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sexta-feira, abril 19, 2024

Derrotamos Kast nas urnas! O que podemos esperar do governo Boric?

Muitos trabalhadores, jovens e lutadores sociais respiraram aliviados com o resultado do segundo turno. A derrota de Kast (44,13%) significa um alento para os milhões que foram às ruas. Por outro lado, a esmagadora vitória de Gabriel Boric, com mais de 4,6 milhões de votos (55,87%), é consequência de mais de 10 anos de lutas dos movimentos sociais e da revolução iniciada a 18 de outubro de 2019.

Por: Direção Nacional do MIT-Chile

A trajetória de Boric, de líder estudantil nos protestos de 2011 a Presidente da República, demonstra o tortuoso caminho das lutas sociais que eclodiram com os pinguins (2006) e continuaram com os jovens universitários (2011), as lutas das mulheres (2018), da classe trabalhadora por suas aposentadorias, direitos trabalhistas e as revoltas em Punta Arenas, Aysén, Freirina e Chiloé. A Frente Ampla emergiu como uma nova força política dessas lutas, principalmente da juventude universitária. O Partido Comunista também se renovou a partir das lutas estudantis, com o surgimento de novas figuras como Camila Vallejos e Karol Cariola.

A “explosão social” de 2019 significou um salto nessas lutas e ameaçou todo o regime político. Os partidos que governaram nos últimos 30 anos foram severamente castigados e agonizam, embora ainda tenham um peso importante, principalmente no reduto mais reacionário do poder, o Congresso Nacional. A Frente Ampla e o PC sobreviveram à explosão social e têm sido fundamentais, até agora, para canalizar a enorme crise social para uma solução “pacífica” e “institucional”. Agora o povo os levou ao poder e espera mudanças sociais importantes.

Boric e sua coalizão serão capazes de responder às demandas sociais e mudar a realidade do país?

Uma breve análise do resultado eleitoral

Boric ganhou com quase 12 pontos de diferença de Kast, mais de 1 milhão de votos. A vitória foi retumbante, mas mostra que existe um país polarizado. Kast não era apenas mais um “candidato” da direita. Kast representa um projeto político que ainda está totalmente vivo: o projeto da burguesia chilena e das empresas transnacionais de manter tudo como está e responder às demandas sociais com mais repressão.

Boric, por outro lado, foi levado ao poder pelas expectativas e lutas de milhões de pessoas. As grandes celebrações em várias cidades do país mostram que o processo iniciado no dia 18 de outubro de 2019 ainda está vivo e há enormes expectativas das massas nas mudanças sociais que possam vir.

Os votos de Boric e Kast mais uma vez reproduzem a divisão de classes no país. O projeto conservador-burguês venceu com ampla margem nas comunas mais privilegiadas do país (Kast teve 73% em Las Condes, 83% em Vitacura e 78% em Lo Barnechea), enquanto o projeto reformista de Boric venceu com ampla margem no comunas mais populares (70% em Puente Alto, 67% em Quilicura, 64% em La Florida). A comuna de Maipú, uma das mais combativas do país, mostra grande polarização social, o que se reflete na votação: 55% para Boric, 44% para Kast. Na maioria das cidades mais importantes do país, Boric venceu com amplas margens: Antofagasta, Concepción, Valparaíso, San Antonio, etc. Kast manteve seu apoio nas pequenas cidades e em outras onde seu discurso anti-imigrante ou antimapuche entra com mais força.

Que interesses um futuro governo Boric defenderá?

Kast foi o principal candidato apoiado pelas 10 famílias mais ricas do Chile e pelas transnacionais. No entanto, é importante que sejamos nítidos sobre como os mais poderosos dominam para entender o que está por vir.

Nas últimas décadas, o grande capital financiou tanto a direita quanto a ex Concertación. Por isso, direita e “esquerda” governaram para os donos do país e mantiveram o capitalismo neoliberal chileno. Os governos mais neoliberais no Chile foram os da ex Concertación, basta olhar para a enorme onda de privatizações dos anos 90 (mineração, concessionárias de água/esgoto, telecomunicações, etc.).

Agora, com a derrota dos partidos tradicionais, a grande burguesia está se mudando e começa a apoiar e negociar com as novas forças políticas. Embora seu principal candidato fosse Kast, Boric também recebeu o apoio de importantes figuras da ex Concertación e as incorporou ao seu comando de campanha. Ainda não está claro qual será a composição do futuro governo, mas não podemos descartar a formação de um governo com a presença dos partidos da ex Concertación, ou de um setor dela. Após o primeiro turno, Boric e Apruebo Dignidad rapidamente privilegiaram os acordos de cúpula com esses partidos, moderando seus programas para buscar os votos do “centro”. Se no início de sua campanha, Boric prometia destinar 8% do PIB para financiar direitos sociais, esse valor já caiu para 5% no últimos meses e não sabemos em quanto vai acabar.

Mas não são apenas as figuras da ex Concertación que representam diretamente os interesses da grande burguesia. A própria Frente Ampla se adaptou cada vez mais nos últimos anos para ganhar a confiança e o apoio dos setores burgueses nacionais e internacionais. Prova disso é que um dos principais assessores de campanha de Boric, Diego Pardow, vem de um centro de estudos (Espacio Público [1]) financiado diretamente por grandes mineradoras como a BHP Billiton e pela Embaixada da América do Norte.

A principal estratégia da Frente Ampla / Apruebo Dignidad é buscar realizar algumas reformas de forma pacífica e gradativa, sem “assustar” os investidores. Querem convencer os donos do país a darem “os anéis” para não perderem “os dedos”. Eles sabem que para encerrar o processo iniciado em 18 de outubro, é preciso buscar a realização de algumas reformas para que o país não volte a explodir.

As reformas propostas pela Frente Ampla são bastante limitadas, embora haja grandes expectativas nelas, devido às precárias condições de vida da maioria das famílias trabalhadoras. Sua proposta de aumentar as aposentadorias para um mínimo de 250 mil pesos é um exemplo disso. Ninguém consegue viver com 250 mil pesos, mas com certeza 250 mil é melhor do que o que existe hoje. A mesma lógica se aplica a tudo.

Ainda que as reformas propostas por Apruebo Dignidad sejam muito limitadas, ainda terão dificuldade em realizá-las, uma vez que as famílias mais poderosas do país (que dominam o Congresso e a Justiça) não querem fazer mais concessões do que já fizeram. Prova disso foi a rejeição, pelo Parlamento, da quarta retirada das AFPs. Também há grande resistência ao aumento de impostos sobre os mais ricos. Assim, a estratégia de Boric de fazer reformas graduais negociando com o grande capital provavelmente terá o mesmo resultado que as reformas da ex Concertación: vão acabar em nada.

O único fator que pode ser decisivo para que essa equação não termine mal é o movimento de massas. Se as massas trabalhadoras e a juventude voltarem às ruas e pressionarem, o governo e as grandes empresas serão forçados a ir além de seus planos.

No entanto, a estratégia central do Boric / FA / PC não é mobilizar as massas para lutar contra os privilégios do grande empresariado. A estratégia deles é negociar com os que estão no topo e acalmar o movimento de massas, porque sabem que as pessoas nas ruas é muito perigoso e incontrolável, pois podem levar a fundo a luta para mudar suas condições de vida. Prova dessa estratégia foi a negociação do próprio Acordo de Paz, que deu origem ao atual Processo Constituinte. Esse Acordo salvou o pescoço de Piñera, garantindo impunidade aos responsáveis ​​pela guerra contra o povo quando este estava prestes a cair e colocou importantes obstáculos à Convenção Constitucional, como já discutimos em vários textos. [2]

Assim, tudo indica que o futuro governo Boric será um defensor dos interesses do grande empresariado do país, embora vá tentar pressioná-lo para que faça reformas e melhore um pouco as condições de vida da classe trabalhadora. Isso terá consequências importantes. O caráter do governo ficará evidente quando começar a reprimir os protestos populares e o povo Mapuche no Wallmapu.

A Convenção Constitucional no novo cenário

Nos últimos dias, começou a surgir uma “nova” narrativa promovida pela “frenteamplistas”. Essa narrativa atribui a conquista da Convenção Constitucional à genialidade de Boric e à assinatura do Acordo de Paz. Nada mais falso.

Em primeiro lugar, Boric não foi o responsável pela existência da Convenção Constitucional. A possibilidade de redigir uma Nova Constituição e derrubar a Constituição de Jaime Guzmán / Lagos / Bachelet existe devido à enorme mobilização social que eclodiu em 18 de outubro e atingiu seu ápice em 12 de novembro de 2019, quando as mobilizações populares se combinaram a uma poderosa paralisação nos setores produtivos do país e a entrada da classe trabalhadora na luta. O que Boric fez foi assinar rapidamente um Acordo para tentar frear as mobilizações de massa, apoiar o governo Piñera e abrir um Processo Constituinte com importantes limites, que foram fixados pela direita e pela ex Concertación (o quórum de ⅔, a impossibilidade de a Convenção destituir autoridades, a impossibilidade de suspender Tratados de Livre Comércio, etc.).

Assim, atribuir ao Boric ou à Frente Ampla a conquista da Convenção Constitucional é uma distorção total da realidade. A Frente Ampla também foi questionada nas ruas, embora hoje Boric chegue ao poder pela falta de uma alternativa que pudesse representar plenamente os interesses da classe trabalhadora e do povo (contribuiu para isso o fracasso da Lista do Povo).

Essa narrativa tem um objetivo: dizer aos milhões que lutaram que agora devemos esperar em nossas casas que Boric e a Convenção Constitucional resolvam todas as demandas populares de forma pacífica e gradual. Já não é preciso irmos para a rua, dizem, já não é preciso fazer greve, já não é preciso enfrentar o grande empresariado e o seu Estado. Essa narrativa é falsa e aponta para a derrota do nosso movimento. Primeiro, porque Boric não poderá fazer reformas por meio deste Congresso, que é totalmente hostil ao povo. Em segundo lugar, porque a Convenção Constitucional com os obstáculos atuais não resolverá os problemas do povo se estiver limitada a escrever uma bela Constituição no papel, mas sem garantir como esses direitos se transformarão em realidade.

O MIT com nossa companheira constituinte María Rivera propomos um caminho diferente: o caminho da mobilização e organização da classe trabalhadora e da juventude para levar a fundo a luta contra o capitalismo neoliberal chileno e o poder dos grandes empresários. Essa organização deve ser independente do governo Boric. Seria um grande erro acreditar que o governo resolverá os problemas do povo e que devemos esperar tranquilos em casa.

Ainda não ganhamos nada. As AFPs continuam existindo, a saúde pública continua caótica, os salários continuam precários, nosso patrimônio natural permanece em mãos privadas. A classe trabalhadora não pode dar a Boric um cheque em branco. Se Boric, a Frente Ampla e o PC querem mesmo resolver os problemas do país, devem romper seus acordos e negociações com o grande empresariado e estimular as mobilizações da classe trabalhadora e da juventude para enfrentar os donos do país.

O problema de fundo: o capitalismo imperialista

Boric promete melhorar a vida das pessoas fazendo reformas que distribuam melhor a riqueza acumulada pelo grande empresariado. No entanto, as propostas de Boric não tocam na raiz dos problemas. A raiz dos problemas é a grande propriedade privada e a subordinação de nosso país às relações capitalistas internacionais. O Chile é um grande produtor e exportador de cobre, frutas, celulose e pescado. Este modelo, denominado por muitos de “extrativista”, tem enormes consequências sociais (baixos salários, empregos precários, falta de desenvolvimento tecnológico e científico) e ambientais (destruição de ecossistemas, seca gerada pela monocultura e a mineração em grande escala, etc.). O modelo capitalista chileno beneficia os proprietários de grandes empresas de mineração, salmão, silvicultura, importação e exportação, bancos e AFPs. Sem tocar na grande propriedade privada e colocá-la a serviço da população, é impossível resolver os problemas que temos. Podemos colocar curativos, mas esses curativos não curam feridas, que são muito mais profundas.

Por isso, propomos que a única forma de resolver os problemas do povo e combater o desastre ambiental é recuperar os bens naturais e as empresas estratégicas do país e colocá-las sob o controle da classe trabalhadora organizada.

Portanto, não temos dúvidas de que os problemas estruturais do país não serão resolvidos pelo governo Boric. Boric não é favorável a devolver as terras ao povo mapuche e enfrentar os interesses dos empresários florestais. Boric não é favorável à renacionalização do cobre para que essa riqueza seja investida em direitos sociais e para que os danos ambientais causados ​​pela Grande Mineração possam ser reparados. Embora Boric fale em proteger a natureza, não o poderá fazer, porque não vai à raiz do problema: a grande propriedade privada orientada para o lucro e não para o bem-estar da maioria da população.

É hora de acabar com o saque!

A derrota de Kast e consequente vitória de Boric é uma vitória distorcida do movimento de massas. Agora, mais do que nunca, devemos recuperar a organização em nossos locais de trabalho, sindicatos, bairros, escolas e universidades. Podemos arrancar conquistas com a nossa mobilização: melhores direitos, melhor saúde, melhores aposentadorias e educação. No entanto, essas conquistas devem ser apenas um passo na luta contra a pilhagem capitalista de nossos bens naturais e de nosso trabalho, ou elas retrocederão em pouco tempo.

Se o governo Boric / PC quer realizar uma grande mudança social, deve questionar os fundamentos do capitalismo chileno e promover a organização e mobilização permanente da classe trabalhadora e do povo.

Para ir nessa direção, o governo deve:

1) Desmilitarizar imediatamente o Wallmapu e iniciar um processo de devolução das terras ancestrais ao povo Mapuche

2) Garantir o julgamento e a punição de Piñera e dos responsáveis ​​políticos e militares pela repressão ao povo. Iniciar uma reparação para todos os afetados pela repressão do Estado.

3) Anistiar todos os presos políticos chilenos e mapuches, mostrando que eles estão do lado do povo e não daqueles que os saquearam o país nos últimos 50 anos;

4) Iniciar a revisão de todos os Tratados de Livre Comércio que ameacem a soberania dos povos do Chile;

5) Acabar com as amarras da Convenção Constitucional para que a Convenção possa tomar as medidas de que o povo precisa imediatamente;

6) Implementar de imediato o fim das AFPs e um aumento geral dos salários e aposentadorias;

7) Recuperar as empresas privatizadas durante a ditadura e democracia, começando com a Grande Mineração de Cobre e Lítio;

Se o governo tomar essas medidas, não temos dúvidas de que o povo o defenderá de todos os ataques do grande capital. Se Boric não avançar rapidamente nessa direção, começará a ser questionado pelo movimento de massas e poderá gerar grandes decepções, o que poderá abrir caminho para a extrema direita. Chamamos toda a classe trabalhadora, os povos e os jovens a se organizarem e se mobilizarem. Apelamos a todos e todas a construir um projeto pela superação do capitalismo e de construção de uma sociedade onde toda a riqueza produzida esteja a serviço da classe trabalhadora e da recuperação da natureza.

Notas:

[1] Transparência e financiamento – Espaço Público (Espaciopublico.cl)

[2] A Convenção Constitucional… será capaz de resolver os problemas dos trabalhadores? | MIT (vozdelostrabajadores.cl)

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