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Turquia

Os trabalhadores não podem ser indiferentes ao que acontece em Kobane

agosto 1, 2015


Entrevista com Erol Ekici, membro da direção do Sindicato da construção civil da Turquia e da Plataforma pela Reconstrução de Kobane



GH: Como surgiu a ideia de organizar a solidariedade a Kobane?



A guerra de Kobane foi uma enorme tragédia muito próxima a nós e, como representantes do Sindicato dos trabalhadores da construção civil, não podíamos ser indiferentes a essa questão. Não foi possível ir a Kobane combater o EI junto com as forças de resistência, mas depois da destruição da cidade decidimos concentrar nossos esforços em reconstruir a cidade e fomos até lá.



Depois da destruição e da vitória das forças curdas, decidimos ir e contatar a administração de Kobane naquele momento. Visitamos a área com um grupo de seis pessoas. Nossos objetivos eram conhecer a área e saber o que podia ser feito para ajudar. Era o início do verão e o maior problema era a quantidade de cadáveres nos escombros e o risco de propagação de doenças.



80% da cidade estava completamente destruída. O que mais se necessitava naquele momento era ajuda na área de saúde. Estavam recebendo alguma assistência médica vinda da Turquia, mas o governo de Erdogan [do partido AKP] também impôs um embargo nesta questão. Então a entrada de ajuda não acontecia de maneira regular. Como esta era a questão mais urgente, propusemos à administração central de Kobane iniciar uma campanha para construir um hospital e exigir do governo da Turquia a abertura de um corredor humanitário até Kobane.



GH: Qual foi o impacto da guerra sobre a cidade e como está se desenvolvendo a campanha para a construção do hospital?



Quando estivemos em Kobane, a população era de aproximadamente 30 mil pessoas, mas, depois da vitória contra o EI nas aldeias, a fronteira voltou a ser aberta e atualmente a população é de cerca de 80 mil pessoas. Como você pode imaginar, as condições de produção não estão disponíveis, não há produção própria na região e as pessoas estão dependendo da organização PYD (1). Os trabalhadores estão organizando padarias para produzir pão, base da alimentação. Água, pão e outros produtos básicos são adquiridos, administrados e distribuídos pelo PYD. Talvez agora, pouco a pouco, volte a atividade agrícola nas cidades próximas. Não tenho certeza, mas acho que a atividade agrícola está ativa novamente. Mas a ajuda central é a  humanitária. A maioria dos alimentos vem da Turquia, a partir de campanhas organizadas por grupos de esquerda e também pelos municípios governados pelo HDP (2).



Plataformas de solidariedade e de ajuda humanitária estão enviando produtos básicos por esses canais. A fronteira com a Turquia está fechada e só é aberta por curtos períodos, em determinados momentos, decorrente da pressão social e dos acordos específicos entre o PYD e o governo da Turquia. Há um problema fundamental: eles precisam de um corredor humanitário aberto a todo o momento, de maneira que a ajuda possa entrar mais facilmente. O PYD veio à Turquia para exigir isso, mas sem obter resultados reais.



Como sindicatos, fizemos um informe da situação em Kobane. Alimentos, agricultura, o problema da água e as outras questões e necessidades da cidade e da população afetada pela guerra. Realizamos uma conferência de imprensa e, depois, uma manifestação em Kadikoy (bairro na parte asiática de Istambul, onde há uma presença importante de ativistas e movimentos de esquerda) que foi reprimida pela polícia. Isso mostra o que o AKP (3) pensa sobre Kobane e sua atitude contra os curdos. Depois de tornar público o nosso informe, seis trabalhadores alemães da construção civil vieram para falar conosco e nós também contatamos outros grupos da Turquia. Um sindicato da construção da Austrália também nos enviou uma mensagem dizendo que apoiariam a nossa campanha. No entanto, até agora não recebemos grandes apoios, a não ser de uma associação de trabalhadores curdos na Alemanha que nos enviou algum apoio material (cerca de três mil euros).



Além disso, vendemos cartões postais e arrecadamos dinheiro para a campanha. Arrecadamos mais de 13 mil euros aqui na Turquia, mas precisamos de cerca de 25 mil. Só a construção do hospital vai custar cerca de 40 mil euros. Portanto, ainda temos que arrecadar mais dinheiro. Nossa campanha continua. Queremos construir o hospital com a ajuda de trabalhadores da construção civil de todo o mundo. Uma vez que os trabalhos de construção comecem, faremos um chamado em escala internacional a todos os trabalhadores para que se somem à construção do hospital.



GH: A solidariedade dos trabalhadores e da juventude da Turquia em relação a Kobane foi grande. Por quê?



Efetivamente, há um grande apoio a Kobane. Mas também há muitos inimigos da questão curda, como os nacionalistas turcos. De fato, durante a batalha de Kobane, a população turca estava dividida. Por um lado, havia uma grande simpatia pela defesa de Kobane. Por outro, muitos diziam que era "melhor deixá-los morrer", que "o EI era melhor do que o PYD". Inclusive grupos que se consideram 'nacionalistas de esquerda' tinham essa opinião. No Curdistão turco, o Hezbollah curdo também atacou as manifestações de solidariedade a Kobane. Mais de 40 pessoas morreram em alguns dias de enfrentamento. A situação no Curdistão estava muito tensa por causa da presença de forças islâmicas, como o Hezbollah. Isso mostra como os islâmicos curdos podem ser manipulados.



Tudo isso mostra a importância da nossa campanha, já que nós, como trabalhadores da construção civil, estamos trabalhando na reconstrução de Kobane. Em nosso grupo há membros de distintos grupos religiosos e étnicos, mas somos todos trabalhadores. Há curdos, turcos, alauítas, pessoas do Mar Negro e de muitas regiões da Turquia. Estamos todos trabalhando na reconstrução de Kobane. O fato de sermos todos trabalhadores nos unifica. Se nossa origem nos importa tanto, eles podem nos dividir; mas, se somos todos trabalhadores, vamos nos unir. Enfatizamos muito este ponto.



Por outro lado, é necessário separar o Hezbollah libanês do Hezbollah curdo. Eles são completamente diferentes. O Hezbollah curdo é uma espécie de contra-Hezbollah, porque é um tipo de contraguerrilha, como os grupos paramilitares colombianos, uma força que pode ser mobilizada junto com as forças estatais.



Nos dias 2 e 3 de junho, houve uma reunião da Plataforma pela Reconstrução de Kobane. Nossos companheiros foram para Kobane para falar sobre como iniciar o projeto e agora esperamos a resposta da administração de Kobane sobre como iniciar o processo.



GH: Explique um pouco sobre a participação das mulheres na defesa de Kobane.



Os curdos sírios dão muita importância para este tema, assim como o PKK também enfatiza esta questão. A revolução em Rojava [nome da região curda na Síria] é uma revolução das mulheres. Há mais mulheres lutando nas unidades do que homens. As mulheres são maioria nas brigadas. Isso é muito importante em uma região como o Oriente Médio, porque a sociedade de muitos países não permite que as mulheres participem da vida social. Quando você olha para Rojava e vê a situação em que as mulheres se encontram deve sentir muito orgulho. É um fato muito importante quando você compara com outras sociedades no Oriente Médio. (4)



GH: Como está a situação agora?



Muitas cidades ao redor de Kobane estão livres do EI e a vida está voltando em muitos aspectos. Os danos foram muito grandes, mas já começa a melhorar. Agora a administração está muito aberta, todos têm direito de falar: socialistas, curdos, árabes. Todos que participem nas assembleias podem falar e levar a cabo seus projetos.



Como é a relação entre árabes e curdos?



Não há problemas. Há exceções, alguns povoados ajudaram o EI, estavam filiados a eles e por isso foram esvaziados pelas forças do PYD. O caso de Tal Abyat é um caso semelhante (5).



Pela reconstrução de Kobane!



Contra qualquer intervenção turca na Síria e em Rojava!



Pela abertura de um corredor humanitário até Kobane!



Pela autodeterminação dos curdos na Turquia, Irã, Síria e Iraque!



Repúdio à colaboração entre o AKP e o EI!





Notas para entender a entrevista:



(1) O PYD (Partido da União Democrática) foi fundado em 2003 por nacionalistas curdos no norte da Síria, na região de Rojava (Curdistão sírio). O partido dirige as Unidades de Proteção Popular (YPG), o braço armado do Comitê Supremo Curdo, no Curdistão sírio. Em julho de 2012, cerca de um ano e quatro meses depois do início da revolução síria, as forças de Assad se retiraram da região de Rojava e o PYD assumiu o controle de fato na região. O PYD é o partido irmão do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), cujo líder Abdullah Öcalan está na prisão na Turquia desde 1999, acusado de "terrorismo" e de luta armada contra a unidade territorial da Turquia. Há muitas controvérsias sobre a relação entre o PYD, o regime de Bashar al-Assad e os rebeldes sírios. Sobre a questão síria, o PYD defende uma saída negociada entre a oposição e o regime, sem descartar inclusive a permanência de Assad, e recentemente foram convidados para participar da Conferência de Genebra III. Nos confrontos com o autodenominado EI, as forças curdas e algumas brigadas do Exército Sírio Livre agiram em unidade de ação. Também há informações de que o PYD lutou junto com as forças de Assad contra o EI, assim como de possíveis choques entre milícias curdas e forças de Assad. Ativistas curdos acusam o PYD de reprimir pessoas críticas ao seu governo no Curdistão. O PYD abandonou a defesa de um Estado curdo independente e unificado, e atualmente apoia a Confederação Democrática do Curdistão, que não seria um "sistema estatal, mas um sistema democrático das pessoas sem um Estado". Muitas das forças de oposição síria não reconhecem o direito à autodeterminação dos curdos na Síria. No entanto, no início da revolução, era possível ver ativistas curdos e sírios juntos nas manifestações contra o regime de Assad.



(2) O HDP (Partido Democrático dos Povos) é uma organização pró-curda criada em 2012, que obteve 13% dos votos nas últimas eleições parlamentares na Turquia, entrando no parlamento com 80 deputados, dos quais 40% são mulheres. O HDP capitalizou uma parte importante do voto progressivo anti-Erdogan nas duas últimas eleições e se consolidou como defensor não só da questão curda, mas também de mulheres, LGBT e ecologista. O seu programa defende um secularismo "que respeite os valores de Kemal Ataturk", fundador do Estado turco moderno. O HDP é visto por muitos ativistas como a versão turca do Syriza e do Podemos.



(3) O AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) é o partido de Erdogan, primeiro-ministro da Turquia desde 2003. É um partido de centro-direita com tendências islâmicas. Está alinhado internacionalmente com os democratas cristãos europeus, como a CDU de Angela Merkel, e foi o grande responsável pela aplicação do projeto neoliberal na Turquia. A economia turca cresceu exponencialmente na última década, baseada na produção e exportação de manufaturas de baixo valor agregado, como os produtos têxteis. O AKP reprimiu duramente os protestos de Gezi em 2013. Antes da revolução síria, tinha excelentes relações com Bashar al-Assad, mas mudou de posição depois do início da revolução e começou a apoiar os grupos islâmicos radicais como o ISIS [hoje EI], a Frente al-Nusra e o Exército do Islã. Eles não toleram nenhum tipo de autodeterminação dos curdos, nem na Turquia nem na Síria, apesar de manter boas relações com a burguesia curda iraquiana. Há algumas semanas, o governo turco considera a possibilidade de intervir na Síria criando uma "zona de defesa" para evitar uma maior autonomia dos curdos neste país. Há mais de 18 mil soldados na fronteira com a Síria. Muitos grupos de esquerda responsabilizam em grande medida o AKP pelos recentes atentados do EI em Suruç, já que Erdogan mantém relações com este grupo.



(4) A participação das mulheres em outras revoluções, como a egípcia e a síria, também foi muito importante.



(5) Tal Abyat é uma cidade na fronteira entra a Síria e a Turquia controlada pelo EI até 16 de junho de 2015, quando uma ofensiva do YPG, com o apoio de grupos rebeldes sírios e de bombardeios da Coalizão Internacional, expulsou o grupo extremista e retomou o controle da cidade. Antes de ser atacada pelo Estado Islâmico, árabes sunitas, curdos e turcos viviam pacificamente na cidade. Depois de perder o controle de Tal Abyat, membros do EI se infiltraram novamente e perpetraram uma série de ataques contra a população, parte da qual ficou presa na fronteira entre a Turquia e a Síria. Tem havido grandes deslocamentos de população entre a Síria e a Turquia e alguns meios de comunicação e ativistas sírios, assim como o governo turco, acusam o PYD de estar levando a cabo uma limpeza étnica na região. Não há informação comprovada sobre isso.



Para mais informações:



https://insaatiscileri.wordpress.com/ (blog do sindicato dos trabalhadores da construção civil da Turquia)



http://www.al-monitor.com/pulse/politics/2013/10/syria-kurds-assad-solution-salih-muslim.html



https://solidaridadkurdistan.wordpress.com/tag/confederalismo-democratico/



 

http://civiroglu.net/2015/06/18/ypg-commander-bilal-rojava-and-the-situation-in-tal-abyad/

 

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