qui abr 18, 2024
quinta-feira, abril 18, 2024

María Rivera e as expropriações:  O que  propomos?

Uma entrevista do jornal El Mercurio com a nossa companheira María Rivera, eleita como deputada constituinte pela Lista do Povo, gerou um importante debate nas redes sociais nos últimos dias. Nessa entrevista, María afirma que os negócios das 10 famílias mais ricas do Chile devam ser expropriados sem indenização, e além disso, respondendo a uma pergunta do entrevistador, disse que na Venezuela não há socialismo.[1] 

Por: David Espinosa, do MIT

Para além dos inumeráveis comentários que desqualificam nossa companheira como louca ou ignorante[2], há alguns argumentos levantados que merecem ser discutidos. O primeiro deles é: o que tem a ver a expropriação com a Constituição? O segundo: expropriar vai gerar uma catástrofe econômica? Terceiro: a Venezuela é ou não é socialista? O programa que defendemos é o mesmo programa de Hugo Chávez e Nicolás Maduro?

Neste texto queremos responder a essas três perguntas.

1) O que tem a ver a expropriação com a Constituição?

Alguns dos comentários  contra nossa posição afirmam que a Constituinte não é o espaço para discutir temas como a expropriação. Que os deputados Constituintes devem se manter na redação da Constituição e nada mais.

María Rivera foi eleita como deputada Constituinte. Sua tarefa, do ponto de vista legal, é ser parte do grupo de constituintes que escreverá a próxima Constituição. Embora a tarefa dos constituintes seja “escrever” uma Nova Constituição, as decisões que forem tomadas nessa Constituinte devem ser transformadas em realidade, ou será letra morta, papel sem nenhum valor.

Em todas as Assembleias Constituintes no mundo discutiu-se a questão da propriedade privada, das Forças Armadas, dos recursos naturais, da organização do Estado, etc. Então, não há contradição alguma em propor que a próxima Constituição exproprie as principais empresas do país, hoje controladas por um pouco mais de 10 ou 15 grandes grupos monopólicos. A Constituição pode perfeitamente ser redigida no sentido de estatizar, sob controle dos trabalhadores, as grandes empresas das famílias que roubaram o país nas últimas décadas.

Essa questão é tão relevante que o próprio empresariado já a propõe como um dos centros do debate constitucional: a propriedade privada (não a propriedade de uma casa, um pequeno negócio ou um carro. A propriedade das grandes empresas, bancos, Administradoras de Fundos de Pensões (AFPs), etc.).[3] Este é um dos nós da discussão e por isso a posição de María Rivera (e do MIT) causa tanto alvoroço. Afirmamos que a Convenção Constitucional é hoje o organismo com maior legitimidade no país (embora não seja totalmente democrática) portanto está habilitada para discutir tudo. Se o Parlamento, o Tribunal Constitucional  ou o Executivo, que não tem legitimidade popular, podem discutir o que querem, por que a Constituinte não pode?

No entanto, nós não acreditamos que a Constituição vá aprovar a expropriação das 10 famílias mais ricas. Embora este tenha sido um dos eixos da nossa campanha[4]. Não acreditamos que a maioria do povo e dos constituintes pense como nós, pelo menos até agora. Por outro lado, queremos explicar aos milhões de trabalhadores que nos ouvirão, que não haverá nem saúde, nem educação, nem moradia digna, nem bons salários, nem bons empregos, se a maioria da população do país – os que trabalham, não os que vivem de renda – não se apropriar das principais empresas e do poder político do Estado.

Hoje falamos em recuperar a água, os recursos naturais, nossas aposentadorias, recuperar o território mapuche. E o que é isso senão expropriar as empresas que controlam todo esse território e recursos? E essas empresas pertencem às famílias mais ricas do país e às grandes transnacionais e bancos estrangeiros.

Essas famílias são multimilionárias justamente porque são donas das empresas que produzem a riqueza que depois se transforma em dinheiro e se acumula em seus bolsos. Mas essa riqueza, da Antofagasta Minerals, por exemplo, a mineradora de Luksic, é produzida pelos trabalhadores mineiros, não por Luksic. O papel de Luksic é administrar seus investimentos enquanto explora os trabalhadores que produzem todo o cobre que é exportado. E isso funciona da mesma forma em toda a economia capitalista. Essa é a raiz dos problemas que gera a brutal desigualdade que existe em nosso país e no mundo.

Em vários textos demonstramos o que se pode fazer com a riqueza apropriada por essas famílias. Só com o patrimônio da família Luksic seria possível triplicar o gasto público em Saúde por um ano. Se somarmos as 6 maiores fortunas (mais ou menos 35 bilhões de dólares) poderíamos pagar um salário de 600 mil pesos a 3,5 milhões de pessoas durante um ano, o que permitiria garantir quarentenas de verdade para acabar com a pandemia. Isto sem falar da grande riqueza produzida pela mineração do cobre, que fica nas mãos das transnacionais e sai do país, ou dos Bancos e AFPs.

Como se isso não fosse o suficiente, grande parte das empresas que essas famílias e algumas transnacionais possuem, foram entregues como parte do roubo do patrimônio nacional realizado durante a ditadura e pela Ex Concertación. Calcula-se que mais de 700 empresas foram privatizadas entre 1973-1990. Grande parte delas terminou nas mãos de ex -funcionários da ditadura e de famílias burguesas que apoiaram o golpe militar. Entre os casos mais emblemáticos estão o Banco do Chile (estatizado pela ditadura na crise de 83 e depois presenteado à família Luksic); todo o setor pesqueiro, cedido às transnacionais e à família Angelini; o lítio, presenteado ao genro de Pinochet, dono da SQM -Julio Ponce Lerou-, etc. Ou seja, grande parte do patrimônio produtivo nacional foi literalmente presenteado  a essas famílias. Recuperá-lo para o povo não só é necessário como totalmente legítimo.

Apresentaremos projetos nesse sentido para a Constituinte. Acreditamos que a própria realidade demonstrará aos trabalhadores que sem essa mudança fundamental, sem tocar na propriedade privada dos grandes meios de produção e distribuição da riqueza, não haverá mudanças profundas. Sabemos que há um enorme espaço para discutir essa questão com cada trabalhador e trabalhadora. Não temos ilusões de que a Constituinte aprovará expropriar as 10 famílias, mas queremos colocar todos nossos esforços e nossa tribuna para explicar pacientemente estas ideias para a grande maioria dos trabalhadores. Não acreditamos que uma medida tão importante como esta seja realizada dialogando com os partidos empresariais em uma Constituinte ou redigindo-as na Constituição. Essa medida, e muitas outras, só poderão ser garantidas com uma enorme mobilização popular, que caminhe no sentido de que o poder político e econômico seja conquistado pela classe trabalhadora.

2) Expropriar vai  gerar o caos econômico?

A Bolsa de Santiago caiu 10% depois do resultado das eleições constituintes. Alguns dos principais bancos norte-americanos (como o JP Morgan) anunciaram que o resultado não era bom para “os mercados ”.[5] O mesmo disseram várias agências de classificação de risco, que são fundamentais para que o Estado chileno obtenha crédito com os bancos estrangeiros. Então devemos nos perguntar: por que algo que é celebrado pelo povo é mau para os bancos internacionais e grupos empresariais? Simples, porque quando eles ganham, nós perdemos. Quando nós ganhamos, eles perdem. O maior temor dos grandes banqueiros e empresários é justamente que a classe trabalhadora entenda que para mudar as coisas, deve tomar em suas mãos seu próprio destino, e isso passa não só por redigir uma Constituição, mas principalmente por administrar as empresas que produzem a riqueza e ter o poder político.

Os grandes empresários foram derrotados na votação para os Constituintes. Mas eles dispõem de outros mecanismos para interferir na política e na economia.  Quanto mais o povo avançar em tomar as medidas que necessita, mais os empresários tentarão desestabilizar a economia, ameaçar com a fuga de investimentos e inclusive com a intervenção das Forças Armadas. Isso é assim porque estamos em lados opostos, trincheiras opostas. De um lado, o povo, do outro, a burguesia chilena e estrangeira, o 1%.

Não são as expropriações de empresas que desestabilizam a economia. Em primeiro lugar, a economia capitalista por si só é anárquica: ao não responder a nenhuma planificação, não há nenhuma forma de controlá-la. A busca incessante de lucros pelas empresas, a acumulação de capital nas mãos de uns poucos e o avanço tecnológico permanente fazem com que sejam produzidas cada vez mais mercadorias (riqueza), porém com cada vez menos pessoas que possam consumir (já que o dinheiro se concentra nas mãos dos multimilionários). Isso, de tempos em tempos, gera crises econômicas brutais. Essas crises são fruto da própria economia capitalista, que é caótica, anárquica. Por isso há tanta preocupação dos capitalistas em manter “a autonomia do Banco Central”, por exemplo, porque o Banco Central é a entidade que tenta regular ou manter a “estabilidade” do sistema financeiro, independente do governo no poder. A maioria dos constituintes (inclusive da Lista do Povo), quando respondem à pergunta sobre a autonomia do Banco Central, diz que essa autonomia é importante para garantir a “estabilidade” da economia. Mas ninguém se pergunta: por que a economia é instável? Porque no capitalismo o funcionamento da sociedade é determinado pela luta incessante entre as potências capitalistas, os grandes bancos e empresas por mais lucro. Não há planificação econômica, não são os interesses da maioria trabalhadora que estão em primeiro lugar. É a luta pelo lucro.

Então, a primeira coisa é entender que a economia capitalista em si mesma é anárquica e de tempos em tempos gera crises econômicas profundas. A maior crise econômica ocorrida no Chile nos últimos 50 anos não foi a dos ’70, sob o governo de Allende. Foi a de 82-83, depois de 10 anos de ditadura. Mais da metade da população ficou desempregada ou com subemprego, inumeráveis empresas quebraram. A crise foi tão brutal que a própria ditadura, contra toda a orientação dos “Chicago Boy’s”, teve que estatizar muitas empresas que quebraram para “saneá-las” com fundos públicos e depois serem devolvidas aos seus donos. Essas empresas formaram o que ficou conhecido como “a área rara” da economia- Isapres, AFPs, Bancos e muitas outras.

O segundo elemento que é fundamental entender é que a cada passo que o povo dê para adiante, os grandes empresários vão nos atacar. Esses ataques não serão só com Carabineiros ou juízes, serão também econômicos. Quando eles dizem que expropriar as grandes empresas geraria o caos econômico, tem certa razão. O que não dizem é que o caos econômico será gerado por eles mesmos, já que nunca aceitarão perder suas propriedades e privilégios. Isso foi o que aconteceu nos anos 70, quando Allende, pressionado pelos trabalhadores, começou a estatizar empresas. Os grandes capitalistas donos do cobre, apoiados pelos Estados Unidos, e os principais capitalistas chilenos (Matte, Yarur, Edwards, etc.) começaram a desestabilizar a economia para não continuar perdendo. Essa desestabilização se deu de muitas formas: retirando dinheiro do país, bloqueando o crédito dos bancos ao governo, bloqueando a entrada de matérias primas e máquinas, armazenando produtos ilegalmente para gerar inflação e desabastecimento, etc.

Em resumo, afirmamos: 1) o caos econômico capitalista que se manifesta de tempos em tempos em crises econômicas brutais é resultado da própria dinâmica da economia capitalista; 2) o caos econômico que poderia surgir de medidas radicais tomadas pelo povo será gerado pelos grandes capitalistas.

Então, quando o povo está preparado e consciente para seguir o caminho que estamos propondo, tirará a conclusão de que suas medidas deverão ser acompanhadas por uma luta muito dura contra a burguesia. A cada ataque da burguesia, deveremos responder com mais dureza. Se as fábricas começam a fechar porque seus investidores preferem retirar seu dinheiro do país, devemos estatizá-las e colocá-las sob controle dos trabalhadores. Se os grandes empresários quiserem retirar seu dinheiro do país, deveremos tomar o controle dos grandes bancos para que o povo administre essa riqueza. Tudo isso só será possível com um povo consciente, organizado e mobilizado. Mas para que saibam, este é nosso plano.

3)  A Venezuela é um país socialista?

A terceira afirmação muito polêmica de nossa companheira María Rivera é que na Venezuela não há socialismo. A grande mídia burguesa e os partidos dos grandes empresários que quiserem identificar María com o chavismo terão um problema. O problema é que María Rivera, o MIT e nossa corrente internacional, a Liga Internacional de Trabalhadores, sustentamos há décadas que o chavismo é um fenômeno burguês e não socialista .[6]

A primeira discussão aqui é: o que entendemos por socialismo? Se por socialismo entendemos um Estado que tem peso na economia e garante alguns direitos sociais básicos, como os Estados de Bem Estar Social na Europa, poderíamos dizer que o chavismo, até certo ponto, foi socialista, já que usou a renda petroleira para ampliar os direitos sociais.

Mas o socialismo não é isso. O socialismo é uma forma de organização social e econômica que supera o capitalismo, não que o complementa. O socialismo é o oposto do capitalismo.

As revoluções socialistas do século XX, como a Revolução Russa, a Revolução Chinesa ou a Revolução Cubana tiveram várias coisas em comum e que as caracterizam como “socialistas”.  A primeira delas foi a enorme mobilização popular. A segunda, que essa mobilização chocou com o Estado (que era administrado pelas burguesias nacionais e estrangeiras) e essa mobilização resultou na destruição desses Estados capitalistas. Nesses países foram organizados outro tipo de Estados, Estados operários, ou seja controlados pelo povo, que estava organizado e armado (embora depois os Partidos Comunistas expropriaram o poder dos trabalhadores e se transformaram em burocracias contra o povo).  Em terceiro lugar, toda a grande burguesia foi expropriada e suas empresas foram organizadas sob controle desse novo Estado operário. O capitalismo, nesses países, começou a desaparecer. Entretanto, como já previam grande parte dos principais teóricos marxistas, como Marx, Lenin e Trotsky, esses Estados operários não poderiam resistir muito tempo se não conseguissem avançar para que o socialismo existisse em todo o planeta. A política dos Partidos Comunistas – Stalin, Mao e Fidel Castro – foi de conter a revolução mundial, não de promovê-la. Assim, foram negociando e fazendo acordos com as potências capitalistas, o que terminou por criar as condições para que os próprios Partidos Comunistas e seus burocratas restaurassem o capitalismo e se transformassem em novas burguesias. Assim ocorreu na China, Cuba e na ex- União Soviética, onde o capitalismo foi restaurado .[7]

Entretanto, a Venezuela é um caso muito diferente. Na Venezuela nunca houve socialismo, nem o projeto de Chávez foi construir o socialismo (para além de suas palavras). O projeto de Chávez era usar a renda petroleira para desenvolver industrialmente o país, apoiado em uma burguesia venezuelana “progressista”. Esse projeto seria guiado pelos militares e por essa nova burguesia – a burguesia bolivariana – , supostamente patriótica. Para meter as mãos na renda petroleira, Chávez enfrentou as grandes transnacionais petroleiras, expropriando parte da produção de petróleo e do sistema financeiro (embora sempre pagando enormes indenizações, às vezes até acima do valor do mercado- como no caso do Santander[8]-). Entretanto, quando a burocracia do partido de Chávez–o PSUV– e os militares se tornaram donos da renda petroleira, viram que isso lhes dava muito mais poder político e econômico e não tiveram nenhum interesse em industrializar o país e diminuir a dependência do petróleo. Começaram a se enriquecer e negociar sua cota do roubo com as transnacionais imperialistas.

A Venezuela nunca chegou à transição do capitalismo para o socialismo, como Cuba, China ou a ex -URSS (hoje, países totalmente capitalistas). Na Venezuela, a boliburguesia utilizou o aparato do Estado para ter cada vez mais dinheiro e poder. Para isso, teve que brigar com os Estados Unidos e terminou por se aproximar de outras burguesias, como a chinesa, a russa e a iraniana. Na Venezuela, nunca houve controle operário das empresas, o Estado capitalista nunca deixou de existir. As Forças Armadas, hierárquicas e controladas por uma oficialidade burguesa, não só não desapareceram como se tornaram cada vez mais poderosas. O que ocorreu na Venezuela está longe do que ocorreu em Cuba, China ou na ex –URSS.

Por isso, dizemos que a Venezuela nunca foi socialista, embora Chávez e Maduro fizessem discursos inflamados pelo socialismo e contra a burguesia norte-americana.

O projeto defendido pelo MIT e María Rivera não é o projeto chavista. É o projeto de uma revolução socialista que coloca os trabalhadores no poder político e econômico. Essa revolução pode avançar mais rapidamente em um país, mas não tem possibilidade de sobreviver isolada, justamente porque o poder internacional da burguesia pode massacrá-la, como discutimos no segundo subtítulo deste texto sobre as expropriações. A revolução chilena tem que ser o primeiro passo da revolução mundial, para que nos libertemos de uma vez por todas do jugo dos grandes capitalistas, que estão levando a humanidade e o planeta à destruição.

[1]     2021-05-20 | 4 : Nacional | C(C23VARTG) (elmercurio.com).

[2]     Ver comentários em “Expropriação sem indenização”: constituinte da Lista do Povo explica frase de campanha | Nacional | BioBioChile

[3]     Propriedade privada na nova Constituição – Centro de Estudos Públicos (cepchile.cl). O CEP é um dos principais Centros de Estudos do grande empresariado chileno, ligado à família Matte. Citação sobre o vídeo: “Em sua exposição, Vergara destacou que nas sociedades capitalistas modernas, a propriedade privada está na essência do sistema econômico: “nas constituições nas quais se consagra o direito de propriedade se fala de que a pessoa não pode ser privada dele, exceto quando há uma necessidade pública”.

[4]     Para mudar o Chile: expropriar as 10 famílias mais ricas, as mineradoras e AFPs | MIT (vozdelostrabajadores.cl)

[5]     JP Morgan após comícios: “A composição da Convenção é pior do que o mercado esperava ” | Especial | BioBioChile

[6]     Venezuela e a crise do chavismo – LIT-CI (litci.org) / Para onde vai a Venezuela? – LIT-CI (litci.org) / A gênese do chavismo – LIT-CI (litci.org) / Venezuela: os debates com a esquerda – LIT-CI (litci.org)

[7]     Sobre a queda do Muro de Berlim: Prólogo ao livro “O Veredito da Historia”, de Martín Hernández – LIT-CI (litci.org) / Prólogo al Veredicto de la Historia de Martín Hernández – LIT-CI (litci.org)

[8]     O Governo de Chávez e Santander formalizam a compra-venda do Banco da Venezuela – Cotizalia.com (elconfidencial.com)

Tradução: Lilian Enck

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