A Turquia entra em uma nova era

Por: Kırmızı Gazete
Se aplicarmos um ditado sobre revoluções aos eventos atuais, podemos dizer o seguinte: grandes movimentos sociais surgem em um momento em que se pensa que eles nunca mais voltarão! Isso aconteceu novamente, como na revolta de Gezi![1] Centenas de milhares de pessoas saíram às ruas e praças com raiva e coragem em um momento em que o desespero e a exaustão estavam por toda parte. Assim como a revolta de Gezi não foi sobre “algumas árvores”, o problema aqui não é apenas Imamoğlu.
Várias crises levaram a várias explosões. Nem o governo nem a oposição esperavam uma reação dessa magnitude. Se o governo, que está há muito tempo no “caminho sem volta”, tivesse sido capaz de prever a magnitude da reação, poderia ter sido mais cauteloso e recorrido a táticas mais sutis, disseminadas ao longo do tempo. No entanto, o perigo representado pela rápida saída de İmamoğlu e o fato de que o regime podre, apesar de toda a sua força física, não podia ter certeza de seu futuro, exigia rapidez. Recep Tayyip Erdoğan (doravante RTE) dirigiu o carro até o Partido Republicano do Povo (em turco Cumhuriyet Halk Partisi, abreviado CHP) novamente com seu método conhecido e comprovado. Mas dessa vez o CHP não fugiu, porque não havia para onde fugir.
O incidente com Ekrem İmamoğlu[2] foi um sinal muito forte sobre a direção da Turquia, a transformação interna do regime e a reviravolta do CHP. A anulação do diploma universitário de um candidato que poderia ter derrotado o RTE em eleições livres por meios totalmente ilegais, sua subsequente prisão e demissão, a entrega dos municípios do CHP a curadores e a possibilidade de nomear curadores para a administração do CHP mostraram que havia “rabanetes” ainda maiores nos “alforjes” da “transformação do regime em algo pior do que ele mesmo”. O regime agora havia decidido se desfazer de seu último verniz “democrático”, abolir as (relativamente) “eleições livres” que considerava sua “única fonte de legitimidade” e inventar outras fontes de legitimidade que lhe fossem adequadas. Um conselheiro sênior do presidente também declarou que o caminho da RTE para a candidatura estava excepcionalmente aberto como um “valor nacional”.
Exploração, opressão, empobrecimento e pobreza…
A dinâmica causada pelas múltiplas crises, a exploração dos trabalhadores que atingiu níveis assustadores, a opressão social e política, a reação, a injustiça e a desigualdade, o empobrecimento catastrófico e o profunda sentimento de desesperança levaram à mobilização de diferentes segmentos da sociedade, especialmente de estudantes universitários, em grande números. Esse ataque ao regime foi percebido como um “golpe de Estado”. O CHP, que sempre aconselhou a sociedade a “ficar em casa e esperar pelas urnas” e não reagiu à fraude eleitoral e o referendo, apelou à ação quando o curso dos acontecimentos se tornou uma ameaça direta à sua própria existência e futuro.
Esse chamado encontrou uma resposta inesperada na sociedade. Özgür Özel[3] disse às centenas de milhares de pessoas que se reuniram na Praça Saraçhane durante dias que esta não era uma “manifestação”, mas uma “ação contra o fascismo”. A inclusão por parte do CHP de distintos setores das massas além de seus membros em suas primárias e a mobilização de milhões de pessoas é o resultado desse entendimento. Agora estamos enfrentando uma situação diferente em todos os aspectos. O que se dizia “ele fará isso ou não fará isso?” se tornou realidade e as massas saíram às ruas e se juntaram à luta com uma energia e uma coragem que superaram em muito as expectativas. Assim como o medo e o desespero são contagiosos, a coragem e a esperança também são. Esse fato está sendo demonstrado mais uma vez nas ruas, apesar de todas as ameaças e da violência das forças do regime.
O regime, acostumado há anos reprimir todos os direitos e ações de protesto sem dar a eles a chance de crescer, está surpreso com as enormes multidões que tomaram às ruas. O problema é como levar essa energia, esperança e entusiasmo para o próximo nível sem desperdiçá-los e torná-los permanentes. Entretanto, não é possível para o governo, que não consegue esquecer “Gezi” há 12 anos, esquecer esses eventos em um momento em que se sente muito mais desconfortável. O regime usará táticas diferentes, grosseiras ou sutis, para lidar com esses eventos e, na medida em que encontrar a praça vazia e puder tomar a iniciativa, fará todo o possível para impedir a repetição desses eventos e transformar a esperança em desespero. Por esse motivo, os manifestantes sociais e políticos devem fazer uma análise concreta e diferenciada dessa situação e moldar seus métodos e abordagem de acordo com ela.
O importante é o curso que os acontecimentos tomarão daqui para frente e quais formas de ação e organização-auto-organização continuará a luta. Toda forma de ação só pode avançar e atingir um nível superior com a conscientização, as demandas e as organizações que ela cria. Os caminhos que essas mobilizações de massa tomarem, as organizações que criarem e os resultados que alcançarem terão um grande impacto sobre o futuro curso do país.
Movimentos espontâneos de massa e…
O destino das mobilizações de massa, assim como o das revoluções, é decidido pelos líderes políticos na “arena política”. São as qualidades desses líderes que determinarão o resultado. Estamos falando de um movimento de massa espontâneo com todas as suas nuances, diversidades e contradições, que, no momento, extrai seu dinamismo dos protestos estudantis que subitamente atingiram proporções gigantescas. Não se deve esquecer que esses movimentos, que nunca devem ser subestimados, menosprezados ou encaixados em moldes pré-fabricados, também foram a matéria-prima das revoluções ao longo da história.
Obviamente que esta não é uma situação que minimiza o papel da liderança política. Pelo contrário, quanto maiores às dimensões da espontaneidade, maior a necessidade de liderança política. Entretanto, nenhuma liderança pode existir em um vácuo. “Líderes sem seguidores estão condenados a se afogar em seus próprios assuntos!”. “A característica mais indiscutível da revolução é a intervenção direta das massas nos eventos históricos… Quando a velha ordem se torna insuportável para elas, as massas derrubam uma a uma as paredes que as separam da arena política, deslocam seus representantes tradicionais e, por meio dessa intervenção, criam as condições para o início de uma nova ordem”, escreve Trotsky na História da Revolução Russa.
É evidente que alguém poderia argumentar que já existem demasiados exemplos de “situações revolucionárias” na história. Entretanto, é útil pensar grande sem romper com a realidade concreta atual e estar ciente de todas as deficiências. Caso contrário, estamos cientes de que, se esse movimento gigantesco se retirar sem deixar uma dinâmica permanente de luta, pelo menos entre os jovens, que começaram hoje com boicotes generalizados e pode afetar os movimentos de classe depois de um tempo, o regime imporá à sociedade uma espécie de reacionarismo que pode se arrepender do que foi até agora e se envolver em atos de vingança. Entretanto, os acontecimentos dos últimos dias mostraram que todos os resultados negativos podem ser revertidos e que este regime pode ser relegado a lata de lixo da história. Ao mesmo tempo, ao tornar visível a deficiência, o vazio criado pela ausência da classe trabalhadora como uma força independente e organizada…
Imagine o resultado da raiva, coragem e energia desencadeadas pelos acontecimentos dos últimos dias combinados com uma greve geral!
Sim, a Turquia está entrando em uma nova era.
[1] Referência aos protestos no Parque Gezi, em 2013, contra destruição da área verde nos arredores da Praça Taksin, ndt;
[2] Ekrem Imamoglu – político social democrata turco, prefeito de Istambul desde 27 de junho de 2019;
[3] Ozgur Ozel, líder da oposição turca, CHP, ao qual pertence Ekrem Imamoglu, ndt;
Tradução: Rosangela Botelho