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quinta-feira, março 28, 2024

Há uma “direitização política” na América Latina?

A vitória de Mauricio Macri nas eleições presidenciais argentinas parece dar razão a setores muito numerosos da esquerda latino-americana que afirmam que há uma “direitização política das sociedades” em nosso continente.

Por: Alejandro Iturbe

Um exemplo claro desta visão é a declaração que a chamada “Rede de intelectuais e artistas em defesa da humanidade” publicou poucos dias antes da realização do segundo turno na Argentina:

 Não é mais uma eleição nacional, mas uma disputa que pode ter repercussões continentais se a direita chegar à Casa Rosada, provocando uma mudança na atual correlação de forças regional“.

Uma possível vitória do macrismo na Argentina representaria um novo impulso para as forças da direita do continente que pretendem vencer as eleições municipais na Venezuela em 6 de dezembro”; ajudaria a “impedir a nova candidatura de Evo Morales por meio do referendo que será realizado em fevereiro de 2016 na Bolívia e precipitar a derrubada de Dilma Rousseff no Brasil”.1

Não concordamos com esta visão. Consideramos que faz uma análise superficial que leva a conclusões equivocadas em sua interpretação da realidade e dos processos políticos que estão ocorrendo na consciência e na percepção política das massas.

Achamos que é superficial porque só considera um aspecto superestrutural (os resultados eleitorais), sem levar em conta os processos mais profundos da luta de classes. E mesmo no terreno eleitoral simplifica ao extremo as complexas contradições que ocorrem na consciência das massas.

O fracasso do neoliberalismo e as revoluções

Para explicar nosso ponto de vista, vamos fazer uma breve recapitulação do que ocorreu nos últimos 20 anos no continente.

Na década de 1990, dominavam os governos latino-americanos chamados neoliberais (como Carlos Menem, na Argentina, e Fernando Henrique Cardoso, no Brasil). Aplicaram uma política de entrega e privatizações da economia de seus países e atacaram duramente as condições de trabalho e o salário.

No início do século XXI, a resposta de luta dos trabalhadores e do povo contra essa política (que já vinha dos anos anteriores) se transformou em processos revolucionários em vários países que, em muitos casos, derrubaram esses governos: em 2000, no Equador (contra Jamil Mahuad); em 2001, na Argentina (contra Fernando de la Rúa); em 2003, na Bolívia (contra Gonzalo Sánchez de Lozada). Na Venezuela, este tipo de processo que já tinha ocorrido em 1989, quando o “Caracaço” deixou mortalmente ferido o governo de Carlos Andrés Pérez e o chamado regime do Ponto Fixo. A situação se aprofundou em 2002-2003, quando a mobilização dos trabalhadores e do povo derrotou o golpe e o lockout patronal contra o governo de Chávez.

A década das frentes populares e do populismo

As burguesias nacionais e o imperialismo estavam na defensiva e, em resposta a esses processos revolucionários em escala continental, aceitaram (e em muitos casos impulsionaram) governos de frente popular (de aliança de classes) ou populistas: Hugo Chávez na Venezuela; Rafael Correa no Equador; Néstor Kirchner na Argentina e Evo Morales na Bolívia. No Brasil, não chegou a estourar um processo revolucionário, mas, de modo preventivo, Lula e o PT chegaram ao governo.

Esses governos refletiam uma profunda contradição. Por um lado, eram expressão distorcida do ascenso revolucionário e, por isso, vários deles “vestiram de vermelho” e de anti-imperialista o seu discurso, tomavam algumas medidas nacionalistas mornas e parciais e davam algumas concessões às massas. Por outro lado, eram burgueses até a medula e seu objetivo central era frear as revoluções e salvar o capitalismo e o regime burguês.

Por isso, jamais ultrapassaram os limites do sistema econômico capitalista nem do seu Estado. Aqui se aplica, com todo o rigor, uma premissa cada vez mais atual: quem não rompe com o imperialismo e com o capital financeiro acaba, cedo ou tarde, sendo seu instrumento.

A crise desses governos

Durante vários anos, contaram com o contexto favorável da situação econômica mundial (a fase expansiva de 2002-2007) pelos altos preços das matérias-primas e dos alimentos exportados, situação que se estendeu por alguns anos graças à demanda da China.

Mas, a partir de 2011-2012, a “bonança” chegou ao fim e esses governos tiveram que começar a aplicar planos de ajuste cada vez mais duros atacando as concessões dadas, a saúde e a educação públicas, as condições trabalhistas e contratuais e o emprego. Isto é, começaram a aplicar o programa pleno da direita neoliberal e, em muitos casos, a levar seus representantes para o governo (como é o caso dos ministros da Fazenda, Joaquim Levy, e da Agricultura, Kátia Abreu, no Brasil). Neste momento, começou também o profundo desgaste de sua força junto aos trabalhadores e às massas.

De um ponto de vista central, esses projetos tiveram “êxito”: conseguiram salvar o Estado burguês e o capitalismo. No entanto, ao mesmo tempo, semearam as bases de sua própria crise e sua decadência.

Não houve derrota na luta

Esses governos conseguiram desviar e frear os processos revolucionários, mas não os derrotaram na luta. Inclusive o período de ascenso econômico expressou-se num crescimento numérico da classe trabalhadora em seu conjunto e, em especial, do proletariado industrial (é verdade que agora começou um processo de demissões e lay-off, mas isso acontece partindo de uma base mais alta do que nos anos 1990).

E esses trabalhadores vão à luta (com greves e mobilizações) para enfrentar as medidas do ajuste aplicadas por esses governos, abrindo assim a possibilidade de um novo ascenso generalizado.

Um artigo muito interessante publicado recentemente na edição argentina do Le Monde Diplomatique analisa as diferenças sociais e geográficas entre as lutas que originaram o “argentinaço” de dezembro de 2001 e as atuais. O autor assinala que, enquanto as de 2001 tinham como base os desempregados de uma das regiões mais pobres da Grande Buenos Aires (La Matanza), as atuais têm como epicentro os trabalhadores das zonas mais industriais do país (a Rota Pan-americana na zona norte da Grande Buenos Aires e os trabalhadores das indústrias produtoras de azeite de Rosario)2. Em outras palavras, nada a ver com uma “direitização estrutural” (isto é, uma mudança desfavorável na “correlação de forças”). Pelo contrário, há uma “proletarização” das lutas.

Por que a direita ganha?

Durante vários anos, os trabalhadores e as massas viram esses governos como seus. Mas, à medida que aplicavam os planos de ajuste, os trabalhadores começavam a romper com eles (e, o que é muito importante, a lutar contra eles). Uma ruptura que se acentua porque, ao se tratar de setores burgueses menores ou em formação, os níveis de corrupção estatal são geralmente mais visíveis do que nos governos burgueses “normais” (onde as coisas se dão frequentemente “nos bastidores”).

Isso permite à direita camuflar seu discurso: ninguém diz “vou fazer um ajuste feroz”, mas “somos a mudança” porque “precisamos de gente honesta, eficiente e capaz”.

Dessa forma, ao eleitorado mais tradicional e próprio desta direita somam-se muitos trabalhadores que expressam (por meio do “voto castigo” a que leva a armadilha das eleições burguesas) sua raiva e sua frustração com as promessas não cumpridas de transformação da sociedade feitas pelos populistas. Num raciocínio equivocado, o descontentamento levou à conclusão de que “qualquer um é melhor do que esta gente”.

Se analisarmos a evolução da votação de Mauricio Macri, vemos que nas eleições primárias de agosto passado sua coalizão obteve 30% (24 em seu partido e 6 nos aliados). Inclusive se considerarmos que na votação de outro candidato (Sergio Massa que obteve 20%) há uma parte de votos de direita, o resultado é que o eleitorado “puro” de direita é 1/3 ou um pouco mais dos votantes. O resto da votação que Macri obteve no segundo turno (52%) é claramente “voto castigo”.

Os complexos processos da consciência

Em última instância, os próprios governos de frente popular e populistas são os responsáveis pelo ascenso eleitoral da direita (e, conforme o caso, de sua vitória). Em primeiro lugar, como já vimos, por ter frustrado as expectativas populares de mudança que diziam representar. Em segundo, porque agora são governos “de ajuste puros”. E, em terceiro lugar, porque, ao se apresentar como a “esquerda” e “o popular” contra “a direita”, contribuíram para criar a falsa polarização eleitoral na qual só há duas alternativas (burguesas).

A definição de que “há um giro da situação à direita” tem o objetivo de evitar ou retardar a ruptura com esses governos. Por um lado, para dizer às massas que não lutem contra os ajustes que eles aplicam porque isso é “fazer o jogo da direita”. Por outro, em processos eleitorais, para ganhar o voto já que “é preciso defender o conquistado” e “os que podem vir são muito piores que nós”. E, se há derrota eleitoral, serve para “lavar as mãos” e imputar a responsabilidade às massas que não souberam distinguir o bom do mau.

As correntes de esquerda que apoiam e defendem esses governos (inclusive com críticas, mas com argumentos de que “não dá no mesmo”) não fazem mais que “maquiá-los” e barrar a luta contra eles. Tornam-se também seus cúmplices no terreno eleitoral. Num plano mais profundo, são responsáveis por não ter ajudado a construir nesses anos uma alternativa de esquerda e de classe para a crise desses governos (e a do capitalismo em geral) que ganhasse ao menos uma parte daqueles que rompem com eles.

A ação e a consciência das massas passaram por processos muito contraditórios durante esses anos. Primeiro, lutaram contra os governos e as políticas neoliberais e, em vários países, derrotaram-nos. Depois, acreditaram equivocadamente que os governos de frente popular e populista poderiam ser as ferramentas da mudança que desejam. Mais recentemente, começaram a lutar contra os ajustes desses governos e a romper com eles.

Esta ruptura é um grande avanço em sua consciência. Mas não é um avanço linear, e sim altamente contraditório porque, diante da falsa polarização, um setor se detém em “defender o conquistado” e outro se confunde com o “qualquer um é melhor” e apoia eleitoralmente a direita.

Mas essa ruptura dos trabalhadores e das massas com o kirchnerismo, o chavismo, o PT ou Evo é o processo mais importante que está ocorrendo na consciência das massas porque, sem ele, não há possibilidade de construir uma forte alternativa operária, revolucionária e socialista para a crise do capitalismo. Esta ruptura política é o processo que esperamos durante anos.

É claro que cabe à esquerda ir construindo esta alternativa, essencialmente nas lutas e na organização das massas, e também nas eleições. Em primeiro lugar, não “maquiando”  esses governos (fazendo parte ou apoiando) em seu momento de ascenso, mas, ao contrário, dizendo a verdade às massas do que realmente são: governos burgueses que querem salvar ao capitalismo. Em segundo lugar, lutando sem “rodeios” contra eles quando aplicam suas medidas de ajuste ou de controle bonapartista da sociedade. Finalmente, nas eleições, não lhes dando cobertura com o discurso do “mal menor” e apresentando alternativas próprias (ou chamando o voto em branco no segundo turno). E se a direita ganhar, não chorar uma derrota que não é dos trabalhadores, mas sim de um setor burguês.

Queremos terminar referindo-nos novamente à mudança desfavorável da “correlação de forças” que significaria a vitória de Macri a que a declaração se refere. À primeira vista, o fato de que um representante da mais alta burguesia argentina chegue ao governo representaria um “fortalecimento da direita” (e da burguesia e do imperialismo) e uma perspectiva de retrocesso para os trabalhadores e as massas.

Mas isso é só a aparência e não o conteúdo profundo da realidade. O governo de Macri muito provavelmente vai ser bem mais débil do que o kirchnerismo. O contexto econômico internacional e nacional lhe é muito desfavorável (basta ver o início da crise da China e a situação do Brasil, os principais sócios comerciais da Argentina) e isso irá obrigá-lo a aprofundar o ajuste já iniciado pelo kirchnerismo, sem mecanismos atenuantes nem compensadores. Ao mesmo tempo, reflete uma exígua e frágil vitória eleitoral (quase a metade votou contra ele e uma parte dos que votaram o fizeram para tirar o kirchnerismo do poder). Isto é, os trabalhadores e as massas não o reconhecerão como “seu governo”. Institucionalmente, está em minoria parlamentar e sem uma burocracia sindical própria.

É certo que o imperialismo e grande parte da burguesia (incluindo setores do peronismo como o próprio Daniel Scioli) vão apoiá-lo em sua política contra as massas para “levar o país para frente”. Mas este apoio vai ocorrer no contexto de um brutal ajuste.

O central, para nós, é que os trabalhadores e as massas não foram derrotados na luta e estão com suas forças intactas para responder aos ataques sem que, possivelmente, deem o “período de trégua” que os novos governos costumam ter. Temos confiança nos trabalhadores e em sua resposta. Cabe à esquerda (na Argentina, na Venezuela, na Bolívia, no Brasil…) impulsionar essas lutas e nelas se construir como alternativa com um programa real de superação do capitalismo.

Notas:

1. http://elcomunista.net/2015/11/17/intelectuales-alertan-sobre-derechizacion-de-argentina/

2. Fernando Rosso, “El nuevo poder de los trabajadores”, Le Monde Diplomatique n° 196, Buenos Aires, outubro de 2015.

Tradução: Suely Corvacho

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