Liberdade de vestir, liberdade de ser: a resistência das mulheres turcas contra o autoritarismo

Por: Érika Andreassy
A decisão da feminista turca Berrin Sönmez de retirar o hijab que usava há décadas em protesto contra o governo de Recep Tayyip Erdoğan abriu um debate internacional sobre liberdade de vestimenta, laicidade e opressão das mulheres. Seu gesto, profundamente político, sintetiza uma realidade que vai além da escolha individual: trata-se de uma resposta direta ao avanço de um regime autoritário que, ao mesmo tempo que reforça a islamização forçada da vida social, retira direitos e intensifica a repressão contra a classe trabalhadora e, em particular, contra as mulheres.
A Turquia é um exemplo de como a burguesia utiliza o controle sobre o corpo feminino como instrumento político. Desde a saída do país da Convenção de Istambul, marco internacional no combate à violência de gênero, o governo aprofundou políticas de silenciamento, censura e criminalização das mulheres que se organizam. O gesto de Sönmez deve ser entendido nesse contexto: não como uma simples decisão pessoal, mas como denúncia de que o Estado se utiliza da religião e da moral patriarcal para impor submissão.
O marxismo revolucionário não trata o uso do véu como uma questão abstrata de “costume” ou “cultura”. O que está em jogo é a liberdade de escolha das mulheres, algo sistematicamente negado pelo capitalismo. Sob regimes autoritários, como o de Erdoğan, as mulheres sofrem dupla opressão: como classe explorada e como gênero subordinado. Assim, o Estado ora criminaliza a nudez e a autonomia sexual, ora obriga à modéstia e ao recato, dependendo de qual ideologia mais serve à sua dominação. É a mesma lógica que, em outros lugares, criminaliza o aborto, naturaliza a violência doméstica e privatiza a maternidade.
Ao mesmo tempo, é preciso destacar que não se trata de uma “guerra cultural” entre Ocidente e Oriente, como pregam setores liberais e imperialistas. A luta das mulheres na Turquia é parte da luta mundial contra a opressão das mulheres e contra o capitalismo que a sustenta e reproduz. Da mesma forma que mulheres latino-americanas enfrentam a criminalização do aborto, ou que trabalhadoras nos EUA resistem às novas leis restritivas, as mulheres turcas enfrentam a imposição religiosa estatal. Em todos esses casos, está em disputa a autonomia sobre o próprio corpo e a vida.
O que vemos é que a liberdade real só pode ser conquistada pela organização coletiva. Gestos individuais, como o de Berrin Sönmez, tornam-se potentes quando alimentam um movimento de massas, capaz de enfrentar não apenas as opressões mas também a exploração capitalista que é sua base material. As mulheres turcas já deram mostras de sua força: em 2013, estiveram na linha de frente dos protestos de Gezi; recentemente, protagonizaram mobilizações contra os feminicídios e contra a retirada da Convenção de Istambul. São essas lutas que podem abrir caminho para uma transformação mais profunda.
Do ponto de vista revolucionário, defendemos que a luta das mulheres na Turquia — assim como em todo o mundo — deve estar vinculada à luta contra o regime burguês e por um governo operário e popular. A emancipação feminina não virá da modernização capitalista, nem da imposição de modelos “ocidentais”, mas sim da destruição de todas as formas de exploração. Defender o direito de usar ou não o véu, de escolher ou não a maternidade, de viver livre de violência, só será possível plenamente em uma sociedade socialista, onde as mulheres não sejam mercadorias nem propriedade de ninguém.
O gesto de Berrin Sönmez ressoa porque simboliza algo maior: a recusa a ser silenciada. Transformá-lo em força material exige organização, solidariedade internacional e um programa revolucionário que una as bandeiras da classe trabalhadora e das mulheres contra o capitalismo e o machismo. A luta pela liberdade de vestir é, no fundo, a luta pela liberdade de ser — e essa só será conquistada derrubando o sistema que nos oprime.