Uma aliança entre o povo palestino e o proletariado israelense é impossível

Por: Alejandro Iturbe
O repúdio à ocupação da Faixa de Gaza pelo exército israelense, e seus métodos genocidas, gerou uma grande onda global de mobilizações de solidariedade e apoio ao povo palestino e sua luta. Uma nova Flotilha da Liberdade está em andamento. Uma nova geração de jovens ativistas (alguns pela primeira vez em suas vidas) que tomaram a questão palestina como o centro de sua rebeldia participam massivamente dessas mobilizações.
Os jovens que participam dessas mobilizações unitárias e o povo palestino recebem várias propostas sobre quais devem ser os objetivos dessa luta e as formas de alcançá-los. Uma delas é que o povo palestino deve fazer uma aliança com um setor da sociedade israelense (especialmente sua classe operária) para lutar juntos contra o sionismo e derrotá-lo. Consideramos que esta proposta está completamente equivocada e vamos polemizar com ela.
É muito pouco conhecido, mas o primeiro a formular tal proposta foi Dov Ber Borochov, um ativista judeu nascido na Ucrânia em 1881. Em 1905, ele fundou a organização Poalei Zion (Trabalhadores de Sião), que afirmava ser “sionista socialista” e proletária.
Em seus escritos, reunidos em A Questão Nacional e a Luta de Classes[1], Borochov argumentou que as classes operárias árabes e judaicas tinham interesses comuns na luta contra a exploração na Palestina e que podiam e deviam conviver em paz. É importante lembrar que, na época em que escreveu esses textos, os judeus representavam apenas 7% da população da Palestina (nesse período sob o domínio do Império Turco) e não sofriam nenhuma discriminação dos árabes palestinos (com uma tradição de grande tolerância para com as minorias).
Borochov e Poalei Zion tornaram-se a “ala esquerda” da política do movimento sionista: encorajar a emigração de judeus europeus para a Palestina para construir o Lar Nacional Judaico (Israel) lá. Em sua visão, a classe trabalhadora judaica, oprimida pelo capitalismo no exílio, poderia se libertar e se unir em um estado nacional próprio, em Israel, o que lhe permitiria lutar contra a burguesia e construir uma sociedade socialista judaica. A profunda omissão na proposta de Borochov é que, para alcançar tal estado nacional na Palestina, os judeus teriam que expulsar o povo palestino de sua terra.
A partir de 1907, perseguido pelo czarismo, Borochov teve que se exilar em Viena e nos Estados Unidos. Ele retornou à Rússia e, após a Revolução de Fevereiro de 1917, apoiou a Revolução de Outubro e formou as “brigadas judaicas” que enfrentaram a contrarrevolução.
Borochov morreu de pneumonia pouco depois. Portanto, ele não estava vivo quando o sionismo demonstrou inequivocamente seu caráter de agente do imperialismo. Menos ainda experimentou as condições concretas em que o Estado israelense foi criado ou os métodos genocidas usados pelas milícias armadas sionistas. Não sabemos qual teria sido sua posição diante desses eventos. No entanto, pensamos que seria importante discutir as suas posições, porque ainda estão presentes em algumas propostas atuais.
Por que é impossível alcançar tal aliança?
Por exemplo, Gilbert Achcar é a principal referência para os processos do Oriente Médio do Birô Político da Quarta Internacional (o nome atual da organização de origem trotskista conhecida no passado como SU-Secretariado Unificado da Quarta Internacional).
Em um artigo de outubro de 2023, ele afirma que um dos principais objetivos da “ação política” do povo palestino deve ser alcançar “a emancipação da própria sociedade israelense da lógica do sionismo…”.[2]É uma formulação um pouco mais ampla do que a apresentada no passado por organizações trotskistas como o CIT (Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores): uma aliança entre o povo palestino e a classe operária israelense para acabar com o Estado sionista.
Essas propostas são equivocadas porque são objetivamente impossíveis de serem alcançadas, dado o caráter do Estado de Israel desde o seu início e, como consequência, o caráter de sua população. O ponto de partida dessas propostas equivocadas é não entender que Israel não é um país opressor/imperialista “normal”, mas um enclave imperialista. Foi criado pelas potências imperialistas com base no roubo e usurpação do território palestino e na expulsão violenta desse povo de suas terras, com métodos genocidas. O sionismo foi a ferramenta usada pelo imperialismo para criar esse enclave.
Naquele território roubado dos palestinos, uma população estrangeira foi artificialmente instalada, e continua a fazê-lo, (principalmente judeus de origem europeia, mais tarde também de outros países) que construíram suas vidas sobre as bases que descrevemos: as casas em que vivem os operários israelenses, as escolas onde seus filhos estudam, as fábricas e os campos em que trabalham foram construídos nas terras que foram roubadas do povo palestino, dos que foram expulsos. Toda a sociedade israelense (incluindo a grande maioria de sua classe operária) está ciente disso e não está disposta a devolver essas terras.
Não existe bom sionismo
Portanto, é um grave erro propor ganhar a “sociedade israelense” (ou sua classe operária) para uma aliança contra o sionismo ou considerar que apenas o governo de Netanyahu e sua política genocida contra os palestinos expressam o sionismo. Algo como “é possível haver um bom sionismo”.
Os fatos históricos negam categoricamente essa possibilidade. O primeiro líder político do Estado israelense, Ben Gurion, começou sua militância em Poalei Zion (ao qual já nos referimos) e mais tarde se tornou o fundador do Mapai (partido trabalhista israelense). Foi seu governo que realizou a primeira nakba contra os palestinos. Golda Meir pertencia ao mesmo partido e era primeira-ministra quando Israel ocupou militarmente Gaza e a Cisjordânia em 1967, após a “Guerra dos Seis Dias”. Reprimiu com extrema crueldade, prendeu e assassinou jovens e crianças que resistiram à ocupação com pedras nas mãos.
A sociedade israelita foi girando politicamente cada vez mais para a posição de que é preciso apoderar-se de todo o território da Palestina e, para esse fim, expulsar definitivamente o povo palestino, ainda que por métodos genocidas. O Partido Trabalhista Israelense (um suposto “bom sionismo”) foi-se enfraquecendo crescentemente: nas eleições de 2020, obteve apenas 3 deputados para o Knesset (assembleia legislativa de 120 membros). Por isso, por muitos anos, o papel central nos governos e no regime político israelense foi ocupado pelo partido sionista de direita (Likud), agora liderado por Benjamin Netanyahu, em aliança com organizações ainda mais à direita.
Hoje, é impossível manter a roupagem falsamente socialista e progressista com que se tentou ocultar o caráter do Estado israelense como um enclave imperialista desde sua fundação e os métodos genocidas que usou e usa contra os palestinos. Mesmo importantes políticos israelenses já reconhecem que o estado sionista foi construído com uma ideologia semelhante à do nazismo e emprega os mesmos métodos genocidas contra os palestinos que os nazistas usaram contra os judeus europeus.
Existem, é evidente, alguns intelectuais que criticaram duramente o sionismo e seus métodos, romperam com ele e chamam a combate-lo. É o caso de Ana Shapiro, Ilan Pappé e Shlomo Sand[3]. Mas essas são exceções individuais no quadro de uma sociedade israelense que, em sua esmagadora maioria, apóia a lógica sionista (“A Palestina deve pertencer aos judeus”).
A tradição do trotskismo
Desde o início desse processo, o trotskismo e a Quarta Internacional tiveram uma posição muito nítida. Sua declaração de 1947 afirma: “A posição da Quarta Internacional sobre a questão palestina permanece tão nítida quanto no passado. Estará na vanguarda da luta contra a partilha, em favor de uma Palestina unida e independente…” Depois acrescenta que Israel é “um projeto expansionista artificial”, que é considerado um “instrumento do imperialismo para controlar a região”.[4]
Posteriormente, essa tradição foi mantida por várias organizações trotskistas. Em 1971, o SWP estadunidense declarou (na Resolução sobre Israel e a Revolução Árabe): “Israel foi criado de acordo com o objetivo sionista de estabelecer um estado judeu. Só conseguiu se estabelecer no Oriente árabe às custas dos povos indígenas da região. Tal Estado só poderia existir e manter-se apoiando-se no imperialismo. Israel é um estado capitalista, colonialista e expansionista, mantido principalmente pelo imperialismo estadunidense e hostil aos povos árabes vizinhos”.[5]
Em 1973, o PST argentino estabeleceu uma posição semelhante no documento Palestina: História de uma Colonização, escrito por Nahuel Moreno[6]. Nesse material, um novo elemento é incorporado: tomar como seu o slogan “Por uma Palestina Laica, Democrática e Não Racista”, eixo do programa fundador da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), de 1964. Para realizar essa aspiração do povo palestino, era necessário destruir o Estado de Israel. Em 1982, esta proposta foi incorporada como parte do acervo programático da LIT-QI. Nessa mesma época, a OLP começava a abandoná-la e a adotar a consigna dos “dois estados”. Finalmente, abandonou definitivamente com os Acordos de Oslo[7].
Em 1985, um camarada enviou uma carta criticando essa consigna. Moreno escreveu uma resposta onde a qualificava como ” consigna democrático / transicional” que “pode abrir o caminho para a revolução operária” na Palestina e no mundo árabe[8].
Nesse texto, Moreno analisa que todos os setores da classe operária israelense eram “bastiões do Estado sionista”, tanto os de origem asquenaze (mais privilegiados), quanto os de origem sefardita ou sabras (mais explorados e discriminados). Diz que “o único setor social em luta permanente contra Israel” é “o movimento árabe e muçulmano, em cuja vanguarda indiscutível estão os palestinos”.
As organizações que se reivindicam trotskistas e propõem “uma solução pacífica”, “a formação de dois Estados” ou uma “aliança entre o povo palestino e a classe operária israelense” o fazem em total contradição com a posição trotskista e da Quarta Internacional, desde 1947. Pior, eles negam completamente a realidade.
Algumas considerações finais
Neste ponto, é necessário referir-se à crise interna do Estado sionista: importantes personalidades intelectuais pedindo o fim do genocídio em Gaza e crise com os soldados reservistas. Nesse contexto, em setembro passado houve uma greve geral cujo eixo era a exigência ao governo de Netanyahu de que sua prioridade fosse o retorno com vida dos reféns israelenses mantidos pelo Hamas em Gaza. E se fosse necessário, que ele assinasse um cessar-fogo com o Hamas para trocar prisioneiros (algo que o governo israelense se recusa a fazer).[9]
É muito bom que essas contradições existam na sociedade israelense porque, como analisou a professora Arlene Clemesha, elas “enfraquecem Israel” e seu regime político[10]. O povo palestino deve aproveitar essa fragilidade para atacar esse inimigo “enfraquecido” com ainda mais força.
Mas é um erro conceitual gravíssimo (do qual deriva uma política equivocada) acreditar que essas contradições possam avançar e dar um salto qualitativo em setores massivos da população judaica de Israel (ou sua classe operária) que os levará a romper com a “lógica sionista” e apoiar a destruição de Israel. Inevitavelmente se unirão à burguesia israelense para defender “seu estado judeu” contra o “inimigo palestino”. Como Nahuel Moreno apontou, a destruição do Estado sionista só poderá ser realizada pelo povo palestino, apoiado pelos trabalhadores e pelas massas árabes e muçulmanas. Qualquer proposta que não ajude nesse objetivo acaba ajudando o inimigo sionista.
[1] https://www.marxists.org/espanol/tematica/cuadernos-pyp/Cuadernos-PyP-83.pdf
[2] Primeiras notas urgentes sobre a contraofensiva do Hamas – Viento Sur
[3] https://litci.org/es/existe-un-pueblo-judio/?utm_source=copylink&utm_medium=browser
[4]https://www.marxists.org/espanol/tematica/palestina/documentos/externos/4inter-editorial-1947.htm
[5] https://www.marxists.org/history/etol/document/swp-us/24thconvention/zionism.htm
[6] https://nahuelmoreno.org/palestinahistoria-de-una-colonizacion/
[7] https://litci.org/es/oslo-la-paz-de-los-cementerios-para-la-continua-nakba/?utm_source=copylink&utm_medium=browser
[8] https://www.marxists.org/espanol/moreno/pi1105.htm
[9] https://litci.org/es/la-huelga-general-amplia-la-crisis-israeli/?utm_source=copylink&utm_medium=browser
[10] «Israel nunca esteve tão pressionado e encurralado», | Internacional (brasildefato.com.br)
Tradução: Lílian Enck