Egito
Eleições no Egito: vitória de al-Sisi, mas…
junho 7, 2014
Nas recentes eleições presidenciais, o marechal al-Sisi teve 96,9% dos votos, pelos discutíveis dados oficiais. Seria uma vitória consagradora caso não viesse acompanhada de uma abstenção majoritária da população.
Segundo os dados oficiais, só 46% do povo egípcio votou, bem menos que os 80% previstos por al-Sisi. Mesmo essa porcentagem de votantes é questionada pelos observadores independentes. Afinal só 15% votou no primeiro dia de eleição e nos outros dias a votação foi visivelmente menor. O governo estendeu a votação por mais um dia, forneceu transporte grátis para os eleitores e chegou a ameaçar com multas de 500 libras egípcias (70 dólares) os que não fossem votar. Nada adiantou. Houve urnas em que não compareceu nenhum eleitor.
A abstenção foi a forma mais importante de protesto usado pelas massas. A oposição burguesa, com El Baradei à frente, apoiou al-Sisi. A candidatura oposicionista de Hamdeen Sabahi teve só 3,1% dos votos. Não se transformou em alternativa real, apenas ajudou a legitimar uma eleição fraudulenta.
A grande abstenção não é um dado pouco importante na situação política do país. É uma indicação de que o processo revolucionário continua aberto.
A derrubada de Morsi, o primeiro governo eleito em dezenas de anos, foi considerada por muitos o sinal de fim da “primavera árabe” ou em outros termos, do processo revolucionário. Apontava-se o apoio aos militares como um indicativo da derrota da revolução.
Esse tipo de análise desconhece que a ausência de direções revolucionárias de massas torna os processos políticos confusos, com inúmeras idas e vindas. O egípcio é um dos mais complexos, por suas particularidades.
Para nós essa abstenção significa a primeira demonstração de desgaste do regime militar simbolizado por al-Sisi. No meio de fluxos e refluxos, o processo revolucionário segue vivo.
Militares no Egito: bem mais que o papel tradicional das Forças Armadas
As Forças Armadas cumprem em qualquer estado burguês o papel central de sustentação do estado. Tanto em uma ditadura militar como numa democracia burguesa, o estado se apoia essencialmente em sua base militar.
O que se diferencia nesses casos são os regimes- a combinação de instituições com a qual se exerce o poder político. Quando os governos (ou parlamentos) que exercem efetivamente o poder são eleitos, trata-se de uma democracia burguesa. Quando são as próprias forças armadas que dirigem o país, trata-se de um regime militar.
Em algumas vezes existe um disfarce do regime, como no caso egípcio: o poder está com as Forças Armadas, mas existe um governo “democrático” que não manda nada. Caiu o governo de Mubarak, mas o regime militar não foi derrotado.
A maior contradição do processo revolucionário egípcio é que as Forças Armadas, principais inimigos da revolução, têm grande prestígio no país. Isso tem uma explicação, em primeiro lugar na história do Egito. Foram os militares, através de Nasser que expropriaram o Canal de Suez. Foram eles que enfrentaram militarmente Israel na guerra dos seis dias.
Em segundo lugar o prestígio dos militares está apoiado na habilidade política com que enfrentaram as últimas crises. Quando o ascenso ameaçou derrubar o regime militar em 2011, a cúpula do exército forçou a renúncia de Mubarak. Foi-se o governo odiado, preservou-se o regime militar, embora enfraquecido. Quando Morsi, o primeiro governo eleito na história do país, enfrentou com uma rebelião de massas, os militares deram um golpe. Usurparam uma legítima vitória do povo egípcio e preservaram o regime militar.
A eleição de Sisi tem como objetivo legitimar essa ditadura com uma roupagem democrática. Ele já era o ditador que mandava no país e agora é o presidente eleito.
Mas os militares não são apenas o centro do estado, do regime e do governo no Egito. São também parte fundamental das classes dominantes. Uma forte burguesia se construiu a partir da alta oficialidade das Forças Armadas no controle do estado por dezenas de anos, que controla 40% da economia do país. Os militares dirigem empresas nos ramos mais importantes da economia, desde a produção de massas alimentícias até móveis e TVs, além da extração de petróleo e projetos de infraestrutura.
Em março passado, por exemplo, foi anunciado um projeto de habitação entre o Exército e a construtora Arabtec, dos Emirados Árabes Unidos, estimado em 40 bilhões de dólares.
Um desgaste do conjunto das instituições
A crise econômica internacional levou a um aumento significativo da miséria no Egito, sendo a base material do início da revolução. É um dos países árabes mais miseráveis, com 48,9% da população abaixo do limiar da pobreza.
Essa realidade só piorou desde a queda de Mubarak. O turismo, principal setor da economia, recuou 27% desde 2011. O desemprego aumentou de 11% em 2011 para 13,5% agora. As reservas de divisas internacionais caíram de US$ 35 bilhões para US$ 15 bilhões. As cidades enfrentam cortes de eletricidade, não tem água corrente. Ruas imundas completam o cenário de miséria.
Os distintos governos desde a derrubada de Mubarak tentaram escapar da crise econômica com a receita clássica neoliberal: atacando ainda mais a população. Além disso tentaram restringir as liberdades democráticas conquistadas em 2011.
Morsi teve um governo desatroso, impondo o mesmo plano econômico , reprimindo e assassinando milhares de pessoas. Tentou impor a ferro e fogo o projeto econômico, político e religioso da Irmandade Muçulmana.
O governo de Hazem el Beblawi, que sucedeu Morsi, utilizou a repressão contra a Irmandade para atacar conjunto do movimento de massas. Mataram três mil pessoas e prenderam outras 22 mil . Reprimiram as marchas e mobilizações. Ilegalizaram não só a Irmandade Muçulmana, mas também o Movimento 6 de Abril, que cumpriu um papel importante na derrubada de Mubarak e na luta contra Morsi. Recentemente condenaram à morte 682 réus da Irmandade Muçulmana.
Uma recente pesquisa da Pew Research Center indica que a resultante de tudo isso é um desgaste do conjunto das instituições do regime. Os egípcios estão mais insatisfeitos (72%) do que satisfeitos (24%) com a situação do país. Os militares tinham um apoio de 88% da população logo após a derrubada de Mubarak, 73% há um ano atrás depois da queda de Morsi e 56% hoje. O próprio Sisi tem apoio de 54% dos egípcios, com 45% na oposição.
Morsi , da Irmandade , que tinha 53% de apoio há um ano, antes de sua queda, agora tem 42%. Essa queda, apesar de menor, é significativa depois da proibição da organização e prisão de seus líderes pelo governo.
Os tribunais, que tinham uma imagem positiva de 58% há um ano, agora têm apoio minoritário de 41% depois de suas sentenças autoritárias. Isso dá uma ideia geral do desgaste do conjunto das instituições, expressa na alta abstenção eleitoral.
O processo continua aberto
Agora, no entanto, os militares terão de dirigir diretamente o governo do país. Não estarão movendo os fios do regime por trás, mas assumindo a cara do governo. Isso abre uma possibilidade de que as massas façam sua experiência com os militares.
O imperialismo norte-americano apoia Sisi, assim como os governos da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Kwait. Junto com o apoio, esses governos cobram a aplicação de um plano econômico sério, a partir do receituário neoliberal.
O FMI pressiona para que se cortem os subsídios de combustíveis, a eletricidade e o trigo. Morsi teve de implementar esse tipo de plano e o resultado foi o conhecido.
Agora Sisi terá essa tarefa. Terá de se enfrentar com um movimento operário que continua com suas forças preservadas e em ascenso. Desde fevereiro deste ano as greves recomeçaram. Houve mobilizações em Mahalla, Cairo, Alexandria, Suez e outras cidades. O processo revolucionário no Egito continua aberto.