A questão Drusa na Síria

Por: Fábio Bosco
No dia 11 de julho, um grupo de beduínos atacou um comerciante de vegetais que viajava na rodovia que liga a cidade de Sweida e a capital Damasco. O comerciante foi agredido e suas mercadorias roubadas.
No dia seguinte, milicianos drusos sequestraram oito beduínos e, em seguida, milicianos beduínos sequestraram cinco drusos. A situação deteriorou gravemente com mais sequestros e trocas de tiros na cidade de Sweida e seus arredores. (I)
No dia 14 de julho, as forças de segurança e militares do governo nacional intervieram para assegurar seu controle sobre a província, sob o argumento de restaurar a ordem pública. A intervenção foi um desastre político. As milícias drusas resistiram à intervenção e o número de mortos e feridos, entre outras violações de direitos humanos se multiplicaram efetuadas por todas as partes, sejam as milícias locais – drusas e de beduínos – ou as forças do governo nacional. A intervenção demonstrou mais uma vez a presença de salafistas sectários dentro das forças de segurança, o que contribui para o clima de guerra entre as comunidades.
No dia 16 de julho, o exército israelense bombardeou as forças governamentais em Sweida, além do Ministério de Defesa Sírio e do Palácio Presidencial em Damasco, sob alegação de defesa da população drusa. Além disso, cerca de mil drusos que vivem na Palestina e na Síria ocupada por Israel, entraram em território sírio não ocupado para apoiar as milícias drusas.
No mesmo dia, o governo nacional reiterou o acordo de cessar-fogo feito com lideranças drusas locais que não são hostis a Damasco, lhes passou o controle da região e retiraram todas as forças nacionais a partir da meia-noite.
Mesmo com a retirada das forças nacionais, o conflito local segue. Segundo a ONG Observatório Sírio de Direitos Humanos, baseada em Londres, desde o dia 11 há mais de 500 mortos, a maioria são combatentes das forças locais e nacionais. Mas 154 são civis, dos quais 83 foram sumariamente executados por forças do governo nacional.
Drusos e beduínos em luta por terra
A província de Sweida está localizada no sul da Síria na fronteira com a Jordânia, que sempre foi negligenciada pelos governos nacionais. Sua principal atividade econômica é a agricultura mas, nos últimos anos da ditadura Assad, a atividade de contrabando, principalmente de uma droga sintética chamada de captagon, ganhou força. A maioria da população é drusa, uma religião originária do ramo xiita e ismaelita. Há também uma presença de seis grandes tribos beduínas, muçulmanas e cristãs.
Os conflitos entre as duas comunidades antecedem a queda do regime e sua solução depende de garantir o acesso de todos à terra, através de reforma agrária e incentivos para a produção agrícola. Além disso, todos os envolvidos em atos de vingança devem ser julgados e punidos, e as milícias ligadas ao tráfico de drogas, desarmadas.
Qualquer tipo de reforma agrária enfrentará a oposição dos grandes proprietários de terra, sejam drusos ou beduínos, e das milícias ligadas ao tráfico e contrabando na fronteira. Até o momento não houve qualquer posicionamento a favor de uma reforma agrária por parte do governo nacional.
A conquista da reforma agrária dependerá da luta dos camponeses pobres, sejam eles drusos ou beduínos, em aliança com os trabalhadores e a juventude urbanos.
Sionismo druso?
A comunidade drusa na Síria é dividida com relação à Damasco e à Israel. De um lado há importantes líderes religiosos como o Sheikh Youssef Jaboua e a milícia Homens de Dignidade liderada por Laith al-Balaous que defendem a integração plena na nova Síria e se opõem a qualquer interferência israelense. De outro lado está o Sheikh Hekmat al-Hijri e o Conselho Militar de Sweida (que reune 160 milícias) que se opõem à Damasco e se aliam ao Estado sionista.
Sheikh al-Hijri pediu intervenção estrangeira na Síria em abril, e agora se opôs à intervenção do governo nacional em Sweida, defendeu a normalização de relações com Israel, e afirmou que: “o inimigo não está em Israel, está em Damasco”, em apoio aos ataques israelenses. Sua posição é minoritária entre os drusos, mas a desastrosa intervenção do governo nacional em Sweida ampliou a popularidade de al-Hijri. Há vídeos circulando na internet que mostram uma bandeira de Israel em meio a bandeiras drusas.
Este posicionamento do Sheikh al-Hijri lhe valeu o apelido de “Antoine Lahd sírio”. Lahd liderou o famigerado “Exército do Sul do Líbano”, uma milícia financiada e armada por Israel, que atuou e ocupou o sul do Líbano desde 1975 até 2000, quando as tropas israelenses foram expulsas do Líbano, e Lahd fugiu para Israel. Lahd colaborou com a ocupação e agressão israelense ao Líbano, e foi julgado traidor da pátria pelo judiciário libanês. (II)
Fora da Síria, a comunidade drusa também se divide. No Líbano, há um posicionamento contrário à Israel expresso na principal liderança drusa, Walid Jumblat. Na Palestina ocupada, ao contrário, há cerca de 150 mil drusos com cidadania israelense e com participação expressiva nas forças armadas sionistas, a IDF. Há ainda cerca de 26 mil drusos sírios nas colinas de Golã, ocupadas por Israel em 1967. A ampla maioria recusa a nacionalidade israelense, e reivindica sua condição de cidadãos sírios vivendo sob ocupação.
No dia 16 de julho, em meio aos conflitos em Sweida, cerca de mil drusos, com ou sem armas, entraram em território sírio para apoiar os drusos de Sweida. Não há informações disponíveis para afirmar que a maioria eram sionistas ou sírios que vivem nas colinas de Golã ocupadas por Israel.
Israel e a partição da Síria
O Estado de Israel tinha um acordo de não-agressão com a ditadura Assad desde 1974. Na prática, Assad protegia a fronteira israelense contra qualquer ação antissionista. Além disso, há indícios que Assad passava informações aos israelenses sobre a localização de depósitos e comboios de armas em território sírio. Por isso o Estado de Israel não apoiou a queda de Assad.
Após sua queda, Israel entendeu que a reconstrução da Síria a colocaria, no futuro, em rota de colisão com as atrocidades sionistas. Por isso, destruiu todos os depósitos de armas sírios, além de bases aéreas e edifícios do serviço de inteligência. Além disso, pressionou os Estados Unidos para que este mantivesse as sanções contra a Síria, e que mantivesse as tropas no nordeste do país para promover uma partição da Síria em áreas de influência israelense (ao sul), americana (no nordeste) e russa no litoral.
No entanto, Trump, sob pressão de seus aliados saudita e turco, retirou as sanções, reduziu as tropas e não deu sinal verde para Israel seguir o plano de partição. Além disso, orientou Israel a buscar negociações para normalizar relações com a Síria. Isso não quer dizer que Trump discorde das ambições israelenses de se tornar a única potência regional a quem todos os países devem se submeter, e tomar terras árabes de acordo com seus interesses.
Nestas negociações, o governo sírio buscou retomar os compromissos de não-agressão firmados por Assad em 1974. Israel, ao contrário, quer uma rendição de Damasco, negociando as colinas de Golã, desmilitarizando o sul do país, permitindo ataques israelenses em território sírio (tal qual Assad e os russos lhe permitiam) e a abertura de um escritório israelense em Damasco.
Sem acordo, Israel bombardeou Sweida e Damasco no último dia 16. Seu objetivo ainda é particionar a Síria, separando o sul e o nordeste com apoio dos drusos e curdos.
Apesar da oposição de todos os governos da região às agressões israelenses, ninguém vai além da diplomacia. Nesta semana, um dos principais aliados do novo governo sírio, a Turquia expressou sua indisposição a apoiar qualquer enfrentamento militar com Israel através de seu ministro de relações exteriores, Hakan Fidan. (III)
Mahdi Amel contra o estado sectário
A fórmula israelense de partição da Síria em pequenos protetorados é uma fórmula colonialista clássica. O imperador Julio César a aplicou para dominar os galeses, e o imperialismo britânico para colonizar a Índia.
Na região, o imperialismo francês a aplicou para dividir o Líbano da Síria. Depois, para manter sua hegemonia, implantou o sistema de governo confessional (ou sectário – relativo às seitas religiosas). No sistema sectário, cada indivíduo é representado pelas lideranças de sua seita religiosa. Um dirigente burguês libanês, Michel Chiha, teorizou sobre a questão e afirmou que não há classes sociais no Líbano, apenas seitas religiosas.
Mahdi Amel, um dos principais intelectuais marxistas árabes, integrante do Partido Comunista Libanês, criticou a posição de Chiha e apontou que a divisão do povo libanês em seitas religiosas não é “natural” mas sim uma construção histórica cujo objetivo é manter o domínio colonialista e burguês sobre a classe trabalhadora. Para Amel, a classe trabalhadora deveria rejeitar a conciliação de classes intra-confessional, e lutar contra o estado sectário através de métodos da revolução socialista.
Concordando com Amel, o jornalista sírio Victorios Shams escreveu:
“O que está acontecendo hoje na Síria e nos países da “Primavera Árabe” é semelhante em alguns aspectos ao que o Líbano alcançou depois de muitos anos de guerra civil. Em outras palavras, o capitalismo está trabalhando para reproduzir a história de uma forma que garanta a continuidade de seus interesses. Por isso, na Síria e nesses países, a questão da divisão por motivos confessionais, tribais e outros é alimentada com urgência, tendo como pano de fundo essas brutais guerras capitalistas com custos humanos exorbitantes, como uma das possíveis soluções que fragmentam os povos da região e impedem a sua unidade e desenvolvimento em forças políticas que possam vir a desequilibrar a balança e acabar com os regimes colonial-comprador existentes.” (IV)
O modelo de estado sectário, baseado no identitarismo religioso, não atenderá aos interesses da classe trabalhadora síria. Ao contrário, apenas fortalecerá sua dominação e por isso deve ser combatido.
Assembleia constituinte com eleições livres para decidir o futuro do país
Os conflitos em Sweida demonstram que uma ditadura a partir de Damasco não é uma solução, e vai contra os objetivos da revolução síria. O exemplo de estado sectário no Líbano (e também no Iraque) mostram que ele também não é uma solução.
A fórmula para garantir a integridade territorial da Síria contra as interferências estrangeiras, para estabelecer a relação entre o governo e parlamento nacional com as 14 províncias, para garantir o direito de autodeterminação do povo curdo, deve ser decidida democraticamente através de uma Assembleia Constituinte com eleições livres.
A declaração constitucional feita pelo presidente interino Ahmed al-Sharaa em 13 de março de 2025 não foi discutida nem decidida pela população.
Para uma assembleia constituinte é urgente a legalização de todos os partidos que estejam de acordo com os propósitos da revolução, e a convocação de eleições para este ano.
Os revolucionários devem se unir para legalizar um partido revolucionário baseado na classe trabalhadora para conquistar a consciência da classe trabalhadora para a auto-organização independente da burguesia, inclusive a autodefesa de cada bairro e cidade contra a agressão israelense e a violência sectária, venha de onde venha.
Fora Israel! Palestina livre, do rio ao mar!
Outro tema para a Constituinte é a proibição de entrega de qualquer centímetro de terras sírias ao Estado de Israel.
Paralelamente à Constituinte, é importante saber que o estado de Israel será um obstáculo permanente à Síria. Israel não cumpre acordos e a única solução para as agressões israelenses é por fim ao estado genocida.
Nesse sentido, é fundamental que o governo sírio comece a construir as condições para enfrentar Israel, seja através do armamento, seja através da construção de alianças com a resistência palestina e outros países da região.
Nenhuma confiança no governo sírio! Pela auto-organização independente dos trabalhadores!
De imediato, é necessário combater a violência sectária. Este conflito em Sweida se dá após os massacres no litoral – quando forças de segurança que enfrentaram milícias assadistas, assassinaram centenas de civis alauítas – e em Jaramana e Sahnaya em Damasco.
Ahmed al-Sharaa constituiu uma comissão para investigar os massacres no litoral que não apresentou qualquer relatório até agora. É necessário publicar esse relatório e punir todos os responsáveis por violações de direitos humanos, expurgando das forças de segurança todos os salafistas sectários.
O mesmo deve ser feito com relação à Sweida: uma comissão de investigação independente e punição para todos os responsáveis por violações de direitos humanos, a começar pelas forças de segurança e militares.
Não está assegurado que Ahmed al-Sharaa expulsará os salafistas das forças de segurança e do exército, ou que punirá os envolvidos em violações. Al-Sharaa busca a reconstrução de um estado burguês, e esses setores salafistas sectários podem ser úteis nesse projeto.
Por isso é decisivo impulsionar a organização independente da classe trabalhadora nos locais de trabalho, de estudo e nos bairros. Apenas a classe trabalhadora tem o interesse em combater a violência sectária, pois é sempre a principal vítima dela.
NOTAS
(I)
https://today.lorientlejour.com/article/1469872/what-we-know-about-the-atrocities-committed-in-sweida.html
(II)
https://today.lorientlejour.com/article/1469652/enemy-or-not-southern-syrians-torn-over-israel.html
https://www.aljazeera.com/news/2015/9/14/protests-in-lebanon-against-burial-of-biggest-traitor#:~:text=Lahd%20died%20of%20a%20heart,is%20set%20for%20September%2018.&text=For%20an%20overwhelming%20number%20of,Amal%20militia%2C%20and%20then%20Hezbollah.
(III)
https://www.middleeasteye.net/news/turkey-doesnt-have-many-options-against-israel-syria
(IV)
https://litci.org/pt/2021/07/09/64412-2/?utm_source=copylink&utm_medium=browser