabalhadores, mas para os patrões é um fator para pressionar os trabalhadores para aceitarem as piores condições. O salário mínimo é de 20 rands a hora. Uma servente escolar, por exemplo, ganha 4 mil rands por mês, ou mil rands na semana, ou 200 rands diários.
O quilo de carne está em 100 rands, duas passagens de lotação custam 40 rands. Portanto, esse salário alcança apenas o suficiente para pagar a passagem, um quilo de carne e sobra apenas 30% do ganho diário para outras despesas. Em Cape Town, na zona das grandes fábricas de confecção, é comum ver mulheres sentadas na calçada na hora do almoço fazendo a refeição. O almoço em geral é pão com sardinha, salsinha ou pão com abacate. Os acidentes de trabalho são uma constante.
No final de julho 6 trabalhadores morreram em uma mina. Nos primeiros dias de setembro, foram outros 8 em uma indústria. Não é uma ‘fatalidade’ como diz a nota da central sindical COSATU, é parte da exploração capitalista e do abuso contra os trabalhadores.
O Massacre de Marikana
A classe trabalhadora é massacrada pelo desemprego, baixos sálarios e acidentes do trabalho. Em 2012 houve um outro tipo de massacre através do assassinato de 34 trabalhadores em greve.
A empresa de mineração Lonmin, de capital inglês, com 28 mil trabalhadores, enfrentou-se com um piquete de 3.000 pessoas que já durava uma semana. Não foi a empresa que se enfrentou com os trabalhadores, foi o Estado sulafricano comandado pelo CNA/Cosato/Partido Comunista, que colocou a disposição da empresa 400 homens armados de fuzil AR 15, carro de assalto, helicópteros e pasmem: dois carros para transportar até 10 cadaveres cada um. Isto significa que antes da operação já se previa o massacre.
À epoca, um dos executivos da Lonmin era Cyril Ramaphosa, velho quadro sindical e da direção do CNA, atualmente é o presidente da República. Durante as investigações foram encontrados diversos emails de Ramaphosa defendendo uma lição exemplar!
Desnutrição e fome: cotidiano dos trabalhadores sul africanos
As formas mais cruéis do massacre contra os trabalhadores e o povo pobre sul africano é a da fome e a da desnutrição. A África do Sul produz calorias suficientes para alimentar seus 53 milhões de habitantes. No entanto, uma em cada quatro pessoas passa fome e mais da metade da população corre o risco de passar fome, segundo dados do orgão estatal Stats SA (Statistics South Africa). O número de pessoas afetados pela fome está estimado em cerca de 13 milhões.
A desnutrição se dá quando o indivíduo não pode mais manter suas capacidades corporais naturais como crescimento, gravidez, lactação, habilidade de aprendizado, trabalho físico e resistência, além da superação de doenças. O desnutrido pode estar abaixo do peso ou com sobrepeso. A desnutrição infantil na África do Sul está na casa de 26,5%, os níveis de obesidade estão entre os mais altos do mundo e se apresenta em 42% das mulheres.
As razões para esse quadro são os baixos salários e o desemprego, em primeiro lugar. Mas também tem muita importância a concentração de capital na medida em que os cinco grandes varejistas de alimentos controlam 60% do mercado, promovendo alimentos processados de baixa qualidade, quebrando os varejistas menores e os comerciantes informais, e como se fosse pouco, revendem os alimentos vencidos para cadeias menores que os vendem nas regiões mais pobres.
As rodas começam a se soltar e começa a surgir uma nova direção
Depois de quase 25 anos de governo tripartite dos partidos CNA (African National Congress), PC da África do Sul e da central sindical COSATU (Congress of South African Trade Unions) a experiência das massas se acelera. O desgaste do último presidente eleito Zuma era tal que o próprio CNA na condição de força majoritária no Congresso impôs a renuncia de Zuma e a ascensão de um novo presidente, Cyril Ramaphosa, celebre por seu papel no Masacre de Marikana. Já desde 2010 mais ou menos uma fração da COSATU começou a diferenciar-se da maioria da direção e a construir seus próprios sindicatos.
Em Marikana foi construído um sindicato alternativo e quando este conseguiu afiliar a 51% dos trabalhadores, chamou a greve. A primeira repressão à greve, com dois mortos, foi provocada pela própria burocracia. Depois a burocracia sindical juntou-se com a empresa e com o Estado para reprimir e matar os outros 32 trabalhadores. Aí entrou a figura do Cyril Ramaphosa, ex dirigente sindical mineiro e naquele momento diretor da empresa Lonmin.
Em 2012, o sindicato nacional de metalúrgicos – NUMSA (National Union of Metalworks of South Africa) – se negou a apoiar as candidaturas do CNA/PC e por essa atitude foram expulsos da Central Sindical COSATU. Em 2013, o NUMSA em seu congresso extraordinário lança a ideia de construir um partido de trabalhadores o qual recebe o nome de Works Revolutionary Socialist Party. Em 2017, foi fundada a SAFTU (South African Federation of Trade Unions), com mais de 20 sindicatos nacionais afiliados, rompendo o isolamento do NUMSA.
Em 2018, os dirigentes sindicais resolveram impulsionar a construção do Workers Party. As comparações com o PT brasileiro na sua origem são inevitáveis e até estimuladas. Para nós há pontos de contato, mas também importantes diferenças. Primeiro por que o PT na sua origem estava respaldado num enorme ascenso de massas e os grupos de esquerda tinham um importante peso nas disputas com a burocracia sobre os rumos do PT.
O Workers Party, é verdade que ganha um importante impulso com a queda do presidente Zuma e a greve geral do último mês de abril, mas está muito longe do ascenso brasileiro do início do PT. A ausência de fortes grupos de esquerda impede que haja um contraponto às posições mais reformistas. E como se não bastasse, na articulação do Workers Party há a presença inclusive de ONGs financiadas por organizações que defendem um capitalismo humanizado. O programa deve ser a síntese das posições que se expressam no interior do movimento sindical, das ONGs e de alguns grupos marxistas de pouco peso.
Um dos sindicatos mais importantes, o da alimentação, FAWU (Food and Allied Workers Union), por exemplo, é parte da campanha nacional contra a importação de frango. Fazer a campanha é correto. O incorreto é construir uma frente única permanente com os empresários. Andar de mãos dadas com o inimigo nunca foi uma boa alternativa para os trabalhadores. Os sindicatos que estão por trás das articulações do Workers Party somam por volta de 800 mil trabalhadores. Um número significativo na atual conjuntura.
Uma grande desafio para a esquerda marxista
No final dos 80 e começo dos 90 do século passado a classe trabalhadora deu grandes batalhas pelo fim do sistema de segregação, conhecido como Apartheid. A principal figura desse processo foi Nelson Mandela que havia passado 27 anos na prisão. A heroica vida de Mandela pelo fim do Apartheid não pode ser confundida com suas opções políticas. Mandela foi libertado graças às mobilizações de massas, mas aceitou imposições como a abertura da economia, a competição desigual e o fechamento de centenas de empresas com o consequente desemprego. Aliás, a mesma política foi aplicada por Menen na Argentina e Collor no Brasil.
Passado quase 25 anos, os trabalhadores e o povo pobre vão rompendo com a herança política de Mandela e vão as ruas em manifestações, lutas juvenis, nos bairros e, mais que tudo, com a greve geral de abril de 2018. Dessa maneira vão recompondo suas forças.
Nesse período são necessários novos organismos de luta e assim vai sendo formada uma nova central sindical, SAFTU e um novo partido, o Workers Party. Ambas as organizações são as mais importantes ferramentas no processo de reorganização da classe trabalhadora. Esse é um fenômeno raro de acontecer e a última vez foi há 30 anos. Cabe aos grupos marxistas saberem aproveitar essa oportunidade, construindo frações nessas organizações e disputando-as politicamente.