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sexta-feira, março 29, 2024

A luta pela legalização do aborto e a Igreja Católica

Quando falamos da legalização do aborto, não podemos deixar de nos referir ao papel que a Igreja Católica cumpre nessa questão. Em todos os países em que o catolicismo tem peso, a cúpula da Igreja, junto com os seguidores mais ortodoxos, interfere não só na discussão que se dá na sociedade, como principalmente movem seus pauzinhos para influenciar as instâncias de resolução sobre a legalização, como foi o caso da Argentina nos últimos meses. 

Por: Lena Souza da Secretaria de Mulheres de São Paulo-Brasil

Ainda que no Brasil, entre as mulheres que já tiveram a necessidade de fazer o aborto, exista uma grande porcentagem de católicas, o tema é um tabu e a posição atual da Igreja em relação à legalização do aborto faz com que a grande maioria dessas mulheres, mesmo que com graus diferenciados, carreguem a culpa do pecado nas suas costas.

Como qualquer outro tema, no entanto, não devemos nos esconder e ceder à pressão daqueles/as que, em nome da “defesa da vida” não se abrem para o conhecimento sequer do histórico da Igreja Católica sobre o tema. Atualmente, o acesso às informações ficou mais fácil, fazendo com que posições dogmáticas possam ser conhecidas, descontruídas ou, como mínimo, questionadas.

Sendo assim, vale a pena falar um pouco sobre o histórico do posicionamento da Igreja Católica sobre o tema do aborto. A divulgação desse histórico por setores da própria Igreja, que não são reconhecidos e não tem voz na instituição, como as Católicas pelo Direito a Decidir, é cerceada, pois aqueles que estão na cúpula não permitem a difusão das informações, preferindo a ignorância para impor sua posição.

A atitude da Igreja Católica em relação ao aborto nem sempre foi a mesma, e há autores que inclusive defendem que seu posicionamento atual é resultado de negociações políticas de sua cúpula e  não de posicionamentos religiosos.

Na realidade, a Igreja Católica, em 2 mil anos, nunca teve consenso sobre a questão do aborto e nesse período, seu parecer oscilou entre a flexibilidade e a proibição.

Estudos sobre a opinião dos teólogos mostram que “Santo Agostinho, ainda no século IV, defendia que só era possível falar em vida após 40 dias de gestação (6 semanas). Mil anos depois, outro intelectual católico, Tomás de Aquino, reafirmou que não reconhecia como humano o embrião que não tivesse completado 40 dias na barriga da mãe”[1].

“O estudo dos primeiros escritos cristãos – dos chamados padres da Igreja e dos teólogos dos séculos iniciais do cristianismo –, mostra um panorama bastante diversificado. Hurst, analisando a tradição da Igreja nesse campo do aborto, encontra que a razão da condenação do mesmo era, de início, ligada ao problema do adultério que a interrupção de uma gravidez ocultaria e ao pecado da fornicação, isto é, do sexo realizado sem a finalidade procriativa.”[2]

Somente em 1869, o papa Pio IX adotou a teoria de que a alma humana é incorporada na concepção e passou a condenar o aborto em qualquer estágio. Mas, a adoção desse posicionamento que perdura até a atualidade  é revelado por vários autores, que afirmam que o Papa adotou esse posicionamento, como resultado de negociação política:

“Para conferir um verniz “teológico” a uma decisão puramente política, o Papa utilizou textos do imperador Tertuliano (século III) e de Santo Alberto Magno (século XIII),  que defendiam a hominização imediata – ou seja, o ser humano existe desde o momento da fecundação.”[3]

 “E isso aconteceu porque a França passava por uma crise de baixa natalidade que incomodava os planos de industrialização do governante. Então, motivado por questões políticas, o papa disse para a população que a partir daquele momento o aborto – em qualquer fase da gravidez– era pecado.”[4]

Esses mesmos autores agregam que o acordo teria sido feito porque o Papa Pio IX necessitava do apoio francês para não permitir a anexação de Roma na guerra de unificação da Itália.

Quem conhece a história da Igreja católica e todas as atrocidades às quais aderiu, apoiou ou ocultou para manter seu poder, não duvida de que tal fato seja verdadeiro e que a pena da excomunhão que veio junto com essa medida do papa sobre o aborto tenha sido com interesses políticos e não de “defesa da vida” como quer nos fazer acreditar.

A hipocrisia e a ditadura presentes na posição da igreja

Não faltam exemplos para confrontar, questionar e duvidar da grande “verdade” contida na posição da Igreja Católica sobre a “defesa da vida”.

Como vimos acima, a grande defesa na qual se baseia é a questão de que o ser humano existe desde o momento da fecundação. E, ainda que a Igreja tente justificar suas posições divergentes no passado se apegando ao argumento de que a ciência tinha menos conhecimento, a afirmação da existência da vida no momento da concepção continua não tendo consenso entre os cientistas atualmente.

“A defesa do direito à vida desde a concepção – antes justificado pelos mais altos mandatários da igreja católica pelo fato de a vida iniciar-se no momento da concepção e ser um dom divino sobre o qual não tem qualquer direito a interferência, ganha novos contornos nas disputas atuais. Busca-se nas Ciências Biológicas, na Medicina e na Filosofia a justificativa para a localização do início da vida na fecundação…”[5]

Esse argumento, porém, não se sustenta, pois como coloca José Roberto Goldim, professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “ há pelo menos 19 formas médicas para decidir quando reconhecer esse embrião como uma pessoa.”[6]

Em conclusão: “Essa é uma discussão cheia de contradições e respostas diferentes. Um debate em que a medicina fica mais perto de ser uma ciência humana do que biológica e em que frequentemente se encontram cientistas usando argumentos religiosos e religiosos se valendo de argumentos científicos”

E mesmo que houvesse unanimidade científica de que existe vida a partir da concepção, os pesos e valores da Igreja, que tanto se aferra na “defesa da vida”, quando diz: “Explicitamente manifestamos nosso irrenunciável compromisso com a vida desde a concepção até a morte natural, com especial atenção à vida mais fragilizada … condição indispensável para que a democracia seja consolidada.”[7]

Não aparecem com tamanha devoção e interferência em assuntos de Estado, quando se trata de enfrentar o poder da classe dominante. Pois, se a “defesa da vida” é tão importante por que a Igreja nunca entrou com tamanha veemência e resolução no enfrentamento com os governos numa discussão tão atual como a dos migrantes, onde a vida de milhares de seres humanos, entre eles crianças de todas as idades, inclusive ainda na barriga da mãe, são literalmente perdidas por não terem o direito a ter um lugar para viver? Não vemos a Igreja fazendo lobby com parlamentares ou governos em nenhum país, quando se trata de votar leis para liberar a entrada de migrantes através das fronteiras dos países.

Também não se vê a Igreja entrar na discussão sobre a verdadeira guerra que mata milhares de crianças, adolescentes, jovens, principalmente pobres e negros da periferia, como no Brasil, onde a pobreza é a principal responsável. Ou ainda, alguém já viu a Igreja entrar na discussão do feminicídio que tira a vida de milhares de mulheres no Brasil e no mundo? Ao contrário, a Igreja, com sua posição machista sobre as mulheres, na verdade o que faz é incentivar a violência e o feminicídio. Poderíamos enumerar um cem número de exemplos atuais sobre a defesa da vida (sem aspas), onde não vemos a Igreja cumprindo esse papel.

Isto sem falar que historicamente a Igreja foi  ator principal, cúmplice ou se calou diante de verdadeiros genocídios como o colonialismo, o escravismo, o nazismo, as ditaduras, e novamente um longo etc…. Ou ainda, quando cumpriu diretamente o papel de torturar e tirar vidas, através da inquisição, matando  e mutilando milhares de seres humanos que, em seu julgamento eram hereges, bruxas, etc…

Também não vemos essa mesma Igreja ser radical no julgamento dos padres pedófilos que, com suas ações, causam a destruição de vidas individuais e familiares. E ainda somos obrigada/os a ouvir voz de dentro da igreja, como o arcebispo da Arquidiocese de Tuxtla Gutiérrez, México, Fabio Martínez Castilla, dizer que aborto é muito mais grave do que um padre abusar de uma criança.

Dessa posição e de muitas outras falas e práticas que vemos no dia a dia, podemos tirar conclusões sobre a verdadeira posição da igreja na “defesa da vida”.

Defendemos o Estado laico…. e mais, defendemos uma sociedade socialista

A religião ou a crença de cada um deve ser assunto privado em relação ao Estado. Ninguém deve ser discriminado ou perseguido pelo Estado devido às suas crenças religiosas. Isso significa ser um Estado laico, aquele que não discrimina e também não apoia nenhuma religião. Garante a existência do culto a qualquer religião e também a não interferência de qualquer culto religioso em assuntos sociais, políticos ou econômicos do Estado.  Muito menos que religiões que tem maioria de fiéis possam se impor sobre as minoritárias ou sobre aquelas pessoas que não tenham nenhum tipo de religião ou mesmos que se declarem ateus. No entanto, a Igreja Católica, disfarçando seus argumentos sob o manto da ciência, quando defende que o direito ao aborto deve ser negado às mulheres está obrigando a que todos/as se submetam à sua opinião.

A Igreja e os poderosos dizem que os socialistas são ateus e querem impor sua convicção sobre a sociedade, obrigando-a a não acreditar em Deus. É verdade que a concepção socialista defende o ateísmo, mas esse não é o critério utilizado para desenvolver a luta pelo socialismo.

Defendemos, diferente da prática da Igreja e da burguesia que, como dizia Lenin: “qualquer discriminação dos direitos dos cidadão relacionada com suas crenças religiosas é completamente inadmissível. Inclusive toda menção nos documentos oficiais sobre tal ou qual crença religiosa dos cidadãos deve ser inquestionavelmente suprimida”.

Continua Lenin: No que se relaciona com o partido do proletariado socialista, a religião não é um assunto privado… mas… não vamos nos desviar em direção a uma defesa abstrata, idealista, da questão religiosa pela “razão em si” fora da luta de classes… Seria absurdo acreditar que em uma sociedade baseada na infinita opressão e embrutecimento das massas operárias, é possível afastar os preconceitos religiosos exclusivamente pela via da pregação”

E falando sobre o socialismo, na Rússia diz: “ E nesse regime político, liberado do modo medieval, o proletariado empreenderá uma luta ampla, aberta, pela liquidação da escravidão econômica, que é a fonte verdadeira do engano religioso da humanidade”.[8]

A Igreja, em palavras faz o seguinte questionamento aos que defendem a o aborto “perguntamo-nos, entretanto, se a solução para elas se encontra na interrupção da gravidez ou no empenho de todos por uma nação em que os direitos fundamentais sejam efetivamente reconhecidos e cumpridos”.[9]

A resposta da própria Igreja a esse questionamento é a pregação da humildade e a resignação na vida na terra para esperar uma recompensa na vida celestial.

Nós defendemos a luta por uma vida digna aqui na terra e agora. Ao contrário da igreja não pregamos a resignação, defendemos a luta revolucionária por uma sociedade socialista, onde possamos acabar com a exploração para garantir os direitos fundamentais de sobrevivência e também as nossas liberdades. Uma sociedade em que possamos garantir a vida em todas as suas dimensões, onde não tenhamos nem crianças, nem adultos  morrendo de fome, sem um lugar para morar, sem emprego ou sem lugar para viver como no caso dos refugiados.

Defendemos a vida em todos os seus momentos e suas dimensões, não como a igreja que em nome da moral e da “defesa da vida”, quer proibir o aborto matando assim milhões de mulheres que praticam o aborto inseguro, ou que “defende a vida”, mas não faz nada em relação às causas que levam milhões de seres humanos à morte todos os anos, por falta de uma vida digna.

Queremos uma sociedade socialista que garanta a liberdade da mulher decidir sobre sua maternidade, se quer ser mãe e o momento de ser mãe. E que aquelas mulheres que livremente decidirem ser mães possam ter garantido esse direito com assistência do Estado no âmbito da saúde, educação, moradia, emprego, etc para que elas e seus filho/as sejam tratados como verdadeiros seres humanos.

E que, para aquelas que decidam não ser mães, mas que por qualquer razão, necessitem fazer o aborto, esse direito também seja garantido, com liberdade e sem culpa.

Por isso chamamos todas as mulheres e homens da classe trabalhadora a lutar pela legalização do aborto e mais que isso, a lutar por uma sociedade socialista, a única que pode garantir de fato as condições para a verdadeira emancipação das mulheres.

[1] https://www.revistaforum.com.br/igreja-catolica-nem-sempre-foi-contra-o-aborto/

[2] http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200012

[3] Idem

[4] https://super.abril.com.br/blog/superblog/uma-verdade-inconveniente-a-igreja-catolica-ja-tolerou-o-aborto/

[5]http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/324992/1/Souza_GedalvaDe_M.pdf

[6] https://super.abril.com.br/ciencia/vida-o-primeiro-instante/

[7] https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2018-07/igreja-catolica-orani-joao-tempesta-despenalizacao-aborto-brasil.html

[8] Marxismo Vivo, O marxismo e a religião, Revista  n° 2, 2011, – Liga Internacional dos Trabalhadores.

[9] https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2018-07/igreja-catolica-orani-joao-tempesta-despenalizacao-aborto-brasil.html

 

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