search
Afeganistão

A democracia imperialista e seus bombardeios

outubro 27, 2015

Em 19 de setembro, um Hospital dos Médicos Sem Fronteiras em Kunduz1, província ao norte do Afeganistão, foi bombardeado por forças aéreas dos Estados Unidos. O saldo foi de 22 mortos, dos quais 12 eram médicos da ONG e 10 pacientes, entre eles 3 crianças, além de quase 40 feridos graves.

Por: Ari Russo

Além da justificada tristeza pelas vítimas e a indignação diante do bombardeio – fato que não é novo no país nem na região mas, ao contrário, cada vez se repete com mais frequência – cabe perguntar quais são os motivos de fundo do ataque que, nas palavras do próprio Diretor Geral da ONG na Espanha, Joan Tubau, “foi preciso contra um objetivo claro”.

As mil e uma versões…

Ao longo deste mês, os Estados Unidos mudou várias vezes sua explicação sobre os acontecimentos. Inicialmente, assegurou que se tratava de um “dano colateral”, no contexto do confronto contra as forças do Talibã2. Mas o bombardeio gerou muita repercussão internacional, entre outros motivos porque todos os mortos e feridos eram civis. O argumento acabou sendo pouco útil, já que só confirmou que os Estados Unidos realizaram os ataques de forma consciente e, além disso, tentando legitimá-los e justificá-los, o que é muito coerente com o cinismo do imperialismo, que “enche a boca” falando de democracia enquanto bombardeia hospitais matando médicos e crianças.

Pelas leis humanitárias, os ataques a centros de saúde estão explicitamente proibidos pelos organismos internacionais. Os Estados Unidos viram-se, então, obrigados a justificar sua resposta, sob o risco de que se veja o lobo sob o disfarce de ovelha, tentando  se eximir das responsabilidades. John Campbell, máxima direção militar norte-americana no Afeganistão, assegurou que o bombardeio foi uma resposta a um pedido de auxílio das forças de segurança do regime afegão, “atacadas pelo fogo talibã”, que informava sobre a presença de membros do Talibã escondidos no hospital naquele momento.

Mas a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) desmentiu publicamente esta versão, informando que não tinham acontecido confrontos nos arredores da instituição e que no hospital havia somente médicos e pacientes. Confirmou também que, quatro dias antes, tinha passado as coordenadas exatas do hospital para a aliança EUA-Ghani3, precisamente para prevenir bombardeios acidentais.

Se isso não fosse suficiente, após o primeiro ataque (foram cinco ao todo, durando 70 minutos), o MSF informou o ocorrido a Kabul e a Washington, sem obter qualquer resposta. Mesmo depois disso, o bombardeio ainda continuou por mais meia hora.

Diante desta situação, sem nenhuma possibilidade de se eximir da responsabilidade, os EUA mudaram uma terceira vez seu argumento, e Campbell reconheceu os ataques, explicando que “foi um erro, e responde a uma decisão tomada exclusivamente dentro do comando militar norte-americano”, responsabilizando somente a cúpula militar e eximindo o governo dos EUA. Enquanto isso, Obama telefonou para Joanne Liu, presidente do MSF, para se desculpar pelo ocorrido e garantir que levará a cabo uma “investigação transparente, exaustiva e objetiva”.

Isto é: o lobo já foi visto; agora tentam nos convencer de que é um lobo bom.

… e as verdadeiras razões de fundo

As razões de fundo só podem ser entendidas analisando a política geral do imperialismo para a região e a situação atual do Oriente Médio em seu conjunto.

Os EUA invadem o Afeganistão e o Iraque, em 2001 e 2003 respectivamente, com o objetivo de colonizar essa região estratégica (tanto por sua localização geográfica como por suas reservas de petróleo). Utilizam o discurso de “combate ao terrorismo”, valendo-se do ataque de 11/9 [ataque às Torres Gêmeas, Nova York].

Mas, diferente do que esperavam e do que venderam ao povo norte-americano, de que seria “uma guerra fácil e rápida”, enfrentaram uma impressionante resistência de massas que acabou por estender as guerras por mais de uma década e, finalmente, por impor ao dono do mundo uma derrota militar fortíssima, conhecida como “Síndrome do Vietnã”.

O orçamento destinado para a guerra não se justificou com resultados positivos visíveis. Muito pelo contrário, as baixas de soldados norte-americanos em serviço crescem consideravelmente, de forma progressiva.4

Isso foi provocando o desgaste das massas norte-americanas, que não só retiraram seu apoio às guerras como também começaram a se manifestar contra elas. Este é um dos motivos principais pelos quais os Estados Unidos se viram obrigados a mudar de política e, junto disso, o governo que a conduziria. A figura de Bush, um presidente branco, com uma clara linha de direita e belicista, foi substituída por Obama, um presidente negro, mais popular, com um discurso bem mais democrático, e cuja campanha eleitoral incluiu como um dos pontos fundamentais o fim das guerras.

Sem entrar no debate sobre a caracterização da dinâmica atual da política dos EUA, há algo sobre o qual não há qualquer dúvida: o plano inicial dos Estados Unidos, levado a cabo pelo governo de Bush, não pôde ser implementado graças à resistência das massas.

É certo que Obama intervém militarmente em diferentes países (Líbia, Síria, Iraque etc.). Isso porque o imperialismo continua sendo imperialismo e seus objetivos estratégicos continuam os mesmos. Mas, diferentemente de Bush, que tinha uma política ofensiva de guerra, Obama vai correndo atrás das comoções sociais e políticas nos diferentes países da região, tentando sufocar os processos revolucionários que se abriram com a chamada “Primavera Árabe”. Utiliza diferentes táticas para isso: intervenção militar em alguns lugares e momentos (aliado aos regimes ou contra eles, conforme lhe convenha), ou tentativa de negociação, convocação de eleições ou cooptação das direções dos processos, em outros.

Os Estados Unidos adorariam retirar-se do Afeganistão, pois há anos lhes dá mais dores de cabeça que qualquer outra coisa.5 No entanto, não é tão fácil, pois a realidade está cheia de elementos contraditórios. Na atual situação do Oriente Médio, retirar-se de uma guerra “fácil”, após 14 anos, sem ter conseguido controlar/estabilizar politicamente a região, seria reconhecer uma derrota política que traria grandes consequências, tanto para o governo de Obama dentro dos Estados Unidos como para o plano mais estratégico do imperialismo no Oriente Médio.

Por isso, apesar das contradições e do desgaste, no dia 15 de outubro, quase um mês após o ataque, Obama confirmou publicamente que não reduzirá a quantidade de soldados no Afeganistão (houve um momento em que se cogitou reduzir o efetivo para 5.500, com a perspectiva de uma retirada total em 2017), mas que manterá os 9.800 efetivos que atualmente ocupam o país6.

Uma vez mais, a justificativa é a “cooperação” com o regime afegão contra o terrorismo. A realidade, no entanto, é que o imperialismo não tem limites nem escrúpulos quando se trata de defender com unhas e dentes (ou bombas) seus interesses.  Isso abre milhares de discussões, que não são o objetivo deste artigo, mas que não podemos perder de vista como elementos para a discussão de fundo, em sua dinâmica. Como a ruptura da promessa de campanha de Obama com relação à guerra do Afeganistão afeta as massas norte-americanas? Como isso se expressará nas eleições de 2016? Como a política para este país se relaciona com a política mais geral e estratégica dos EUA na região? Até que ponto se sustenta a discussão de democracia contra terrorismo, com uma situação mundial que, cada vez mais, deixa em evidência os crimes de guerra dos EUA, inclusive diante dos organismos internacionais do próprio imperialismo – ONU, OTAN, Cúpula de Genebra, etc.

Aprofundar todos esses elementos nos ajudará a compreender a dinâmica da situação política mundial e dar resposta a ela.

A situação das massas afegãs

Além de todas essas discussões importantíssimas, que requerem uma análise séria e profunda, a realidade pede hoje uma resposta urgente. Porque, enquanto o imperialismo ataca impunemente por todas as frentes, os trabalhadores e povos do mundo têm cada vez menos saída. Para os povos invadidos pelo imperialismo não se trata de uma discussão, mas de uma batalha concreta de vida ou morte.

Apesar da força de resistência das massas, o grau de pobreza e violência num país ocupado militarmente há quase 15 anos atinge números realmente assustadores. As condições de vida são insuportáveis (e isso, claro, se se sobrevive).

Este hospital, por exemplo, era o único centro especializado em traumatologia em toda a região nordeste do país. Estamos falando de milhões de pessoas que acabam de ficar sem seu principal centro de saúde.

Falando de educação, por exemplo, milhões de crianças não têm condições de ir à escola. E esses números, que mostram a magnitude da situação sobre a qual estamos falando, não deixam de ser vistas no contexto de nossos parâmetros “normais” de vida: trabalho, saúde, educação. O parâmetro das massas afegãs, em sua ampla maioria, reduz-se à sobrevivência. Não é casual que o Afeganistão seja o segundo país com mais refugiados do mundo, somente atrás da Síria, uma situação que supera os números da Segunda Guerra Mundial.7

Angústia ou indignação são termos suaves para esta realidade. O que estamos dizendo é que aqueles refugiados que conseguem sobreviver à travessia de escapar, e conseguem um teto sob o qual dormir e trabalhos escravos sem as mínimas condições humanas, são os “sortudos” que conseguiram sair.

Essa é a realidade do capitalismo imperialista e sua “democracia”.

A única saída possível

Não podemos hesitar ao dizer que estamos categoricamente contra a invasão militar dos Estados Unidos no Afeganistão e no Oriente Médio.

Condenamos o ataque ao Hospital de Kunduz e repudiamos a política de Obama de manter suas efetivos militares no país. Basta de bases militares do imperialismo! Exigimos a imediata retirada das tropas imperialistas do Afeganistão e de todos os países do Oriente Médio!

Aderimos ao pedido de uma investigação independente do governo dos Estados Unidos e do Pentágono, bem como do governo afegão, diante do ataque. Mas só isso não é suficiente. Porque não são os organismos internacionais, dirigidos pelo próprio imperialismo, que chegarão ao fundo da questão, muito menos os que resolverão os verdadeiros problemas dos povos explorados e oprimidos, porque esse sistema do qual fazem parte é o problema de fundo. E só as próprias massas trabalhadoras organizadas poderão liderar a verdadeira batalha, a luta contra o imperialismo, para que ele não saia impune deste tipo de ataques e para acabar com a destruição que está levando a cabo em todo o mundo.

Notas:

  1. A cidade de Kunduz encontra-se no corredor comercial que conecta Kabul, capital do Afeganistão, com o Tajiquistão.
  2. Na segunda-feira anterior ao ataque, os talibãs ocuparam Kunduz. Desde então, os Estados Unidos realizaram doze ataques aéreos, sendo este o segundo na região central da província, onde se encontrava o hospital.
  3. Ashraf Ghani Ahmadzai, presidente do Afeganistão.
  4. De 2003 até hoje, o número de soldados norte-americanos mortos somente no Afeganistão ultrapassa os 2.000, isto é, pouco mais de 20% da quantidade de efetivos atuais. Fonte: http://www.statista.com
  5. A guerra no Afeganistão é a mais longa da história dos EUA e seu orçamento ultrapassa 65 bilhões de dólares. Ver nota: Afganistán, la guerra incómoda, em http://internacional.elpais.com, 7/10/2015.
  6. “Obama anuncia adiamento da retirada de tropas americanas no Afeganistão”, Folha Online, 15/10/2015.
  7. “O número de refugiados no mundo alcança uma cifra recorde desde a II Guerra Mundial”, em www.20minutos.es – Fonte: ACNUR.

Tradução: Suely Corvacho

Leia também