O Marxismo e a questão ambiental
Interpretações e análises esquecidas em um aspecto fundamental
Por: Matteo Bavassano
«Depois dos grandes poetas românticos, os mais fortes opositores da ideia de conquista da natureza durante a revolução industrial, foram Karl Marx e Friedrich Engels os fundadores do clássico materialismo histórico»
O objetivo desse artigo é substancialmente o de chamar a atenção do leitor não apenas para a existência de um debate sobre o papel da ecologia no pensamento de Marx, mas, sobretudo, para o desenvolvimento desse debate nos últimos vinte anos, baseado principalmente em um novo estudo minucioso dos textos de Marx, e graças à recuperação dos trabalhos de publicação da MEGA2. De fato, os primeiros estudos nesse campo foram publicados na Itália no final dos anos 1960 (), e isso levou a que militantes que estavam próximos ao trotskismo aprofundassem a temática inclusive do ponto de vista programático (). Hoje, ao contrário, quando o problema climático e ambiental alcançou um nível sem precedentes e enquanto ocorrem mobilizações imponentes, sobretudo dos jovens, pela proteção do nosso planeta, as obras mais recentes dos escritores marxistas não apenas não são traduzidas e publicadas em italiano (), mas estão praticamente ausentes do debate sobre o tema. Esse vazio foi preenchido muito parcialmente pela publicação de um ensaio de John Bellamy Foster () na coletânea Marx Revival (), na qual o autor reconstrói de modo muito abrangente os pontos fundamentais das análises que está conduzindo com o grupo de autores da Monthly review, em particular Paul Burkett. Sem a pretensão de querer dar uma opinião definitiva nem de querer apresentar uma teoria ecológica completa, nos limitaremos substancialmente em trazer as análises dos autores (e fazer as nossas considerações a respeito). Acreditamos que esse debate é fundamental, principalmente em um momento no qual as mobilizações de organizações como Fridays for future estão catalisando a atenção de milhões de jovens em todo o mundo: muito frequentemente se parte de uma série de preconceitos contra o pensamento marxista e a sua dimensão ecológica, chegando a negar a validade do marxismo em si, sustentando a necessidade de que tome por base “novos paradigmas”, majoritariamente correspondentes ao desenvolvimento da sociedade contemporânea. Da nossa parte, reafirmamos a validade total do marxismo e do seu programa revolucionário para resolver os problemas da humanidade, inclusive do problema ambiental, para destruir o sistema capitalista e construir uma economia socialista. Dessa forma, se conseguirmos desconstruir no jovem leitor a convicção de que, no campo ambiental, o pensamento de Marx foi antiecológico e levá-lo a aprofundar os vários aspectos do marxismo revolucionário, poderemos nos dar por satisfeitos.
Os preconceitos “ambientalistas” contra Marx e Engels
No imaginário coletivo dominante, Marx e, sobretudo Engels (), eram defensores de uma ideia de progresso ilimitado das forças produtivas (uma vez que elas fossem liberadas das cadeias das relações de produção capitalistas), de completo domínio do homem sobre a natureza. Esse preconceito foi reforçado centralmente por obra do stalinismo no poder: assim como o “socialismo real” desacreditou aos olhos das massas trabalhadoras a própria noção de ditadura do proletariado, obrigando os marxistas revolucionários a uma dura batalha para resgatar esse conceito que representa o fundamento do programa marxista, o produtivismo stalinista também desacreditou a visão marxista da relação homem-natureza, transformando Marx em uma espécie de positivista que cultuava o progresso como um fim em si mesmo. “Tende-se a transferir para Marx aquela “vontade de potência” irracional e destrutiva que caracterizou as burocracias dominantes dos socialismos de Estado e em particular da União Soviética”. ()
Essa leitura de Marx é também a que caracteriza os autores daquela que Foster e Burkett chamam de “primeira fase do ecossocialismo” (): Esses autores, interpretando a crítica de Marx como falácias do ponto de vista ecológico, consideram necessário unir o marxismo com o “pensamento verde”. Dependendo do caso se tratava de introduzir, no marxismo, concepções ecológicas, mas na maioria das vezes se afirmava um fracasso do socialismo (sem distinguir entre “socialismo real” e as teorias de Marx e Engels) e assim se tratava de inserir a análise de classe do marxismo no interior das teorias ecológicas. “Esses ecossocialistas da primeira fase sustentavam que o socialismo de Marx seria falho (para alguns irremediavelmente) pelo seu restrito produtivismo. Alguns chegam inclusive, como vimos, a declarar o socialismo morto. Nessa visão, o ecossocialismo seria herdeiro aparente do socialismo”. ()
A resposta a essa leitura, fundada sobre um estudo cuidadoso dos escritos de Marx, dá vida à “segunda fase do ecossocialismo”, que segundo Foster se abre com a publicação do livro de Burkett Marx and nature: a red and green perspective, que “foi escrito como uma negação dessas visões ecossocialistas da primeira fase por meio de uma reconstrução e reafirmação da própria perspectiva crítico-ecológica de Marx. Marx and nature representa então o nascimento de uma segunda fase de análises ecossocialistas que procuravam voltar a Marx e mostrar a sua concepção materialista da natureza como contraparte essencial de sua concepção materialista da história. O objetivo era transcender o ecossocialismo da primeira fase, assim como os limites das teorias verdes existentes, com as suas ênfases excessivamente espiritualistas, idealistas e moralistas, como um primeiro passo no desenvolvimento de um marxismo ecológico mais rigoroso” (). O ecossocialismo era concebido então “não como um sucessor do marxismo, mas como uma forma mais aprofundada da práxis ecológica que emerge dos fundamentos materialistas do marxismo clássico. Na medida em que termos entre os quais “socialismo ecológico” e “marxismo ecológico” foram usados pelos ecossocialistas da segunda fase, não se referiam a uma ruptura com a teoria e a prática marxiana, mas representavam um revigoramento da sua clássica perspectiva materialista” (). Ainda que m nosso caso continuamos acreditando que, uma vez esclarecido que Marx e Engels não ignoravam a natureza em suas análises, é melhor falar de socialismo e marxismo sem acrescentar nenhum prefixo ou sufixo, de modo a não gerar confusão, não se pode perder de vista que a utilização do termo ecossocialismo difere profundamente entre os autores das “diversas fases”. ()
Tendo esclarecido o quadro geral no qual se desenvolve esse debate teórico cheio de consequências político-programáticas, antes de passar ao mérito das refutações dos preconceitos ecológicos com relação ao marxismo, queremos discutir brevemente a questão do lugar que as reflexões ecológicas ocupam no pensamento de Marx. Deixando de lado aqueles que ainda sustentam que Marx não se ocupou dos problemas ecológicos, tese que agora é insustentável (como veremos a seguir), ainda que quem reconheça a atenção de Marx à natureza, não necessariamente atribui a essa atenção a mesma importância. Os estudos mais recentes, ainda ligados à pesquisa da MEGA2, tendem a enfatizar a existência de um “fio condutor” que atravessa toda a obra marxista: Kohei Saito, no seu livro O ecossocialismo de Karl Marx (2016), quer demonstrar que “a crítica ecológica de Marx possui um caráter sistemático e constitui um momento essencial no interior da totalidade do seu projeto do Capital”. () Mas Saito não para aqui. “A ecologia não está simplesmente presente no pensamento de Marx, a minha tese é muito mais forte. Eu sustento que não seja possível compreender completamente a crítica da economia política se, se ignora a sua dimensão ecológica”. () Não pretendemos certamente que o leitor tome como corretas essas afirmações, então entraremos nos pontos chaves dos argumentos de modo que o leitor possa tirar as suas conclusões, mas ainda assim nos permitimos sugerir a todos a leitura do interessante livro de Kohei Saito.
O “produtivismo” de Marx
As passagens dos escritos de Marx e Engels, nas quais os revolucionários sustentam que o capitalismo é historicamente progressivo em relação aos modos de produção pré-capitalistas, são utilizadas para dizer que Marx atribuía importância fundamental ao desenvolvimento das forças produtivas em si mesmas. Para apoiar essa tese também são utilizadas (dando-lhe uma leitura unilateral) aqueles trechos nos quais é dito que no comunismo as forças produtivas, liberadas dos vínculos do capital (as relações de produção capitalistas), poderão se desenvolver indefinidamente. Essa visão, que reduz o desenvolvimento das forças produtivas ao crescimento quantitativo da produção industrial, implica a atribuição a Marx de uma ética produtivista, ou “prometeica”, de domínio da natureza por parte do homem. Burkett responde a esse preconceito a partir de três pontos. Primeiramente, rebate afirmando que para Marx a riqueza humana não é redutível apenas ao trabalho: “Marx sustenta que tanto a natureza quanto o trabalho contribuem com a produção da riqueza ou valores de uso”. A argumentação basilar aqui é que “na medida em que o trabalho efetivo cria valor de uso, isso implica necessariamente “a apropriação do mundo natural para as necessidades humanas, ainda que essas necessidades sejam necessidades da produção ou consumo individual” [K. Marx, Manuscritos econômicos de 1861-63]. O trabalho só pode produzir riqueza “através de uma troca de matéria entre homem e Natureza” [K. Marx, O capital, vol. I]; é em consequência disso que “o operário não pode produzir nada sem a natureza, sem o mundo externo e sensível” [K. Marx, Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844]. A conclusão apropriada está nítida e firmemente tratada por Marx: “Vejamos, então, que o trabalho não é a única fonte de riqueza material, dos valores de uso produzidos pelo trabalho. Como disse William Petty, o trabalho é seu pai e a terra sua mãe” [O capital, vol. I]”.() A contribuição da natureza para a criação dos valores de uso também é demonstrado sinteticamente por Marx na Crítica ao Programa de Gotha: “O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é tanto a fonte dos valores de uso (e não consiste nisso a riqueza material?) quanto o trabalho, que em si é apenas a expressão de uma força natural, da força de trabalho humana”. ()
Em segundo lugar, Marx estava consciente do fato de que a produção humana está vinculada às leis naturais, físicas, biológicas e também ecológicas: “A perspectiva de Marx se baseia na constatação de que, uma vez que se compreende a produção humana como produção social, não se pode mais falar simplesmente de limites e condições naturais. Ao contrário, à pergunta sobre quais condições naturais contam como valores de uso, e quais limites colocam para a produção de riqueza, se deve responder com referência às relações sociais específicas que estruturam o nexo produtivo entre trabalho e natureza. Essa abordagem não faz pouco caso dos impactos ambientais da produção. Ao contrário: somente reconhecendo como uma forma social de produção particular que desvincula as suas necessárias condições de produção da evolução humana separada da natureza se pode analisar a sustentabilidade material dessa forma”. () A produção humana em geral está sujeita a restrições ligados às leis já citadas, mas cada modo de produção estabelece uma “interação metabólica” específica () entre a sociedade e a natureza, uma relação específica com esses limites. Aquilo que se relaciona com o capitalismo em particular, “os limites da exploração da força de trabalho humana por parte do capital, como os limites da exploração das condições naturais por parte do capital, não são completamente determinadas pelo próprio capital. Em ambos os casos, os limites implicam certas características materiais não sujeitas a uma alteração por parte da forma social de produção específica. Os limites da exploração por parte do capital sobre o trabalho e a natureza são, no entanto, limites elásticos, em que a elasticidade é devida, em parte, às características naturais da força de trabalho e da natureza extra-humana, e em parte pelo caráter socialmente definido dos próprios limites. Os efeitos danosos do capital sobre a força de trabalho e sobre a natureza deriva da sua tendência a explorar essa elasticidade enquanto as pressões da acumulação monetária concorrencial tensionam as forças naturais humanas e extra-humanas até o ponto de ruptura, tendo necessidade de restrições sociais à exploração por parte do capital sobre as duas fontes basilares de riqueza” ().
Por último, Marx era consciente do fato de que o desenvolvimento das forças produtivas por parte do homem no capitalismo havia causado desperdício e destruição das riquezas naturais. “No capitalismo, a divisão do trabalho toma a forma de relações de mercado (mercadorias e dinheiro), baseado na historicamente extrema separação social dos produtores humanos das necessárias condições de produção. A análise de Marx explica como essa separação, que permite que o trabalho e as suas condições naturais e sociais desenvolvam-se como condições de acumulação concorrencial do capital, conduz a um crescimento sem precedentes do seu potencial produtivo de riqueza. Ao mesmo tempo, Marx destaca a tendência do capital a saquear e destruir as suas próprias condições humanas e naturais de existência”. () Nesse processo a separação dos produtores das condições de produção tem um peso importante: () “Em resumo, a separação social dos produtores das condições naturais limitadas, a conversão dessa condição em propriedade privada capitalista, e a conversão dos valores de uso naturais em condições de produção capitalistas livremente apropriadas, na perspectiva marxiana são todos aspectos de um só processo”; () “Marx atribui um grande significado social à livre apropriação, vendo-a como um elemento integral do desenvolvimento do caráter social da produção por parte do capitalismo através da subordinação das forças produtivas latentes do trabalho e da natureza aos impulsos expansionistas, transformativos, da acumulação monetária concorrencial. Ao mesmo tempo, Marx indica como a livre apropriação das condições naturais e sociais por parte do capitalismo reforça a alienação humana inerente à socialização da produção do capitalismo. Com o crescente domínio do capital sobre as condições de produção, o valor de uso (a combinação social de trabalho e natureza para satisfazer as necessidades humanas) torna-se cada vez menos o motivo dominante por trás da produção e é posto cada vez mais a serviço da acumulação de valor. Uma vez convertidas em forças do capital, as condições naturais e sociais da produção exercitam um poder social alienado sobre os produtores, os quais são incapazes, enquanto a produção permanece na forma capitalista, de exercer um controle qualquer cooperativo sobre sua interação orgânica com a natureza”. () Essa separação, junto com a tendência do capital de produzir sempre mais valor na forma de mercadoria, para realizar esse valor e reconvertê-lo em mais capital, é a base da tendência do capitalismo para minar as próprias bases (naturais e sociais) da sua acumulação, através da superação constante dos limites naturais sobre os quais falávamos anteriormente: “A ilimitada tendência expansionista contida no capital como forma social de riqueza contradiz todos os fatores limitantes impostos à produção humana pelo seu ambiente natural. Isso se reflete na tendência do capitalismo de superar limites naturais particulares e locais expandindo os limites naturais da produção – a pressão da produção sobre os ecossistemas e outros recursos naturais – em nível global, da biosfera”; () “assim o capital abusa dos limites elásticos da capacidade de recuperação do trabalhador tanto quanto abusa da capacidade de absorção e da resiliência de ecossistemas particulares, levando em ambos os casos à destruição das forças naturais”. () Marx analisa em especial o abuso, por parte do capital, da força de trabalho com o aumento da jornada de trabalho para além das necessidades biológicas de recuperação humana, mas também da fertilidade das terras agrícolas, que progressivamente vai definhando gradualmente devido à exploração excessiva da agricultura capitalista.
A teoria do valor trabalho e a sua relação com a natureza
O pensamento ecológico tem sustentado que a análise econômica marxista do capitalismo, e especialmente a teoria do valor, exclui ou não tem em consideração de forma adequada a real contribuição da natureza à produção. Mas a desvalorização da natureza é gerada pela lógica do sistema capitalista, não pela análise que Marx desenvolve sobre esse modo de produção! E a análise da forma do valor capitalista é central não apenas pelo aspecto econômico dessa análise geral do capitalismo, mas também pelo aspecto ecológico-ambiental. “A mercadoria, como todos os valores de uso, é um produto tanto do trabalho quanto da natureza. O valor, a substância da riqueza na sua forma especificamente capitalista, é, todavia, simplesmente o tempo de trabalho social abstrato objetivado nas mercadorias. Quantitativamente, o capitalismo acrescenta valor à natureza somente na medida em que a sua apropriação exige um trabalho que produz mercadorias, mesmo que a contribuição da natureza à produção – e à vida humana mais geral – não seja materialmente redutível a esse trabalho de apropriação. Em resumo, a forma do valor se abstrai qualitativamente e quantitativamente das características úteis e vivificantes da natureza, ainda que o valor seja uma forma social particular de riqueza – uma objetivação social particular tanto da natureza quanto do trabalho. Essa contradição ajuda a explicar a tendência do capitalismo a depredar o seu ambiente natural”. () Central é a distinção marxista entre valor, valor de uso e valor de troca: os valores de uso, que são a verdadeira fonte da riqueza material, são considerados apenas se a eles puder ser atribuído um valor. “Os valores de uso que não podem ser produzidos e vendidos com lucro – inclusive muitas condições naturais e condições sociais exigidas ou que contribuem com a produção e com o desenvolvimento humano – tendem a ser subestimados ou completamente desconsiderados, e essa é uma fonte importante de crises ecológicas e sociais”. ()
A compreensão da essência do valor e das suas características específicas é fundamental para apreciar plenamente o caráter intrinsecamente antiecológico do capitalismo como sistema social particular de produção: “a importância da abordagem marxiana é tríplice. Em primeiro lugar, ao afirmar que o valor de troca é uma forma de valor e não o contrário, Marx destaca que o valor surge apenas na produção, não no domínio da troca.
De fato, o procedimento marxiano é o único caminho coerente com uma teoria do valor baseada na produção que não identifica valor, valor de troca e valor de uso. Esse ponto deve ser destacado porque foi negligenciado – ou no mínimo, esquecido – por muitos dos críticos ecologistas de Marx que queriam atribuir valor (e não apenas o valor de uso) à natureza. Em segundo lugar, a subordinação do valor de troca e do valor de uso como formas particulares do valor, corresponde a crescente dominação da produção para a venda lucrativa (D-M-D’ na terminologia marxiana, com D que representa o dinheiro e M as mercadorias) sobre a produção para uso (na qual qualquer troca monetária que ocorra tende a ser motivada pelo desejo de valores de uso diversos, como síntese no circuito M-D-M’). […]
O crescente domínio do valor (na forma de força motriz do dinheiro) no reino da produção e da troca, na visão marxiana, é baseado na mercantilização da força de trabalho “livre” e dos meios de produção, isto é, sobre a avaliação monetária do trabalho e da própria produção. […] Isso se relaciona com o terceiro […] aspecto da análise marxiana do valor, isto é, que dado que a riqueza existe apenas como uma miríade de valores de uso produzidos de formas materialmente variadas de trabalho e natureza, a subordinação do valor de troca e do valor de uso ao valor (tempo de trabalho social homogêneo) representa uma abstração social do valor de uso (o caráter material da produção destinado a satisfação das necessidades). Desse modo, o valor se abstrai formalmente das bases naturais e da substância da riqueza”. () Mas, repetimos, essa abstração do valor da natureza não pode ser atribuível a Marx, mas ao próprio capitalismo; antes, a teoria do valor, quando é considerada inclusive em sua dimensão “ecológica”, pode se tornar um instrumento insubstituível de análise das contradições do capitalismo em relação ao ambiente natural. “A contradição entre valor de troca e valor de uso intrínseco à mercadoria é também uma contradição entre a forma da riqueza especificamente capitalista e as suas bases naturais e sua substância. A natureza contribui com a produção de valores de uso, mas o capitalismo representa a riqueza com uma abstração puramente quantitativa, sócio-formal: o tempo de trabalho em geral. A “livre apropriação” das condições naturais por parte do capital (que ocorre sempre que a natureza contribui com a produção capitalista de valores de uso sem acrescentar valor à produção) manifesta essa contradição na medida em que é consentida pela valorização da própria natureza do sistema, ou seja, segundo o tempo de trabalho social necessário para a sua apropriação na produção de mercadorias, e não segundo a real contribuição da natureza para a riqueza ou à satisfação das necessidades humanas”. ()
Para concluir essa parte, nos parece necessário fazer uma precisão “antirreformista”, por assim dizer. O fato de que “os valores de uso que não podem ser produzidos e vendidos com lucro […] tendem a ser subestimados ou não considerados” () não significa que soluções como as “taxas verdes”, que são frequentemente propostas pelos ecologistas (em uma ótica reformista), sejam adequadas para solucionar essa contradição do capitalismo. Na realidade, Marx não exclui que alguns recursos naturais possam ter um valor econômico – “a teoria marxiana da renda reconhece que podem ser atribuídos valores de troca a condições naturais que não possuem valor, mas que são escassas e monopolizáveis” () -, mas “a contradição valor-natureza não pode ser resolvida através de rendas privadas ou implementando taxas “verdes” e esquemas de subsídios em um sistema econômico moldado e orientado pelo dinheiro e pelo capital. Uma regulação ecológica que use técnicas monetárias e baseadas no mercado é uma busca de um “optimum” nos termos do capital. O valor, com todas as suas características antiecológicas, permanece “o fator ativo” que desagrega a co-evolução da sociedade e da natureza, dado que trata os homens e a natureza apenas como “formas dissimuladas” do próprio valor [O capital, vol. I]. Isso mostra um fenômeno mais geral, ou seja, que qualquer um que “queira colocar barreiras à produção [capitalista] de fora, através de práticas, leis etc.” descobrirá rápido que tais “barreiras meramente externas e artificiais serão necessariamente demolidas pelo capital” [Características fundamentais da crítica da economia política]”. () As “taxas verdes” não são assim um complemento útil à visão marxiana que o próprio Marx não teria considerado, mas fazem parte de uma visão oposta da relação capitalismo-natureza.
Contradições capitalistas e condições naturais de produção
O terceiro e último dos preconceitos ecológicos da análise de Marx e Engels defende que suas análises das crises capitalistas não contemplam as crises ambientais. Isso é totalmente falso. Não apenas, como já vimos, a contribuição da natureza na criação da riqueza é reconhecida em todas as obras econômicas marxianas fundamentais (Grundrisse e Capital sobretudo), sendo assim, parte da sua análise geral das crises, Marx ainda analisa especificamente dois tipos de crises especificamente ambientais. “Em especial, Marx considera dois tipos de crises ambientais produzidas pelo capitalismo: (1) crise de acumulação do capital, baseada sobre o equilíbrio entre as necessidades materiais do capital e as condições naturais da produção de matérias-primas; (2) uma crise mais geral da qualidade do desenvolvimento humano-social, derivada dos distúrbios na circulação da matéria e das forças vitais que são geradas pela divisão industrial capitalista entre cidade e campo. Enquanto as interrupções na acumulação de capital devido à carência de materiais envolvem as condições naturais como condições de acumulação, a mais ampla concepção marxiana das crises ambientais se concentra na degradação da riqueza natural como condição do desenvolvimento humano. No entanto, os dois tipos de crise se sobrepõem consideravelmente na medida em que ambas envolvem reduções na qualidade e quantidade da riqueza natural apropriada, assim, ambas implicam a livre apropriação das condições naturais por parte do capital, juntas com todas as tensões qualitativas entre valor e natureza. Mais precisamente, a tendência do capital em acelerar a produção material além dos seus limites naturais não é apenas fonte de escassez de recursos e crises de acumulação; é também um elemento integrante do processo de degradação ecológica produzida pela divisão capitalista entre cidade e campo”. ()
Analisemos o primeiro tipo de crise: essa deriva do fato que “com o crescimento da produtividade e do avanço tecnológico existe um crescimento da quantidade de objetos e forças naturais que o capital deve apropriar-se como materiais e instrumentos da produção a fim de alcançar qualquer expansão do valor e do mais valor [mais-valia] determinado. A produtividade crescente significa que cada hora de trabalho abstrato necessita de uma quantidade sempre maior de valor de uso e dos seus pré-requisitos materiais. Nesse sentido, a acumulação de capital implica um crescente equilíbrio quantitativo entre a acumulação de valor e a acumulação como processo material dependente das condições naturais”. (). Para usar as nossas palavras, os tempos da produção dominada pelo capital (e por sua busca insaciável de lucro) não são compatíveis com os tempos de regeneração das forças naturais: o aumento da produtividade devido ao avanço da produção social capitalista é tão grande que, guiado apenas pela lógica de valorização do capital e não pelas necessidades humanas, exige um fluxo constante de energia e matérias-primas muito superior às capacidades que a natureza possui para sustenta-lo. Isso liga a escassez das matérias-primas a uma crise de acumulação do capital: “As análises formais marxianas sobre a escassez de materiais e as crises de acumulação se desenvolvem em dois níveis. O primeiro nível especifica “as condições gerais das crises, na medida em que são independentes das flutuações dos preços (pois elas estão ligadas ao sistema de crédito ou menos) assim como são distintas das flutuações do valor”. Nesse nível, as possibilidades de crise são tratadas nos termos de “condições gerais da produção capitalista”, abstraindo-se de todas as variações nos preços e na produção que implica a concorrência no interior e entre os setores; então, fenômenos como a especulação sobre os preços dos materiais e a busca competitiva por novas fontes materiais, para não falar das rendas, são excluídas; as variações nos preços são tratadas apenas na medida em que refletem mudanças nos valores das mercadorias. Nesse contexto, Marx indica que “uma crise pode surgir: 1. no curso da reconversão [do dinheiro] em capital produtivo; 2. Através de mudanças no valor dos elementos do capital produtivo, particularmente das matérias-primas, por exemplo, quando há uma diminuição na quantidade de algodão colhido: o seu valor aumentará”. […] As carências de materiais não perturbam apenas a acumulação aumentando o valor do capital constante: podem também desagregar fisicamente a produção “tornando impossível continuar o processo na escala exigida por suas bases técnicas, assim, apenas uma parte das máquinas continuarão operativas, ou todas as máquinas trabalharão somente uma fração do tempo normal.” [K. Marx, Teorias sobre a mais-valia]. […]
Ainda que tais interrupções na aquisição de materiais envolvam condições naturais incontroláveis, implicam também uma incontrolada acumulação de capital. Essa é em parte a causa da concorrência anárquica que impede o tipo de planificação ex ante [prévia] necessária para minimizar os efeitos destrutivos dos eventos naturais, mas há ainda o desequilíbrio fundamental entre a tendência do capital para uma expansão ilimitada e os limites da produção material em determinadas condições naturais e sociais. […] Marx destaca que a barreira a acumulação da produção imposta pelos limitados recursos materiais manifesta uma contradição entre a aceleração da produção e dos investimentos por parte do capital, de um lado, e as leis naturais e os ritmos temporais que governam a produção material de outro. Uma “análise completa” dessa tensão entre os tempos da natureza e aqueles do capital deve compreender “o sistema de crédito e a concorrência no mercado mundial”: Marx deixou o grosso dessa segunda análise para uma “eventual continuação” de O Capital, o que não foi possível realizar”. () Como podemos ver, se trata de uma análise inacabada, mas certamente não esquemática ou pouco desenvolvida, e que, sobretudo, pode fornecer aos marxistas um método útil para o estudo das crises e das contradições específicas do processo produtivo capitalista moderno na sua relação com a natureza.
A teoria marxiana da fratura metabólica
Chegando ao segundo tipo de crise ambiental, aquela “mais geral […] da qualidade do desenvolvimento humano-social”, devemos introduzir a concepção marxiana da antítese homem/natureza (e da sua articulação específica na antítese cidade/campo) no interior do regime capitalista, concepção que, ainda que frequentemente subestimada, tem uma grande importância no marxismo. () Essa temática, que segundo Kohei Saito é a base da teoria marxiana da alienação, é central nos chamados Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844-45, () mas reaparecerá em seguida em outras obras maxianas, em particular nos Grundrisse e no O capital, testemunhando, que seja dito de passagem, que não existe nenhuma “ruptura epistemológica” no pensamento de Marx. () “Seria certamente fútil, e em contradição com as intenções de Marx, procurar encontrar uma versão plenamente desenvolvida da sua ecologia nos seus cadernos de 1844, todavia, esses cadernos contém inegavelmente o reconhecimento precoce por parte de Marx da importância estratégica de restabelecer uma “unidade” consciente entre os homens e a natureza como uma tarefa central da sociedade comunista”; () “na sua análise da alienação de 1844, já existe um tema central da sua crítica do capitalismo, isto é, a separação e a unidade entre humanidade e natureza. Por isso, em contraste com as discussões filosóficas precedentes, é necessário conduzir um exame sistemático do desenvolvimento do conceito de natureza de Marx em relação com a sua economia política», () e ainda “a crítica marxiana da alienação de 1844 considera a reorganização “racional” da relação entre os homens e a natureza como essencial, e desse modo ele concebe a ideia do comunismo como “humanismo = naturalismo”. Esse é o início, ainda que somente o início, da crítica econômica e ecológica do capitalismo por parte de Marx”. ()
Pode-se ver então, como esse é um tema absolutamente relevante na concepção marxiana. Mas que tipo de relação tem com a questão das crises ecológicas do “segundo tipo”? “A lucratividade dos aglomerados industriais capitalistas revela as características antiecológicas de valor e capital. Nessa área, as empresas concorrentes apropriam-se livremente dos potenciais produtivos dos seus ambientes naturais e sociais como meios de exploração da força de trabalho. Fazendo isso, ignoram os impactos combinados do crescimento e da densidade material das indústrias e da população sobre diversos sistemas ecológicos e conexões da biosfera que constituem a base natural última do desenvolvimento humano. A análise de Marx e Engels da antítese cidade/campo enfrenta esses impactos através do tratamento dos intercâmbios entre agricultura e indústria manufatureira no capitalismo”. ()
Os efeitos característicos do capitalismo, diferente daquilo que ocorre com os outros modos de produção, minam as condições naturais necessárias à produção e para a própria vida. “A transformação espacial e tecnológica da produção por parte do capitalismo, degrada a qualidade da riqueza natural como condição do desenvolvimento humano. A concentração da indústria e da população nas áreas urbanas, e a industrialização da agricultura baseada na redução da autossuficiência e o despovoamento da economia rural, produzem uma circulação social de matéria-prima que é ambientalmente insustentável e diretamente perigosa para a saúde humana. A crítica ambiental da produção capitalista é uma temática recorrente nos escritos de Marx e Engels”, () isso porque “a crescente produtividade do trabalho industrial se traduz em crescentes níveis “normais” de volumes materiais e energéticos necessários para uma produção e uma venda lucrativa de mercadorias. Esse volume cresce de maneira acelerada na medida em que a produtividade do trabalho industrial é potencializada, ela mesma, pela concentração. Os efeitos adversos dos resíduos industriais sobre a saúde da população urbana foram detalhados por Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Além disso, no entanto, uma boa parte dos recursos urbanos tomam a forma de “excreções do consumo (…) produzidas pela transformação natural da matéria no corpo humano e parcialmente [como] objetos que sobram depois do seu consumo” (O capital, vol. III). […] Muito frequentemente, Marx e Engels analisam os efeitos das excreções do consumo sobre a saúde humana como parte da sua mais ampla crítica da circulação da matéria produzida pela divisão capitalista entre agricultura e indústria urbana”. () E de fato, Marx e Engels voltam a esse conceito da “circulação da matéria” falando inclusive da industrialização da agricultura: “o contraste capitalista entre cidade industrial e campo agrícola cria uma circulação de matéria que corrói a qualidade das condições naturais não apenas para a produção agrícola, mas para o desenvolvimento humano mais geral. […] A industrialização da agricultura saqueia ainda mais a riqueza natural da terra, além dos efeitos dos resíduos urbano-industriais e da incapacidade de reciclar as excreções do consumo urbano. Nas condições de busca competitiva pelo lucro, a tecnologia agrícola é transformada usando as máquinas e outros meios fornecidos pela indústria urbana. O exaurimento do solo é assim acelerado lado a lado com a intensificação da exploração da força de trabalho agrícola que, dada a destruição das atividades rurais não-agrícolas, é largamente empregada em base sazonal” ().
Assim, chegamos naquela que foi chamada por Foster “teoria marxiana da fratura metabólica”. Em um ensaio () de 1999 que trazia esse mesmo nome, cujas conclusões foram depois retomadas no livro Marx’s ecology: materialism and nature, publicado no ano seguinte, Foster, depois de ter citado Marx, sustenta que “aquilo que é comum em todas essas passagens do Capital de Marx – o primeiro que conclui a sua análise da renda fundiária capitalista no terceiro volume, e o segundo que conclui a sua discussão sobre a agricultura em larga escala e indústria no primeiro volume – é o conceito teórico central de uma “fratura” na “interação metabólica entre o homem e a terra”, isto é, o “metabolismo social prescrito pelas leis naturais da vida”, através de um “saque” dos elementos constitutivos do solo, fazendo-se necessário sua “restauração sistemática”. Essa contradição se desenvolve através do crescimento simultâneo da indústria em larga escala e da agricultura em larga escala no capitalismo, com a primeira que fornece para a segunda os meios para a exploração intensiva do solo. […] Marx afirmava que o comércio de longa distância de comida e fibras para vestuário produzia o problema da alienação dos elementos constitutivos do solo muito mais que uma “fratura irreparável”. Para Marx, isso era parte do curso natural do desenvolvimento capitalista. Como escreve em 1852, “o solo deve ser uma mercadoria comercializável e a exploração do solo deve ser efetuada segundo as leis comerciais comuns. Devem existir produtores de alimento assim como fabricantes de fios e algodão, mas não deve mais existir nenhum senhor de terra”. () Além disso, as contradições associadas com esse desenvolvimento eram de caráter global. Como observa Marx no primeiro volume do Capital, o fato de que o “desejo cego pelo lucro” tivesse “exaurido o solo” da Inglaterra, poderia ser observado cotidianamente no fato de que “se era obrigado a fertilizar os campos ingleses com os dejetos (guano)” importados do Peru. O próprio fato de que sementes, dejetos etc., fossem importados “de países distantes”, destacava Marx nos Grundrisse (1857-1858), indicava que a agricultura no capitalismo tinha deixado de ser “autossuficiente”, que já não encontrava mais as condições naturais da sua própria produção dentro de si, despontadas naturalmente, espontaneamente, ao seu alcance, mas elas existem como indústria independente separada dela”. Uma parte central da argumentação de Marx era a tese de que o caráter inerente da agricultura em larga escala no capitalismo impede qualquer aplicação realmente racional da nova ciência de gestão do solo. () No entanto, com todos os desenvolvimentos científicos da agricultura, o capital era incapaz de manter aquelas condições necessárias para a reciclagem dos elementos constitutivos do solo”. () O leitor nos perdoará o tamanho dessa citação, mas pensamos que seria necessário para expor com clareza a base dessa teoria marxiana, fundamental e quase desconhecida por muitos. “Marx utilizou o conceito de uma “fratura” na relação metabólica entre seres humanos e a terra para compreender o estranhamento material dos seres humanos, no interior da sociedade capitalista, com relação às condições naturais que constituem a base para a sua existência – aquilo que ele chamava “as condições da existência humana impostas pela eterna natureza”. Insistir sobre o fato de que a sociedade capitalista em larga escala criasse uma tal fratura metabólica entre seres humanos e o solo, significava defender que as condições de sustentabilidade impostas pela natureza haviam sido violadas” (). Acreditamos que o conceito de “fratura metabólica” esteja agora suficientemente claro, e que a demonstração de como o ambiente natural e a ecologia ocupam um lugar relevante (senão central) no pensamento de Marx seja algo incontestável. Todavia, queremos debater a forma como isso se liga à antítese cidade/campo como uma questão programaticamente central para a sociedade comunista: “para Marx, a fratura metabólica associada em nível social à divisão antagônica entre cidade e campo era evidente também em nível mais global: todas as colônias viam os seus territórios, os seus recursos, e o seu solo, saqueados para sustentar a industrialização dos países colonizadores. […] Assim, é impossível escapar da conclusão de que a visão marxiana da agricultura capitalista e da fratura metabólica nas relações impostas pela natureza entre seres humanos e o solo levava Marx a um conceito muito mais amplo de sustentabilidade ecológica – uma noção que ele considerava ter uma relevância prática muito limitada para a sociedade capitalista, que era incapaz de aplicar métodos racionais-científicos nesse campo, mas essenciais para uma sociedade de produtores associados”. ()
O conceito de natureza e o stoffwechsel em Marx
Agora estamos prontos para recapitular qual é o conceito de ambiente natural de Marx, () e a ver a sua relação com a produção humana, e em particular com a produção capitalista. Das extensas citações que propusemos pode-se extrair aquela que é a concepção de Marx e Engels: se nos escritos de 1844 é ainda detectável em Marx a influência do materialismo de Feuerbach, () que considerava um homem a-histórico e uma natureza abstrata, os fundadores do materialismo histórico rapidamente superarão estas concepções: “A caracterização antropológica que Feuerbach faz do homem com relação ao resto da natureza, permanece abstrata. A natureza é para Feuerbach um substrato privado de história, homogêneo, cuja definição em uma dialética de sujeito e objeto constitui o cerne da crítica marxiana. A natureza é para Marx um momento da práxis humana e ao mesmo tempo a totalidade de tudo o que existe”. () A práxis humana é central no pensamento de Marx, inclusive no que se refere à especificidade da natureza: “A Crítica ao Programa de Gotha fala da natureza como “a primeira fonte de cada instrumento e objeto de trabalho”. O Capital vê na natureza a base das “formas materiais de existência do capital constante”, a fornecedora dos instrumentos de produção às que pertence, também, o trabalho vivo, o homem.” ().
A divisão social do trabalho, determinada pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas, implica uma relação particular do homem com a natureza, que por sua vez, contribui para determinar as relações sociais entre os homens. “Uma vez que as relações dos homens com a natureza constituem o pressuposto para as relações dos homens entre si, a dialética do processo de trabalho como processo natural, se estende a uma dialética da história humana em geral”; () “depende sempre do nível alcançado pelas forças produtivas materiais e intelectuais, quais possiblidades inerentes à matéria e em qual medida podem ser realizadas. () “A produção é sempre social. Essa é sempre “apropriação da natureza por parte do indivíduo no interior e mediante uma determinada forma social” [K. Marx, Para a crítica da economia política]” () Assim, o conceito de metabolismo ou interação orgânica, que é também um sinônimo do trabalho humano, demonstra toda a sua importância: “a categoria conceitual chave na análise teórica marxiana nessa área é o conceito de metabolismo (stoffwechsel). A palavra alemã stoffwechsel enuncia diretamente nos seus elementos a noção de “intercâmbio material” que está na base da noção de processos estruturados de crescimento e decomposição biológica contidos nos termos “metabolismo”. Na sua definição do processo de trabalho, Marx tornou o conceito de metabolismo central em todo o seu sistema de análise, baseando a sua compreensão do processo de trabalho a partir desse conceito”. () O interação orgânica tem então um duplo significado: “Assim, Marx utilizava o conceito seja para referir-se à real interação metabólica entre a natureza e a sociedade através do trabalho humano (o contexto usual no qual o termo foi utilizado em suas obras), e em um sentido mais amplo (em particular nos Grundrisse) para descrever o conjunto complexo, dinâmico, interdependente, de necessidades e relações criadas e constantemente reproduzidas de forma alienada no capitalismo, e o problema da liberdade humana que suscitou: tudo isso pode ser visto como conectado ao modo no qual o metabolismo humano com a natureza se exprimia através da organização concreta do trabalho humano. Desse modo, o conceito de metabolismo assume, tanto um significado ecológico específico, quanto um significado social muito mais amplo”. ()
A concepção de interação metabólica homem/natureza está estreitamente ligada àquela fratura metabólica no capitalismo, que tem suas raízes, como vimos, na antítese cidade/campo: “A concepção marxiana de interação orgânica, não apenas no sentido metafórico, mas também fisiológico, emerge claramente da crítica de Marx à rígida separação, típica da produção capitalista da sua época entre cidade e campo”. () Não existe uma interação orgânica “pura”, “abstrata”: cada modo de produção estabelece uma interação orgânica com a natureza. “A relação entre homem e natureza está assim mediada, no sentido de que a natureza é conhecida pelo homem através da pesquisa científica, e é apropriada e manipulada pelo homem através do trabalho, isto é, mediante a produção social organizada na forma histórico-sociais transitórias cujas dinâmicas internas não são postas pela natureza, ainda que por elas possam estar condicionadas”. () É assim que a história do desenvolvimento das formas de interação orgânica correspondem à história humana no sentido mais completo: “através da categoria de interação orgânica a história social é parte da história natural, o sujeito intencional que dá forma ao objeto material, em uma unidade que é também necessariamente uma distinção”; () “a contradição e o antagonismo entre as forças produtivas (homem/natureza) e as relações sociais de produção (homem/homem) como o motor fundamental da história humana, e da história da totalidade natural desse planeta”. () Uma concepção correta da interação orgânica é necessária também para a construção da nova sociedade socialista: “para a sociedade futura Marx prevê uma “síntese superior… de agricultura e de indústria”, o que pressupõe certamente que aquela interação orgânica se realize “sistematicamente como lei reguladora da produção social e em uma forma adequada ao pleno desenvolvimento do homem””. ()
Domínio da natureza?
Para completar o exame da concepção de Marx e Engels sobre a natureza, não nos resta mais que retornar à questão do domínio da natureza por parte do homem. Essa tese fundamentalmente positivista não tem nada a ver com o marxismo, ainda se, como vimos, seja falsamente atribuída a Marx uma confiança ilimitada no progresso das forças produtivas. Isso deriva também do fato que Marx e Engels consideram, em certos aspectos, o capitalismo como progressivo com relação aos modos de produção pré-capitalistas: desta ideia é dada frequentemente uma representação absolutamente distorcida, de Marx como industrialista a todo custo. No entanto, para Marx “o capitalismo é progressivo não apenas porque desenvolve as forças produtivas, mas por que: (1) ao fazê-lo, nega cada lógica de escassez material por causa dos monopólios de classe sobre a disposição do tempo de trabalho e dos produtos excedentes da sociedade, portanto, sobre oportunidades de desenvolvimento humano na medida em que tais oportunidades sejam função da distribuição do tempo livre e do nível e da segurança dos padrões de vida materiais; (2) o faz desenvolvendo as formas cooperativas e sociais de trabalho e produção permitindo, de tal modo, à humanidade superar as formas de desenvolvimento socialmente e naturalmente restritas que caracterizam as sociedades pré-capitalistas”. () Esse desenvolvimento, para Marx e Engels, é um meio e não um fim: “O desenvolvimento das forças produtivas por parte do capital (ou seja, a negação das lógicas da escassez pelos limites de classe sobre o desenvolvimento humano), junto com o desenvolvimento extensivo e intensivo da divisão social do trabalho e das trocas (ou seja, a potencial universalização da livre individualidade humana), são os veículos aqui, não o conteúdo evolutivo humano”. ()
Reiteramos então a absoluta falta de fundamento da ideia de um Marx “produtivista”: “Marx defende que, ainda que o capitalismo crie o potencial para uma forma menos restrita de desenvolvimento humano, esse potencial só pode ser realizado com a transformação qualitativa por parte do comunismo das forças e das relações de produção desenvolvidas no capitalismo. A interpretação prometeica converte arbitrariamente a visão qualitativa marxiana, de um desenvolvimento humano menos restrito em uma concepção que não leva em conta as relações sociais humanas, principalmente quantitativa, do progresso humano com produção e consumo de massa às custas da natureza. Essa falsa identificação ignora a crítica marxiana, qualitativa e classista, da produção e do consumo capitalista”. ()
Mas como é então interpretada a expressão “domínio da natureza” que é utilizada por Marx e Engels? “A cada momento nos é relembrado que nós não dominamos a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro subjugado, que não a dominamos como quem é estranho a ela, mas que nós lhe pertencemos com carne e osso e cérebro e vivemos no seu ventre: todo o nosso domínio sobre a natureza consiste na capacidade, que nos eleva acima das outras criaturas, de conhecer as suas leis e de emprega-las de modo apropriado”. () Vejamos então que o “domínio sobre a natureza” é na realidade um conhecimento (historicamente sempre maior) das leis da natureza. “O materialismo dialético não ignora nem fetichiza as leis inerentes à natureza material, com as quais a sociedade deve sempre tratar para alcançar os seus objetivos”. () Engels nos dá, em um trecho magistral de uma das suas obras mais maltratadas por aqueles que não entenderam nada da dialética, uma precisa imagem da interdependência entre leis naturais e desenvolvimento qualitativo da sociedade humana: “a liberdade não consiste no sonhar com a independência das leis da natureza, mas no conhecimento dessas leis e na possibilidade, ligada a esse conhecimento, de fazê-la agir segundo um plano para um determinado fim”. () “O domínio da natureza pressupõe sempre o conhecimento dos processos e das conexões naturais, enquanto esse conhecimento por sua vez é resultado exclusivo da transformação prática do mundo. […] Os homens podem dominar a natureza apenas se, por sua vez, se submetem às leis naturais”. ()
Claramente não é apenas questão de conhecimento das leis naturais, mas um problema preciso de classe, isto é, da classe que governa as escolhas políticas da sociedade e do mecanismo anárquico e perverso da produção capitalista, que impede a aplicação racional dos conhecimentos científicos. () “O imperativo categórico do capitalismo é a acumulação intensiva e a sua reprodução em escala sempre mais ampla a qualquer custo: e os custos dessa lógica louca que constitui inclusive a enorme força que chamamos de crises econômicas, desperdício de preciosas capacidades humanas, poluição, congestionamento urbano, destruição da natureza, consumo de recursos não renováveis, fome, guerra. Ele “revoluciona” as próprias “condições produtivas” sociais e naturais em uma dialética de destruição e inovação cujo centro é constituído pelas transformações e pela generalização desigual em escala nacional e mundial da relação social fundamental: o trabalho assalariado, seja na produção, seja nas normas de consumo”. () Eis, portanto, porque não é possível pensar com soluções minimalistas, mas é necessário destruir desde a raiz do vírus capitalista e construir uma sociedade na qual sejam os “produtores associados” a gerir a economia e a política. “Não é possível estabelecer uma nova cooperação entre a sociedade e a natureza sem uma forma radicalmente nova de cooperação entre os homens, para não se entender como uma questão apenas de consciência, mas como transformação da materialidade social, ou seja, da materialidade objetivamente restritiva das relações econômicas e políticas, cristalizadas na técnica, mas não redutível a ela”. ()
As necessárias consequências políticas
De tudo que foi dito, resulta que o programa marxista para a revolução socialista é ainda extremamente atual, mas isso é apenas o início. Contribuições de estudiosos como Burkett, Foster, Saito e outros são absolutamente preciosas na medida em que ajudam os militantes a redescobrir alguns aspectos da obra de Marx, mas os militantes revolucionários devem “apropriar-se” de tais resultados para colocá-los a serviço de um programa de transição para o socialismo. E é neste aspecto, que para nós é central, no momento de construir um programa coerentemente revolucionário e que tenha um caráter de classe proletário e independente, que as nossas estradas se separam de Foster. () Enquanto eles afirmam que “os marxistas ecologistas sugerem que já se possam identificar os sinais de nascimento daquilo que pode ser chamado de um nascente “proletariado ambiental”, () os marxistas revolucionários consideram que essa posição seja incorreta, e que ecoa as velhas posições terceiro-mundistas que já caracterizavam Monthly review historicamente, desde a época de Sweezy. () Claramente nós não negamos que os efeitos das mudanças climáticas e da devastação da natureza sejam mais sofridos pelos povos mais oprimidos pelo imperialismo, mas a individualização de um novo “sujeito social revolucionário” nos parece uma problemática apenas do ponto de vista analítico, mas, sobretudo, errado política e programaticamente: para nós, central no processo revolucionário é a classe operária, o proletariado no sentido “clássico”, exatamente porque pensamos em um processo que deve visar a subversão do sistema produtivo e das relações de produção capitalistas. A noção de “proletariado ambiental” nos parece prefigurar uma luta sem um claro caráter de classe, e isso é coerente exatamente com aquilo que Foster afirma depois sobre as fases (etapas?) que ele prevê para esta luta: “um movimento ecológico revolucionário adequado a essa tarefa passará sem dúvida por uma fase ecodemocrática, procurando construir uma aliança ampla, na qual a maioria absoluta da humanidade, fora dos interesses dominantes, será obrigada pela crescente desumanidade a exigir um mundo caracterizado por um desenvolvimento humano sustentável. Com o tempo, isso provavelmente criará as condições para uma segunda, e mais decisiva, fase ecossocialista da luta revolucionária, direcionada para a criação de uma sociedade inspirada no lema “de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades!” e fundada sobre uma base sustentável”. () Seria assim uma fase democrática da luta ao menos cronologicamente distinta da, mas talvez até mesmo contraposta a, uma sucessiva fase socialista. Em suma, uma tipologia de impostação da luta morta (mas infelizmente não sepultada) em 1917… E quem fala de “proletariado ambiental” de fato reafirma essa análise “etapista” dando à luta uma conotação geopolítica, defendendo os países do sul do mundo, em particular aqueles chamados “socialismo do século XXI”, que representam o “proletariado ambiental real”, isto é, dos governos nacionalistas burgueses anti-operários! Não é então um acaso que um dos livros de Foster, The ecological revolution (2009), se fecha com as palavras de “um dos mais eloquentes defensores, em escala mundial, do meio ambiente global e dos direitos dos indígenas” ()… Evo Morales! () A frase que é apresentada é que “não haverá solução para a crise ecológica global “até que não se mude o sistema capitalista com um sistema baseado sobre a complementaridade, a solidariedade, a harmonia entre os povos e a natureza””. () Não parece que Morales tenha feito nada disso enquanto governava a Bolívia…
Consideramos que mesmo o debate marxiano do problema ecológico, bem reconstruído por Burkett e Foster, seja a demonstração de como, sobretudo nesse campo, a necessária revolução socialista não pode prescindir da classe operária e do seu papel na produção: “É através da valorização da categoria de interação orgânica como regulação racional da relação entre sociedade e natureza e da crítica das suas determinações históricas que se podem colocar as bases para a integração na perspectiva anticapitalista de uma estratégia ambientalista”. () Como vimos, “interação orgânica” é em certo sentido, sinônimo de “trabalho”. () Como podemos então aceitar as categorias marxianas e não colocar no centro do nosso programa revolucionário o proletariado, com a sua necessidade de independência de classe da burguesia? Isso significa talvez que não procuramos outros aliados na luta pela mudança climática? Não, significa que estamos dispostos a nos aliar com quem pode partilhar as nossas batalhas contra a mudança climática e a destruição do meio ambiente, mas que levamos avante desde o início em uma perspectiva socialista. De novo, isso significa que defendemos apenas propostas socialistas e nos contrapomos àquelas “democráticas”? Não, significa que o programa que apresentamos à classe operária e a todos que com ela querem salvar o planeta Terra é um programa transitório para o socialismo, que incorpora diversas reivindicações e objetivos, inclusive os democráticos, mas que deve culminar, para ser eficaz e não ilusório, na tomada do poder por parte dos trabalhadores e dos setores sociais a eles aliados, na destruição do sistema capitalista e na construção de uma economia nova. Esse é o método que desde sempre como trotskistas, reivindicamos, porque levou à vitória em Outubro de 17.
A este ponto o leitor poderia legitimamente perguntar-se se as críticas políticas que direcionamos a Foster e à sua corrente acadêmica não invalidam os seus estudos teóricos. Na medida em que pudemos conhecer essas elaborações, nos parece, em nível teórico, a mais coerente análise do pensamento de Marx sobre o tema. Talvez tenhamos alguns conceitos a aprofundar ou discutir, como o conceito de desenvolvimento humano sustentável (), no entanto, conceitos como o de “fratura metabólica” nos parecem que recolocam Marx no seu lugar de direito inclusive no “campo ecológico”. Pensamos que não se possa atribuir à teoria da fratura metabólica as posições políticas equivocadas de Foster, assim com a política das “frentes populares” não se pode atribuir a necessidade da classe operária de se defender da reação. Sabemos bem que os reformistas estão em grau de justificar a sua aliança com a burguesia com qualquer desculpa. Os limites do marxismo acadêmico, ou seja, a pesquisa teórica sem o compromisso militante é essencialmente aquele de não poder libertar-se da influência do reformismo. Como marxistas revolucionários, no entanto, não devemos hesitar em tomar aquilo que há de bom nessas análises, libertando-as das escórias políticas reformistas, e coloca-las a serviço do nosso projeto revolucionário geral. “Para Marx o socialismo era uma nova forma revolucionária de reprodução metabólica social objetivando a realização de necessidades comunitárias, enraizada em condições de substancial igualdade e de sustentabilidade ecológica. Isso estava definido como uma sociedade na qual “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, mas na qual também era essencial proteger o poder produtivo da própria terra no interesse daquilo que Marx chamava no Capital “a cadeia das sucessivas gerações da raça humana””. () Só uma revolução proletária baseada na democracia operária, isto é, que organiza um novo Estado no qual os trabalhadores se organizam em conselhos para dirigir a economia e o próprio Estado, pode garantir tudo isso. E essa é a perspectiva pela qual lutam os marxistas revolucionários.
Tradução: Nívea Leão